“Era preciso que um poeta brasileiro, [...]
preso à tua pantomima por filamentos de ternura e riso dispersos no tempo,
viesse recompô-los e, homem maduro, te visitasse
para dizer-te algumas coisas, sobcolor de poema.
Para dizer-te como os brasileiros te amam
e que nisso, como em tudo mais, nossa gente se parece
com qualquer gente do mundo - inclusive os pequenos judeus
de bengalinha e chapéu-coco, sapatos compridos, olhos melancólicos,
vagabundos que o mundo repeliu, mas zombam e vivem
nos filmes, nas ruas tortas com tabuletas: Fábrica, Barbeiro, Polícia,
e vencem a fome, iludem a brutalidade, prolongam o amor
como um segredo dito no ouvido de um homem do povo caído na rua.”
No poema Canto ao Homem do Povo, publicado no livro A Rosa do Povo (1945), o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade celebra e homenageia o artista que deu representação a uma classe de indivíduos sem voz e visibilidade. Charles Spencer Chaplin nasceu em 16 de abril de 1889, em Walworth, distrito de Londres. A infância e a adolescência do artista foram marcadas pela falta de recursos, traumas, constantes dificuldades financeiras e por uma vida familiar conturbada. O jovem Charles chegou a passar fome e viveu, por alguns anos, em casas de caridade e asilos. Aos 13 anos, teve que abandonar por completo os estudos. O pai do garoto era alcóolotra e ausente, a mãe sofria de problemas mentais, tendo sido internada em um hospício, em 1898. Sem poder contar com os cuidados da família, Charles teve que aprender a sobreviver sozinho e trabalhar desde muito cedo.
O pequeno Charles Chaplin.
O menino Charles cresceu nos bastidores do teatro, já que seus pais eram artistas de vaudeville. A primeira apresentação de Chaplin ocorreu aos cinco anos de idade e, aos nove, ele já tinha consciência de sua vocação para as artes cênicas. Depois de fazer parte de uma trupe de dançarinos, o adolescente Chaplin passou a integrar uma companhia de teatro londrina, pela qual ele estrelou algumas peças que lhe renderam destaque e elogios. Após deixar a companhia, Charles passou a se dedicar ao vaudeville. Em 1908, o jovem ator assinou um contrato com o poderoso produtor Fred Karno e passou a fazer parte de sua companhia. Ganhando seu maior salario até então, Chaplin se apresentou em algumas cidades da Europa e fez uma bem-sucedida temporada nos Estados Unidos.
Após a segunda turnê da companhia Karno em terras norte-americanas, um membro da New York Motion Picture Company, que havia visto a performance do ator, o chamou para substituir Fred Mace, uma antiga estrela dos estúdios Keystone. Chaplin assinou o contrato com a Keystone em setembro de 1913 e, poucos meses depois, já estava rodando o seu primeiro filme, Making a Living (1914).
Foi com Kid Auto Races in Venice (1914), segundo filme de Chaplin, que o grande público conheceu Carlitos, seu personagem mais famoso, aquele com o qual Chaplin seria identificado pelo resto de sua carreira. Em sua autobiografia, o ator confidencia como compôs o personagem: “Queria que tudo fosse uma contradição: as calças folgadas, o casaco apertado, o chapéu pequeno e os sapatos grandes... Eu acrescentei um pequeno bigode que, pensei, daria a impressão de mais idade, sem esconder minhas expressões. Não sabia como seria o personagem, mas quando me vesti, as roupas e a maquiagem me fizeram sentir a pessoa que ele era”. Assim ocorreu o nascimento de Carlitos, também conhecido como “o vagabundo” (The Tramp).
Chaplin dirigiu e roteirizou grande parte dos filmes nos quais atuou. Sua primeira aventura por trás das câmeras se deu em 1914, com Caught in the Rain, um dos maiores sucessos da Keystone até então. Aos 26 anos, Chaplin assinou com a Mutual Film Corporation e se tornou um dos homens mais bem pagos do mundo. Segundo Chaplin, o período em que esteve sob o contrato da Mutual foi um dos mais felizes de sua carreira. Ele realizou quatro filmes para o estúdio, dentre eles O Imigrante (1917), uma importante crônica social.
