Nem só de trajes exuberantes e grandiosos se faz um belo figurino. A qualidade do trabalho está em atender as necessidades narrativas da película, construindo a história juntamente com os demais elementos envolvidos no seu feitio. Minha Vida em Cor-de-Rosa, um singelo filme francês de 1997, possui roupas contemporâneas casuais, mas que compõem de forma bastante precisa o universo retratado. Dirigido por Alain Berliner e com figurino de Karen Muller Serreau, narra a história de Ludovic (Georges Du Fresne), uma criança que acabou de se mudar com sua família para um bairro de subúrbio. Esta é constituída por seu pai, Pierre (Jean-Philippe Écoffey), sua mãe, Hanna (Michèle Laroque), dois irmãos e uma irmã.
Na abertura, a vizinhança se prepara para a festa de recepção do casal. As mulheres são mostradas sendo auxiliadas por seus maridos a entrarem em seus vestidos e todas se vestem em tons de rosa, vermelho e laranja, marcando uma feminilidade tradicional.
Durante sua primeira aparição, Ludovic deixa de lado uma boneca, calça sapatos de salto alto vermelhos, passa batom e coloca brincos longos. Esses são elementos-chave ligados a forma como se relaciona com sua identidade. Chega a hora de a família se apresentar e Ludovic sai de casa, com um vestido rosa e cabelos adornados com flores, expondo-se aos vizinhos e irritando seus pais.
Em sua família, os papéis são tão tradicionais que além de sua mãe sempre utilizar as cores já citadas, seu pai só se veste de azul.
Percebe-se que em outros locais, como na escola, as mulheres vão continuar utilizando o mesmo padrão, que é acompanhado por Ludovic.
As cores são inspiradas no Mundo de Pam, uma boneca estilo Barbie que preenche o imaginário da criança com fantasias e matizes fortes, presentes em objetos e outros elementos. Por isso, nessa primeira parte da história, parece que o sol está sempre iluminado as cenas e a fotografia capta as cores de forma intensa e brilhante. Esse mundo de cores alegres é aquele que melhor representa o ideal de feminilidade que a criança conhece. Ela pensava que, com a mudança de endereço, poderia ser da forma como se imagina e não como os demais a veem.
Os pais não compreendem Ludovic, que começa a fazer terapia. Mesmo lá sua preferência é por brinquedos que se ligam a um ideário a respeito de ser menina. A terapeuta arrisca fazer um diagnóstico psicologizante: os pais queriam ter dois filhos e duas filhas e projetaram seus desejos sobre a criança. Já Ludovic acha que foi Deus quem se enganou: anotou em seu livro que seria uma menina, mas na hora de jogar os cromossomos, um X se perdeu e o que chegou foi XY. Tenta, assim, buscar entendimento sobre o seu eu. Os irmãos se engajam em brincadeiras que não lhe são atraentes, mas que são esperadas para meninos, emulando agressividade. Tentando poupar os pais de maiores transtornos, até tenta se engajar em outras atividades, como futebol, mas isso não lhe agrada de verdade.
Apenas a vó não parece se importar com o que está acontecendo, compreendendo e conectando-se com Ludovic. Quebrando os paradigmas de gênero que reinam na sociedade local, ela é a única mulher que se veste de azul.
A reviravolta acontece em uma peça da escola: Ludovic rouba o papel de Branca de Neve e ocorre o seu desmascaramento na frente de todos, na cena final do beijo.
A família sai do local sob o olhar crítico de todos e a partir daí a masculinidade tradicional vai passar a oprimir Ludovic. Foi-se o Mundo de Pam e agora a fotografia passa a ser azulada e fria e todos se vestem de azul, até mesmo as mulheres.
A comunidade não mais aceita que a criança expresse sua identidade. Do seu jeito ela continua vestindo roupas em tons vermelhos. Sua mãe corta seus cabelos curtos e mesmo assim as ações de repúdio dos demais culminam no desemprego do pai.
Com a situação financeira precária, acabam se mudando para outro bairro, onde o pai arruma emprego. Logo que chegam, Ludovic faz uma amizade com Chris, uma criança da vizinhança. As mães se conhecem e rapidamente Hanna é convidada, juntamente com Ludovic, para a festa de aniversário de Chris. É interessante notar os elementos azuis que compõem as cenas, em contraste com a diversidade de cores da primeira metade do filme.
Na festa, Chris e Ludovico utilizam roupas que desgostam: princesa e espadachim, respectivamente. Por isso trocam de roupa entre si. As roupas presentam uma imagem de fragilidade e docilidade por um lado e de destreza e agressividade por outro. Hanna não entende o porquê de sua criança fazer o que faz e grita com ela, agredindo-a. Depois disso percebe que todos nessa nova comunidade aceitam Chris do jeito que é, e por isso ninguém estranha ou hostiliza Ludovic.
Após essa percepção, o sol volta a brilhar na festa de Chris, enquanto Pam reaparece.
Ludovic tinha apenas uma certeza: que quando crescesse seria mulher e poderia se casar com um belo vestido. Feliz por se mudar e poder expressar sua identidade trans, viu seus devaneios em cor-de-rosa serem temporariamente destruídos por um universo opressivamente azul, com padrões de masculinidade específicos que também eram esperados de si e em que jamais poderia se encaixar. Em seu imaginário, a construção do feminino passa por cores alegres, mundos fantásticos e sol radiante. Embora essa também seja visão limitada de gênero, é assim que sua mente infantil gostaria de construir sua realidade: como uma brincadeira de boneca cheia de vida e cor. São os adultos que são incapazes de entender sua vivência. E essa narrativa tão doce e tão bonita é construída eficientemente de forma lúdica através dos elementos do design de produção, especialmente o figurino.
É antropóloga e doutoranda em Antropologia Social pela USP, apaixonada por cinema e autora do blog Estante da Sala.