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Nos Rastros do Western... Cinemateca

No dia 1º de dezembro de 1903, estreava nos Estados Unidos aquele que é considerado o primeiro filme narrativo pertencente ao gênero western. Trata-se do importante clássico O Grande Roubo do Trem, curta-metragem de 11 minutos dirigido, produzido e escrito por Edwin S. Porter. Há, no entanto, registros de filmes anteriores, produzidos por volta 1889, ainda mais curtos, que já faziam referência ao “cenário western”. O surgimento do western remonta, portanto, aos primórdios do cinema, momento em que a sétima arte dava seus primeiros passos, construindo sua própria linguagem. O western é um gênero norte-americano por excelência, ainda que diretores não ianques o tenham praticado com maestria. Os filmes de western, de faroeste ou de cowboy, como também são conhecidos, retratam o período do expansionismo territorial norte-americano na segunda metade do século 19, a famosa conquista do oeste (west, em inglês, o que explica o nome).

O Grande Roubo do Trem (1903)

O avanço dos brancos recém-chegados em direção à costa oeste americana não poderia deixar de esbarrar nos primeiros moradores daquelas terras. Os indígenas não apenas levaram a pior na vida real como também nas telas do cinema, onde eram pintados como vilões (salvo exceções). O combate entre os novos e velhos habitantes da América, a construção de uma nova civilização, o desejo de enriquecimento e o universo sem leis são elementos que encontramos facilmente na maioria dos filmes de cowboy. O western tradicional ainda possibilitou a criação de vários subgêneros ou variantes, como o Western Spaghetti (filmes de Sergio Leone, como Três Homens em Conflito - 1966); o Western Contemporâneo (O Indomado - 1963); o Western Noir (Pursued - 1947), o Western Pós-apocalíptico (O Mensageiro - 1997); o Western Sci-Fi (Outland-1981), entre outros.

A era de ouro do western corresponde, aproximadamente, ao que chamamos de Era de Ouro de Hollywood, indo dos anos 30 ao final dos anos 50. Mesmo sendo um gênero pouco praticado atualmente, ainda encontramos produções fortemente inspiradas na estética do western clássico, como a animação Rango (2011), de Gore Verbinski, e Cowboys e Aliens (2011), de Jon Favreau.

John Ford se firmou como um dos cineastas mais representativos do western, sendo, muito provavelmente, aquele que mais contribuiu artisticamente para o gênero. O diretor americano teve uma longa e prolífica carreira. Em quase 60 anos de profissão, ele realizou 146 filmes, entre longas-metragens, curtas e documentários. Mesmo 39 anos após a sua morte, Ford ainda é detentor de um recorde: é o maior ganhador do Oscar de Melhor Diretor, tendo levado quatro estatuetas.

A importância de Ford para o cinema é incomensurável. Reza a lenda que quando Orson Welles foi perguntado quais eram os seus três diretores favoritos, ele respondeu: "John Ford, John Ford e John Ford”. Muitos outros grandes cineastas também afirmaram ter Ford como mestre e ídolo, entre eles: Akira Kurosawa, Sergio Leone, Clint Eastwood, Martin Scorsese, Steven Spielberg, Jean-Luc Godard e François Truffaut.

O escritor e especialista do cinema clássico, Pierre Berthomieu, tentou definir em uma frase o estilo do diretor: “O cinema de John Ford é habitado por gigantes e atravessado pelos tormentos da eternidade”¹. Não apenas os heróis fordianos são dotados de grandiosidade. O cineasta sempre manifestou sua preferência pelo cinema épico e pela imensidão das paisagens: “Prefiro os dramas filmados em exteriores. No palco, a voz sozinha exprime grande parte do drama, o que é impossível no cinema. No entanto, temos o que falta ao teatro: os planos gerais que mostram uma tropa de gados, os picos das montanhas, as quedas d’água monumentais ou uma multidão gigantesca de homens e mulheres”².

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John Wayne e John Ford – Foto de 1971

Nas artes cênicas, John Wayne é o equivalente de Ford para o universo do western. Os dois Johns, grandes amigos na vida real, formaram uma dupla imbatível no cinema e trabalharam mais de 20 vezes juntos. Foi após atuar na obra-prima de Ford, No Tempo das Diligências (1939), que a carreira de Wayne decolou. Logo ele se tornou uma estrela, um dos atores mais populares de Hollywood e uma figura essencial dos filmes de faroeste. A voz grave, os 1.93m de altura, a imponência e o jeito austero e conservador eram as marcas registradas do ator dentro e fora das telas. Wayne participou de mais de 170 filmes, ganhou um Oscar (por Bravura Indômita – 1969) e foi eleito a quinta maior estrela do cinema de todos os tempos na votação realizada pela revista Entertainment Weekly e a quarta na lista feita pela Premiere Magazine. Uma das parcerias mais elogiadas de Ford e Wayne ocorreu no grande clássico Rastros de Ódio (1956).