O Garoto (1921)
O nome de Chaplin se tornou rapidamente conhecido no mundo inteiro e sua popularidade era sem limites. Como Chaplin não conseguia acompanhar as exigências de produção da Mutual, o contrato não foi renovado. Chaplin, que por anos se viu obrigado a produzir filmes em grande escala, queria priorizar a qualidade e não a quantidade. Em 1919, em um projeto ousado, ele uniu forças com grandes nomes da indústria cinematográfica, como Douglas Fairbanks e Mary Pickford, e criou a United Artists. Chaplin passou a produzir e financiar seus próprios filmes e a fazer a distribuição pela nova companhia, procedimento que permitia finalmente ao artista ter integral controle sobre suas obras.
Luzes da Cidade (1931)
Chaplin realizou mais de 70 filmes em sua carreira, dentre eles, as obras-primas: O Garoto (1921), A Corrida do Ouro (1925), O Circo (1928), Luzes da Cidade (1931), Tempos Modernos (1936), O Grande Ditador (1940) e Luzes da Ribalta (1952). Além de produtor, diretor, ator e roteirista, Chaplin também era compositor. É dele, "Smile"(Sorria), o célebre tema musical do filme Tempos Modernos, além dos temas de A Condessa de Hong Kong (1967) e de Luzes da Ribalta.
Charles Chaplin na cerimônia do Oscar em 1972.
O atraso em 20 anos da estreia de Luzes da Ribalta em território americano fez com que a trilha sonora do filme fosse elegível ao Oscar de 1973. Foi assim que Charles Chaplin ganhou seu inesperado terceiro Oscar, após ter levado um prêmio honorário pela carreira na edição anterior do show. Ele já tinha levado um Oscar honorário em 1929 pelo seu trabalho em O Circo. Nos últimos anos de sua vida, Chaplin compôs trilhas sonoras para grande parte de seus filmes mudos anteriores a 1927 e relançou alguns deles no cinema posteriormente. Foi o caso de O Garoto, relançado em 1971.
Smile – Tempos Modernos
Tema de A Condessa de Hong Kong
Tema de Luzes da Ribalta
O Grande Ditador foi um marco na carreira de Charles Chaplin. O primeiro filme “falante” (não confundir com “sonoro”) de Chaplin foi filmado e lançando no início da Segunda Guerra Mundial, apenas um ano antes dos Estados Unidos entrarem oficialmente no conflito. Ao criticar abertamente o nazismo e Adolf Hitler, através da paródia, Chaplin fez uma das maiores e mais ousadas declarações políticas que o cinema já conheceu. A contundente denúncia ao poder alienante do fascismo, à ditadura e à perseguição cruel das minorias faz desta obra um monumento histórico, político e artístico atemporal. O monólogo final do filme, um belo discurso humanista, é um dos momentos máximos da carreira de Chaplin. Não é difícil compreender por que o artista, que, por muito tempo recusou a fala em seus filmes, se viu compelido pela confusão do mundo em 1939, a dar voz a um verdadeiro clamor por justiça e paz.
Discurso Final – O Grande Ditador
Após a guerra, durante o macarthismo, Charles Chaplin foi acusado de atividades antiamericanas e de ser comunista. Chaplin, cuja orientação política era sobretudo de esquerda, foi colocado na lista negra de Hollywood. O artista foi objeto de inúmeras investigações comandadas pelo FBI. Em 1952, enquanto fazia a divulgação de Luzes da Ribalta na Inglaterra, seu visto de entrada e moradia americano foi revogado e ele não pôde retornar aos Estados Unidos. Desde então, até a sua morte, por causas naturais, no Natal de 1977, Chaplin viveu em Vevey, cidade da Suíça. Sobre o exílio forçado, ele comentou: "Desde o fim da última guerra mundial, eu tenho sido alvo de mentiras e propagandas por poderosos grupos reacionários que, por sua influência e com a ajuda da imprensa marrom, criaram um ambiente doentio no qual indivíduos de mente liberal possam ser apontados e perseguidos. Nestas condições, acho que é praticamente impossível continuar meu trabalho do ramo do cinema e, portanto, me desfiz de minha residência nos Estados Unidos".
