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LOVELACE Vestindo o Filme

Cinebiografias geralmente demandam trabalhos intensos de recriação de período por parte da equipe de design de produção. O figurino fica aí incluído e, além da recriação da época através de roupas com cortes familiares ao espectador, por vezes é necessário refazer peças específicas utilizadas pela pessoa retratada. Este ano de 2013 está repleto de filmes do gênero, começando com Behind the Candelabra, Jobs e Rush - No Limite da Emoção, até os ainda não lançados Grace of Monaco e Diana.

Lovelace é mais um deles: dirigido por Rob Epstein e Jeffrey Friedman, é baseado na história da atriz Linda Lovelace, que protagonizou o sucesso pornográfico Garganta Profunda. Através do trabalho da figurinista Karyn Wagner, temos uma visão do período, que vai de 1972 até o final da década. Considerada uma época de excessos, com resquícios de influência da estética hippie e da contracultura e a ascensão da discoteca, muitos a consideram um momento em que o mau gosto predominou. A verdade é que com as influências certas, muitas roupas bonitas marcaram o período. Wagner trabalhou com as modelagens da década e apenas evitou o excesso de cores fortes. O resultado é um figurino realista, interessante e muito bonito.

Ao começo da película, Linda (Amanda Seyfried), ainda com sobrenome Boreman, tem 21 anos e mora com os pais, Dorothy (Sharon Stone) e John (Robert Patrick). Com uma vida regrada e horários controlados por eles, eventualmente sai com as amigas para se divertir. Linda é retratada como uma jovem recém-saída da adolescência e que veste roupas bastante casuais. Shorts curtos e de cintura bem alta utilizados com camisetas ou batas floridas compõem seu guarda-roupa. Um destaque é o short de camurça, acompanhado de botas de cano longo que usa para dançar na pista de patinação. Também veste para sair um casaco longo de tricô com padronagem geométrica que terá significado posterior.

Após casar-se com Chuck Traynor (Peter Sarsgaard) ela deixa de ser aquela garota. Chuck passa a controlar suas roupas e, pelo menos em público, ela deve se vestir de forma provocante. Uma peça que se destaca é o macacão de veludo roxo, usado com uma blusa de renda branca. O veludo é considerado um tecido sofisticado e sensual, mas aqui aparece em uma peça informal. O conjunto é bastante bonito. Wagner, em diversas entrevistas, afirma que Linda era proibida de usar roupas íntimas sob seus vestidos, como percebemos com o branco que usa na festa em que conhece Hugh Hefner (James Franco). A nudez, mesmo que não percebida, lhe conferia vulnerabilidade, deixava-a sem escudos contra a multidão ao seu redor, ainda que sempre sorrindo. 

A fragilidade da personagem é acentuada quando descobrimos o ciclo de abusos impingidos por seu marido. Chuck batia nela e a obrigou a se prostituir e fazer os filmes pornográficos. No filme, todas as vezes em que Linda pede ajuda, chamando atenção para a sua situação, ela volta a vestir o casaco de tricô que usava para sair quando ainda morava com os pais. Embora eles fossem controladores, a casa deles ainda era uma memória de segurança para ela.

As calças jeans eram do modelo boca-de-sino, extremamente justas nos quadris, com cintura alta e pernas amplas abaixo do joelho. O modelo era utilizado tanto por homens quanto por mulheres, sendo que elas geralmente a usavam com sandálias de plataforma. 

Na moda masculina, muito menos conservadora que hoje, utilizavam-se, além das já comentadas calças justas, camisetas e camisas coloridas, blazers com lapelas amplas e ternos em cores como branco ou azul claro. No filme, nós vemos exemplos de todos esses itens. Esse foi o único período após a Revolução Francesa em que foi permitido que a moda masculina objetificasse os homens da forma como acontecia na moda feminina. Na virada do século 18 para o século 19, os adornos, cores e estampas foram eliminados da vestimenta masculina, por serem vistos como prova da suposta feminilidade da nobreza e foram trocados pelos ternos pretos e ascéticos da burguesia. Por um breve momento no século passado o corpo masculino volta a ser destacado, bem como os elementos acima mencionados.

Algumas peças de vestuário de Linda são interpretações de outras por ela utilizadas na vida real e que possuem registros fotográficos. O exemplo mais próximo ao original é o vestido branco com babados na gola, já citado. Além dele, o próprio vestido usado em cena no Garganta Profunda é refeito, com corte bastante semelhante, mas em tons de lilás ao invés de preto e branco.

O maiô vermelho usado na sessão de fotos promocionais do filme também teve seu decote fechado trocado por um aberto, mantendo a argola na sua frente. E, por fim, o icônico vestido vermelho com bolinhas utilizado em um ensaio para a capa da revista Esquire foi remodelado, com um tom mais fechado, decote maior e golas pontudas, ao invés de redondas. O chapéu original, que hoje pode ser visto como quase infantil, foi substituído por um de abas largas, modelo que foi muito utilizado no período. Todas essas alterações feitas por Wagner visam não fazer uma transcrição literal dos acontecimentos ou da época e, sim, adaptá-los para a estética vigente hoje em dia, traduzindo-os numa linguagem facilmente assimilada.

Ao final, após alguns anos, quando Linda está separada de Chuck, ela é, em um primeiro momento, retratada como uma mulher que usa as roupas para se proteger e não mais ser usada por aqueles em torno dela. Formas amplas e conservadoras são utilizadas para esse fim. Reconciliada com sua própria história e já casada novamente e com filho, ao visitar seus pais para fazer as pazes, veste uma singela bata branca com estampa de flores, padronagem que não usava desde que saíra da casa deles. A blusa florida simboliza sua aceitação de volta na sociedade, agora que proclama que seu papel é “ser mãe e esposa” e atua dentro dos preceitos esperados de feminilidade tradicional. Afinal, a mesma sociedade que consome a pornografia não pode permitir uma vida digna e sem julgamentos a suas atrizes. A roupa transmite a tranquilidade e paz de espírito que o desfecho retrata, ao mesmo tempo em que confere maturidade e um certo ar matronal à personagem. 

Lovelace funciona muito bem como um retrato de um período, filtrado através do nosso olhar contemporâneo. Karyn Wagner nos trouxe peças de vestuário que estavam na moda acompanhadas por outras adaptadas para remeter à época, sem precisar ser literal. Juntamente com a cenografia competente, o figurino nos transporta para os anos 70. A inocência da juventude de Linda e sua vulnerabilidade em etapas posteriores de sua vida ficam patentes. O resultado final é uma sucessão de vestimentas marcantes e de grande beleza.

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Sobre o autor:

É antropóloga e doutoranda em Antropologia Social pela USP, apaixonada por cinema e autora do blog Estante da Sala.

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