A música constantemente serviu de inspiração para grandes obras cinematográficas: mesmo antes do cinema sonoro, ela já estava lá transformando o ato de assistir a um filme em uma grande experiência audiovisual. Não é à toa que a sétima arte foi utilizada para a realização de musicais, e filmes sobre bandas ou gêneros específicos, como o rock. Muitas cinebiografias sobre musicistas foram feitas, e em 1984 foi a vez de Amadeus, filme sobre Wolfgang Amadeus Mozart, do diretor tcheco Milos Forman, com figurinos desenhados por Theodor Pistek e Christian Thuri.
Adotando o ponto de vista de Antonio Salieri, compositor da corte de José II da Áustria, Forman transforma sua narrativa em uma demonstração de conflito de gerações, conforme a professora Ana Lúcia Andrade no podcast sobre o diretor, mas também em um embate entre o talento natural e o esforço.
Boa parte da história do filme se concentra entre 1781, quando Mozart se estabeleceu em Viena, e 1791, ano de sua morte. A época é marcada pelo Rococó, movimento que nas artes e na moda traz o rebuscamento do Barroco, mas com uma maior leveza. Entre a nobreza europeia, vestidos possuíam saias volumosas e decotes generosos, chapéus eram fartamente decorados, casacas masculinas eram feitas em tecidos vistosos e perucas empoadas eram confeccionadas com penteados elaborados e cachos volumosos. Não havia distinção de gênero entre cores e padronagens: as roupas masculinas eram igualmente extravagantes.
Ilustração que retrata a moda no período Rococó.
Salieri começa o filme, ainda criança, pedindo a Deus que lhe conceda o dom da música, pois quer ser famoso. Com uma infância pouco privilegiada, já começa com a paleta de cores que adotará por quase todo o filme: de cinza e negro, alternando para o marrom, com detalhes em branco. Ele abre mão de toda a cor e quase todos os adornos, mantendo apenas o que era imprescindível na moda da época, como os lenços de renda no pescoço. Vive uma vida acética, dedicada à música, prometendo até mesmo sua castidade em troca do talento.
Já Mozart é mostrado ainda criança vestindo trajes em um tom claro de azul, encantando plateias nas cortes europeias com seus talentos musicais. O pai de Salieri dizia tratar-se de um macaco amestrado, divertindo os demais com truques treinados. O azul vai ser a cor principal da paleta do personagem, oscilando para o lilás e acompanhado de amarelo, demonstrando sua natureza sonhadora e infantil.
Conforme avança pela sua carreira, a qualidade de seus trajes e a riqueza dos bordados aumenta progressivamente. Sua ascensão é marcada pela percepção de Salieri de que não se trata de um macaco treinado, e sim um talento nato, que derrama notas musicais no papel com desembaraço, o que ele considera um dom divino. Salieri não pode entender como um jovem irresponsável pode ser abençoado com tal inspiração e compor obras tão belas, mas não pode deixar de admirar sua capacidade.
A esposa de Mozart, Constanza, também acompanhará sua paleta de cores, vestindo-se majoritariamente de azul e lilás.
Uma exceção marcante é quando, após pedir a Salieiri que ajude Mozart a conseguir um trabalho na corte, este pede para que ela retorne de noite em troca. O casal está com dificuldades financeiras, pois Mozart quer viver apenas da composição e não do ensino da música. Ela volta trajada em marrom, cor marcadamente do outro personagem.
Salieri costuma acrescentar tons de vermelho em seus trajes apenas na intimidade de seus aposentos. Sublimou as paixões da carne, trocando-as pela música e pelo consumo de doces.
Mas ele veste um colete vermelho intenso quando negocia com Constanza, parecendo pela primeira vez tentado a deixar para trás sua promessa. Quando ela retorna, ainda no mesmo dia, arrepende-se e a despreza, já sem o colete anterior.
As perucas utilizadas no filme não são necessariamente fieis ao que era utilizado na época. Especialmente Mozart, retratado como um menino prodígio de comportamento errático, usa perucas por vezes desgrenhadas, coloridas, ou com cortes repicados modernos.
Dada a época em que o filme foi feito, é possível ver nestas perucas certa influência da estética e postura irreverente das bandas pós-Glam Rock dos anos 80.
Twisted Sister, Poison e Bon Jovi: exemplos de bandas que,
nos anos 80, tiveram influência da estética glam.
Devido aos excessos já citados nas cortes da época, havia grande preocupação de que a arte não tivesse cunho político, pois o descontentamento da população crescia e veio a culminar na Revolução Francesa, que começou dois anos antes da morte de Mozart, em 1789. O filme mostra tangencialmente que seus trabalhos desviavam deste tema. Apesar disso, o fato de optar pelo uso da língua alemã em muitas de suas óperas acaba tendo papel político, já que a língua era considerada bárbara e pouco adequada às artes. Em sua época de penúria financeira, escreveu peças para teatros populares e o uso de língua local permitiu que mesmo plateias pobres entendessem o que se passava em cena.
Plateia de origens variadas acessando a mesma obra.
Com cada vez menos dinheiro, o jovem, que até então se preocupava muito com a aparência, passa a vestir-se de forma desleixada e com perucas em péssimas condições ou sem nenhuma. Em certo momento chega a sair de casa em trajes de dormir.
Em sua última apresentação, adoentado e regendo A Flauta Mágica, abre mão de todos os adornos e tecidos bonitos e veste-se completamente de marrom, como Salieri.
Salieiri é incapaz de compreender a complexidade de notas que se formam e se compõem na mente de Mozart e pode apenas admirar-lhe o talento. Amadeus é um belíssimo retrato sobre talento, obsessão e inveja. O rico figurino, que demonstra a opulência, o exagero e o espirito perdulário que dominava as cortes europeias no final do século 18, é contrabalançado pelo uso de perucas para demonstrar o espírito criativo e contestador que diferenciava Mozart dos demais.
É antropóloga e doutoranda em Antropologia Social pela USP, apaixonada por cinema e autora do blog Estante da Sala.