O Grande Ditador (1940)
Em 1992, foi lançada uma eficiente cinebiografia do ator, dirigida por Richard Attenborough (ganhador do Oscar em 1982 por Gandhi) e protagonizada por Robert Downey Jr., indicado ao Oscar de Melhor Ator. Charles Chaplin é, provavelmente, o artista mais completo que o cinema já viu. Sua versatilidade e seu brilhantismo podem ser comprovados tanto em seus grandes clássicos, como em seus primeiros curtas, muitos deles redescobertos e restaurados recentemente. Este gênio da sétima arte tinha uma habilidade única de nos fazer rir e chorar. Chaplin influenciou e continua inspirando artistas do mundo inteiro. Não é por acaso que nosso Drummond dedicou ao saudoso mestre alguns de seus belos versos:
“[...]És parafuso, gesto, esgar.
Recolho teus pedaços: ainda vibram,
lagarto mutilado.
Colo teus pedaços. Unidade
estranha é a tua, em mundo assim pulverizado.
E nós, que a cada passo nos cobrimos
e nos despimos e nos mascaramos,
mal retemos em ti o mesmo homem,
aprendiz
bombeiro
caixeiro
doceiro
emigrante
forçado
maquinista
noivo
patinador
soldado
músico
peregrino
artista de circo
marquês
marinheiro
carregador de piano
apenas sempre entretanto tu mesmo,
o que não está de acordo e é meigo,
o incapaz de propriedade, o pé
errante, a estrada
fugindo, o amigo
que desejaríamos reter
na chuva, no espelho, na memória
e todavia perdemos.
[...]
Ó palavras desmoralizadas, entretanto salvas, ditas de novo.
Poder da voz humana inventando novos vocábulos e dando sopros exaustos.
Dignidade da boca, aberta em ira justa e amor profundo,
crispação do ser humano, árvore irritada,
contra a miséria e a fúria dos ditadores,
ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode
caminham numa estrada de pó e de esperança.”
Tempos Modernos (1936)
Mais sobre Charles Chaplin:
- Tinha 1,65 m de altura.
- Foi casado quatro vezes e teve 11 filhos. Seu primeiro filho morreu com apenas três dias de vida.
- Em março de 1978, seu corpo foi roubado do cemitério de Corsier-sur-Vevey, mas foi encontrado no mês seguinte pela polícia.
- É famoso por ter se relacionado com mulheres muito mais novas que ele. Três de suas esposas eram menores de idade quando as conheceu.
- Foi casado com a atriz Paulette Goddard, com quem contracenou em Tempos Modernos e O Grande Ditador.
- Foi o primeiro ator a aparecer na capa da Time Magazine em julho de 1925.
- Ocupa o nono lugar na lista da revista Entertainment Weekly de maiores estrelas do cinema e o décimo lugar na lista da American Film Institute das 50 maiores lendas do cinema.
- Tinha 73 anos quando seu filho mais novo nasceu.
- Nasceu quatro dias antes de Adolf Hitler.
- Buster Keaton e Charles Chaplin, dois mestres do cinema mudo vistos como rivais, trabalharam juntos em Luzes da Ribalta (1952). Keaton, apesar de ser apelidado como “o homem que nunca ri” e de ter tido um sucesso financeiro muito inferior ao colega, disse que Chaplin era o mais deprimido dos dois. Para ele, Chaplin era o melhor de todos os atores do cinema mudo.
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