Nesta estreia de Frame Sonoro, vou abordar o que muitos consideram uma das grandes celebrações à arte do desenho de som (ou sound design, em inglês) de toda a história do Cinema: a antológica abertura de Era uma Vez no Oeste, obra-prima de 1968 do diretor italiano Sergio Leone.
O filme começa numa velha e arruinada estação ferroviária, abandonada no meio do deserto, onde três homens vestindo sobretudos surrados estão aparentemente aguardando a chegada do próximo trem. Não demora para o público descobrir que aqueles sujeitos são pistoleiros e, com certeza, não estão com a melhor das intenções.
A abertura toda dura pouco mais de 12 minutos, sem música "normal" ou diálogos, somente sons naturais e ambientes. Alguns trechos da parte sonora que vale a pena destacar:
- O onipresente rangido do enferrujado moinho de vento
- A goteira caindo no chapéu do personagem de Woody Strode
- A hilária captura da mosca feita pelo personagem de Jack Elan
- O estalar dos dedos do pistoleiro interpretado por Al Mulock
- A primeira porta que é aberta, nos segundos iniciais do filme, e que possui um som muito próximo ao tema da harmônica tocada pelo personagem de Charles Bronson
- O momento em que Jack Elan arranca os fios do barulhento telégrafo, e todos os outros sons também se silenciam
- O motor da locomotiva já estacionada, que cria a tensão necessária à cena.
O resultado é, até hoje, de um primor e criatividade que virou referência para estudiosos e cinéfilos. Só para ficar com um exemplo: o rangido do enferrujado moinho é ouvido em Rango, animação de 2011 de Gore Verbinski.
Todos os sons, tanto deste início como do restante do filme, foram gravados e editados por uma equipe italiana liderada por Fausto Ancillai (também responsável pela mixagem final do filme), na etapa conhecida como Pós-Produção de Som.
É também dentro dessa etapa onde são tratados os diálogos. Estes foram quase que inteiramente regravados em estúdio (processo conhecido como Dublagem) e isso é claramente percebido em alguns trechos, onde são evidentes as falhas de sincronismo labial. Mas para a época foi uma ousadia, até porque uma pós-produção tão extensa exige um orçamento bem maior que o normal..
Originalmente, todo o som do filme foi mixado em monofônico (ou simplesmente "mono"), mais tarde "expandido" para 5.1 quando lançado em DVD e Blu-Ray. A trilha orquestral de Morricone passou para estéreo e alguns poucos efeitos sonoros foram adicionados, preservando-se a mixagem original (o que é a atitude correta nesses casos).
Além da introdução, no restante do filme a parte sonora continua sendo muito bem explorada. Note esses três momentos:
- Quando bandidos se aproximam sorrateiramente de uma fazenda, a família que lá vive percebe que algo está errado porque o canto das cigarras (tão em evidência até então) subitamente cessa
- A apresentação do personagem de Jason Robards (Cheyenne) é um primor de narrativa sonora: a viúva Jill (Claudia Cardinale) está numa espécie de taverna quando ouvimos o relinchar de cavalos, uma briga e alguns tiros. Abre-se a porta e Cheyenne entra na taverna. O público descobre que ele era um prisioneiro escoltado por um policial que consegue de alguma forma uma arma e mata esse policial. Tudo isso é contado somente com sons, a câmera permanece o tempo todo dentro da taverna.
- As subidas e descidas de Cheyenne no teto de um vagão de trem, utilizando como "escada" um puxador de descarga de privada. Quando ouvimos a descarga, sabemos que ele está por ali. Além de suas passeadas no teto desse mesmo vagão. A câmera permanece no interior do carro e só percebemos a sua presença pelo som de suas botas.
E, por último, não dá para deixar de citar a utilização inteligente e orgânica da música de Morricone. Além de ter criado temas específicos e marcantes para cada um dos personagens principais, ele tem neste filme um dos pontos altos de sua carreira como compositor para cinema. Milhares de linhas já foram escritas analisando e dissecando a música que ele criou para Era Uma Vez no Oeste e como ela interage com os personagens e situações.
Até a próxima edição de Frame Sonoro, e aproveitem para rever (e principalmente ouvir) a abertura antológica deste clássico: