Chegou aos cinemas Jogos Vorazes: A Esperança- Parte 1, terceiro filme baseado nos livros de temática distópica de Suzanne Collins. Dirigido por Francis Lawrence, como o anterior, ele estabelece a sua franquia entre os grandes e bons produtos hollywoodianos, uma vez que aprofunda temas pesados e contemporâneos de forma raramente feita em narrativas supostamente juvenis.
Mais uma vez houve troca de figurinista: se no ano passado a responsável foi Trish Summerville (leia aqui a coluna sobre o figurino do segundo filme), que orquestrou uma composição certeira dos exageros da Capital, desta vez temos o trabalho minimalista da dupla Kurt & Bart, que recentemente trabalharam em Clube de Compras Dallas e Segredos de Sangue (já aqui analisado). Apesar disso, o estilo do figurino apresentado seguiu as linhas deixadas anteriormente e alguns elementos, como os uniformes dos guardas pacificadores e as roupas simples de algodão em tons de cinza e bege utilizadas na maior parte dos Distritos, não foram alterados.
Dessa vez a moda extravagante sai de cena e entram em seu lugar roupas mais simples e funcionais. A história recomeça pouco depois do fim dos Jogos Vorazes anteriores. Katniss (Jennifer Lawrence), resgatada pelos rebeldes do 13º Distrito, aceita seu papel como Tordo, símbolo da revolução contra a Capital. E no contexto da trama, ela não se faz apenas com armas em punho, mas também através de propaganda. Cinna, antes de morrer, havia deixado prontos croquis de roupas feitas para que ela tenha a imagem adequada de liderança. O traje de combate preto, que permite movimentos amplos, possui reforços nas canelas e nos braços e uma placa peitoral assimétrica, todos na mesma cor. Os ombros recebem tratamento em forma de escamas e nas costas, além das flechas, asas, lembrando seu papel. Cinna obviamente era estilista e não um designer de vestuário de guerra. Além disso, não é esperado que Katniss entre em combate real. Apenas isso explica o formato da placa peitoral, com a curvatura de seios delineada. Embora seja comum tal uso em figurinos, na prática isso só torna a armadura menos segura, pois armas pontiagudas deslizariam e seriam guiadas para o centro do tórax, tornando mais fácil acertar o coração.
Além da roupa de combate, Katniss veste calças de cintura alta e camisas com bolsos, ambos cinzas. Os trajes são o uniforme de todos os moradores do Distrito 13 e remetem aqueles utilitários usados pelas mulheres americanas trabalhando na 2ª Guerra Mundial. O período é constantemente referenciado através dos figurinos na franquia em virtude da relação que pode ser feita entre o governo de Presidente Snow (Donald Sutherland) e os regimes fascistas de então.
Mulheres trabalhando na 2ª Guerra Mundial
A cor neutra é proposital para criar a impressão de falta de individualidade entre os habitantes do Distrito. Essa aparente uniformidade é quebrada por pequenos detalhes: Katniss, por exemplo, nunca vai abotoar todos os botões de sua camisa. Isso demonstra que embora esteja participando dos planos, há um leve desconforto que não a permite se encaixar plenamente.
Com o uniforme se coloca a questão do bem-estar coletivo versus a expressão da individualidade. Effie Trinket (Elizabeth Banks), acostumada que está com a moda exagerada da Capital e a possibilidade que ela lhe dava de sempre se apresentar de forma diferente, não pode aceitar usar um uniforme. As pessoas têm o hábito de se expressarem através das roupas que vestem e mesmo a negação de qualquer forma diferenciada é um posicionamento. Com essa tela em branco em mãos, ela adapta as roupas, transformando-as em outras peças e incrementando com os acessórios que conseguiu manter. Na ausência de suas tradicionais perucas coloridas, usa lenços em amarrações diferentes na cabeça.
Outro contraste com o padrão uniforme do Distrito 13 são os dissidentes fugidos para se juntar à revolução por causa de Katniss. A diretora Cressida (Natalie Dormer) se destaca, pois suas tatuagens a diferenciam visualmente daqueles que se criaram no distrito.
Por outro lado, a elite política, representada pela Presidente Coin (Juliane Moore) e seu propagandista Plutarch Heavensbee (Philip Seymour Hoffman), apesar de em um primeiro olhar parecer utilizar o mesmo traje dos outros, na verdade não o faz. O colarinho é fechado e o tecido é um pouco mais grosso, garantindo aparência mais estruturada. A camisa de Coin fica por fora da calça, assemelhando-se mais a um paletó. É possível perceber nas cenas em que discursa, que ela tem ombreiras. Sua imagem é mais polida que a dos demais moradores do Distrito: a imagem confiável de uma líder política. Todos são iguais, mas uns são mais iguais que os outros.
Se Katniss se torna garota propaganda da revolução em curso, Peeta (Josh Hutcherson) é utilizado pela Capital com a função de dissuadir as pessoas a fazerem parte do levante. Ele participa do programa de televisão de Caesar Flickerman (Stanley Tucci) e em sua aparição apresenta o mesmo estilo que anteriormente utilizava quando em turnê: paletó e acessórios todos em branco, com formas estruturadas e arquiteturais. Parece que está tudo certo, com exceção de um detalhe: o adorno pontiagudo em sua lapela, que espeta levemente sua garganta enquanto fala. É a pista que o figurino dá para a situação desconfortável em que o personagem foi colocado, como porta-voz de Presidente Snow.
Na aparição subsequente suas roupas se tornam escuras e mantém um adorno pontiagudo na lapela. Na última, seu blazer é recoberto de rosas e ele segura uma na mão. A flor é o símbolo de Snow e, junto com a mudança no estilo e na cor de sua roupa, além de sua aparência doente, externa o fato de que ele está sendo controlado pelo presidente. Esse traje final é rebuscado de uma forma que o aproxima de Caesar, que, afinal, é um apresentador chapa-branca. Vale lembrar que o próprio presidente não se veste dessa forma e sim de maneira minimalista, com formas simples e apenas a rosa na lapela como adorno. O rebuscamento passa uma imagem frívola que não condiz com aquela desejada por um bom governante.
Os filmes da franquia Jogos Vorazes sempre contaram com bons figurinistas e uma boa cobertura midiática em relação aos trajes exibidos. O trabalho no primeiro ficou por conta da veterana Judianna Makovsky e no segundo, de Trish Summerville. Esta é um ás da publicidade e os trajes que seriam exibidos na película foram amplamente divulgados antes de sua estreia. Mesmo tendo uma carreira sólida e esse ser um trabalho em uma franquia já plenamente estabelecida, é curioso perceber o quão pouco foi comentado ou divulgado sobre o figurino desenvolvido por Kurt & Bart. Apesar disso, a qualidade do que é exposto continua elevada e a continuidade estética entre os filmes permaneceu. Se nesse jogo de guerra a imagem dos participantes é essencial para a criação de empatia, nada como um bom figurino para ajudar a projetá-la e o de A Esperança - Parte 1 é funcional, tem elementos visuais interessantes, cria pontos pistas importantes na narrativa e faz jus aos seus antecessores.
É antropóloga e doutoranda em Antropologia Social pela USP, apaixonada por cinema e autora do blog Estante da Sala.