“Ah, little lad, you're staring at my fingers. Would you like me to tell you the little story of right-hand/left-hand?”
Robert Mitchum dá vida a Harry Powell, um dos maiores vilões do cinema americano.
Na época de seu lançamento, O Mensageiro do Diabo (1955) foi considerado um fracasso de bilheteria, tendo sido também ignorado pela crítica. O recebimento do filme foi tão decepcionante e frustrante para o seu realizador, o brilhante ator inglês Charles Laughton, que o mesmo nunca mais dirigiu outro longa-metragem. Revisto e redescoberto ao longo dos anos, o thriller de 1955 é, hoje, tido como uma obra-prima essencial da sétima arte e há mais de cinco décadas impressiona audiências do mundo inteiro.
Charles Laughton dirigindo Robert Mitchum.
Ambientado na West Virginia, nos Estados Unidos dos anos 30, o filme se passa às margens do Rio Ohio. Em uma penitenciária, o detento Harry Powell (Robert Mitchum) descobre que Ben Harper (Peter Graves), um homem condenado à morte, escondeu 10 mil dólares em alguma parte de sua casa. Powell é um assustador serial killer que se diz reverendo e pregador. Após a execução do colega e a obtenção da sua liberdade, Powell vai em busca da pequena fortuna deixada por Harper, encontrando a viúva, Willa (Shelley Winters), e seus dois filhos, John (Billy Chapin) e Pearl (Sally Jane Bruce). O vilão seduz Willa, casando-se com ela pouco tempo depois. Pôr as mãos no dinheiro será, no entanto, bem complicado graças às duas crianças (guardiãs do dinheiro) e ao auxílio de Rachel (Lilian Gish), uma senhora determinada e religiosa. Dominado por uma aura de pesadelo, O Mensageiro do Mal é uma fábula sombria e estilizada que é centrada na luta do bem conta o mal e que focaliza os medos presentes no imaginário infantil.
A bela fotografia de Stanley Cortez é um dos pontos fortes do filme.
O longa-metragem é baseado no romance The Night of The Hunter, de Davis Grubb, publicado em 1953. O romance é, por sua vez, inspirado na história de Harry Powers, criminoso responsável pela morte de duas viúvas e três crianças. Powers foi enforcado em 1932. A adaptação da história ficou por conta de James Agee. Por muito tempo, acreditou-se que Laughton teria reescrito todo o roteiro de Agee por considerá-lo inadequado. Tais suspeitas foram levantadas muito em função do que afirmou o ator Robert Mitchum em sua autobiografia. Recentemente, provou-se que o roteiro utilizado por Laughton fora exatamente aquele escrito por Agee.
O Mensageiro do Diabo não foi indicado a nenhum prêmio.
Ainda que seja aclamado por muitos como uma das maiores obras-primas do cinema, o clássico de 1955, por vezes, parece não usufruir do mesmo reconhecimento e atenção que outros “colegas mais famosos”. Talvez esse fenômeno se explique pelo fato de que grandes filmes são geralmente associados a grandes diretores. Charles Laughton só realizou um filme, ainda que tenha uma participação não creditada em O Homem da Torre Eiffel (1949). A esse fator, soma-se a dificuldade de se categorizar o filme, que se distingue completamente das produções dos anos 40 e 50, ao fugir do realismo e investir em um universo fantástico, estranho e sombrio.
A tomada do corpo debaixo d’água foi uma das mais trabalhosas do filme.
Esteticamente, O Mensageiro do Diabo é herdeiro do expressionismo alemão. Charles Laughton aposta em alguns elementos que caracterizaram essa escola, optando por enquadramentos pouco usuais. Ele utiliza as sombras com uma maestria e expressividade únicas, investindo em estranhos ângulos e perspectivas e fazendo uso de cenários, por vezes, pouco realistas. Visualmente arrebatador, o longa-metragem é beneficiado pelo trabalho de Stanley Cortez, diretor de fotografia que havia trabalhado anteriormente com Orson Welles em outro clássico, Soberba (1942), pelo qual foi indicado ao Oscar. Sobre o fato de ter trabalhado nos dois filmes, Cortez brincava que só era chamado para fazer coisas estranhas. Ele chegou a declarar também que, dentre os diretores com quem trabalhou, Welles e Laughton eram os únicos que de fato compreendiam e sabiam usar a luz.
A bela trilha sonora do filme é de autoria de Walter Schumann.
Filmado em preto e branco, O Mensageiro do Diabo contém um conjunto de imagens inesquecíveis, cujo lirismo continuam a impressionar. Uma das mais lembradas é aquela em que o corpo de um personagem da trama é revelado no fundo do rio. É icônica também a cena em que a figura de Robert Mitchum é iluminada por uma lâmpada na rua, gerando sombras no quarto das crianças. A sequência que mostra a fuga noturna das crianças pelo rio, sob a perspectiva de “gigantes” elementos da natureza, como sapos e teias de aranha, reflete também a genialidade de Charles Laughton e o belo trabalho de Stanley Cortez.
Robert Mitchum não era uma personalidade muito querida fora das telas.
Charles Laughton (1899-1962) brilhou como ator em mais de 50 filmes. Dentre os seus trabalhos mais célebres estão O Sinal da Cruz (1932), Os Amores de Henrique VIII (1933), pelo qual ele ganhou o Oscar de Melhor Ator, O Grande Motim (1935), O Corcunda de Notre Dame (1939), Testemunha de Acusação (1957) e Spartacus (1960). A excepcional carreira de Laughton como ator de cinema, teatro e televisão talvez ofusque sua única incursão como cineasta. Laughton chegou a afirmar que preferia dirigir no teatro, já que existe sempre a possibilidade de mudança e melhoria. A cada espetáculo de uma peça, algo pode ser ajustado. Já no cinema, uma vez finalizado o filme, nada pode ser feito. Também por essa razão, Laughton não se aventurou de novo por trás das câmeras.
Mitchum foi indicado uma única vez ao Oscar, como coadjuvante, pelo filme Story of G.I. Joe (1945).
Um dos grandes trunfos de O Mensageiro do Diabo é o seu elenco, encabeçado pelo soberbo Robert Mitchum. O galã, por vezes subestimado, foi um dos maiores atores da Era de Ouro de Hollywood, tendo se destacado sobretudo no gênero do filme noir. Mitchum empresta seu charme e sua imponente voz grave ao assutador Harry Powell, um de seus melhores papéis. O ator chegou a assumir que O Mensageiro do Diabo era o seu trabalho favorito e que Laughton foi aquele que melhor o dirigiu. Ao lado de Mitchum, temos a duas vezes oscarizada Shelley Winters que confere certa histeria e desequilíbrio à trágica Willa. Tanto os jovens Billy Chapin e Sally Jane Bruce quanto a veterana e legendária Lilian Gish brilham como os grandes heróis da trama.
Lilian Gish é uma das atrizes mais longevas de Hollywood. Ela trabalhou até os 93 anos.
O Mensageiro do Diabo há quase 60 anos sustenta o título de um dos filmes mais sombrios e assustadores que Hollywood já produziu. Essa obra-prima inusitada ocupou o segundo lugar na lista feita pela prestigiada revista francesa Cahiers du Cinéma dos 100 mais belos filmes do cinema. O clássico de 1955 ainda é citado em listas similares da revista Empire e do AFI (American Film Institute). A importância, a relevância artística e o legado de O Mensageiro do Diabo para o cinema são incomensuráveis.
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