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Paisagem de Monument Valley

Uma das assinaturas de Ford era filmar as cenas externas de seus filmes em Monument Valley, região localizada no planalto do Colorado, no norte do Arizona, estado americano. Rastros de Ódio não fugiu à regra. O início do filme é antológico. Os créditos iniciais do longa-metragem são acompanhados da canção “Lorena”, que se tornou um hino para os soldados confederados durante a Guerra Civil. Os créditos terminam e a tela escurece. Das trevas, da tela negra, surge uma porta que se abre para o iluminado deserto, para a paisagem de Monument Valley. Uma mulher sai para receber um homem cuja identidade não nos é revelada imediatamente. A tela negra se mistura ao interior da casa, como se fosse um portal. O gesto da porta que se abre não é apenas a metáfora do começo da narrativa, como o símbolo da criação e um convite para a ficção. Há algo de ritualístico neste início de filme, algo que nos remete à abertura de um espetáculo. O início e o fim de Rastros de Ódio dialogam entre si. Se na abertura do filme a porta se abre para recebermos Wayne, ao final, ela se fecha após sua partida. É interessante observar que o protagonista é um indivíduo que pertence ao exterior iluminado, ao deserto e à aventura, e não à sombra e à tranquilidade.

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Famosa cena de abertura de Rastros de Ódio

Em Rastros de Ódio, Wayne é Ethan Edwards. O ator confidenciou que este era o seu personagem favorito, dentre os mais de 100 que interpretou. Ethan é um veterano da Guerra Civil Americana e, alguns anos após a guerra, retorna à casa do irmão. Ele é recebido também pela sua cunhada, por quem nutre uma paixão correspondida, e pelos seus três sobrinhos. Certo dia, um grupo de índios liderados pelo cruel Scar (Henry Brandon) prepara uma armadilha, conseguindo matar toda a família de Ethan, com exceção de sua sobrinha mais nova, Debbie, que é raptada pelo bando de assassinos. Após a tragédia, Ethan e um agregado da família, Martin Pawley (Jeffrey Hunter), que tem sangue indígena, saem em busca da garota. Debbie é interpretada pela irmãs Lana (aos 10 anos) e Natalie Wood (aos 15 anos). Como sabemos, a bela Natalie viraria uma estrela de Hollywood nos anos seguintes.

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Natalie Wood em cena de Rastros de Ódio

O romance entre Ethan e sua cunhada Martha (Dorothy Jordan) é insinuado pelos olhares dos atores e pela delicadeza de suas atuações. A possibilidade (nunca saberemos ao certo) de que Debbie seja, de fato, filha de Ethan, faz com que sua busca adquira um caráter ainda mais dramático. Ethan é um personagem sombrio, violento e misterioso. Há algo também de sedutor e fascinante no protagonista, uma inesperada doçura que escapa em determinados momentos. Uma das características de Ethan é o seu bordão irônico: “That'll be the day” (Vai chegar o dia). A origem do ódio e desprezo que o personagem sente pelos índios, mais especificamente pelos Comanches, é mostrada por um detalhe no filme. A lápide de uma sepultura revela que a mãe de Ethan foi assassinada por um Comanche.

O filme explora também a relação de Ethan com o jovem Martin, uma ligação que vai se assemelhando gradualmente à de pai e filho. Ao contrário de Ethan, Martin é uma figura mais leve, mais próxima da comédia. O namoro do rapaz com a jovem Laurie (Vera Miles) é tratado pelo diretor sob o viés da comédia romântica. Apesar da natureza sombria do enredo, o filme apresenta vários alívios cômicos.

A grandiosidade do filme e a exuberância das cores de Rastros de Ódio, que foi filmado em scope, fazem dele um espetáculo ainda mais poderoso. A obra-prima de Ford é hoje vista por muitos como sendo um dos mais significativos e influentes filmes de faroeste. Em Rastros de Ódio, Ford ainda presta uma homenagem ao ator Harry Carey, que se destacou no cinema mudo e que trabalhou algumas vezes com o diretor. Além de escalar a mulher e o filho do falecido ator para o elenco, Ford ainda filma Wayne fazendo a pose característica de Carey, na última cena do filme.  

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Cena final de Rastros de Ódio – Homenagem a Harry Carey

Rastros de Ódio, que é adaptação do romance de Alan Le May, foi eleito o maior filme de western de todos os tempos pela American Film Institute, além de figurar em 12º na lista dos melhores filmes de todos os tempos da mesma instituição. Nele, temos reunidos alguns dos elementos mais importantes da filmografia de Ford: a busca pela redenção, a grandiosidade das paisagens, a luta do bem contra o mal e o poder dilacerador da culpa. Rastros de Ódio é o western em toda a sua grandeza.

Sobre o autor:

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