“Tenha coragem e seja gentil.”
O mais popular de todos os contos de fadas já foi adaptado para o cinema diversas vezes, mas a animação da Disney Cinderela, de 1950, continua sendo a mais famosa. Agora, o próprio estúdio recriou o conto de Perrault em uma versão live-action de mesmo título. Ao contrário de outras adaptações recentes que construíram mundos mais sombrios, como Malévola (leia a coluna sobre o longa aqui), esta manteve a atmosfera infantil e mágica. Dirigido por Kenneth Branagh, o filme conta com figurino da veterana Sandy Powell, que trabalhou com Scorsese nas últimas seis produções do cineasta e foi premiada com o Oscar em três ocasiões: Shakespeare Apaixonado, em 1999; O Aviador, em 2005, e A Jovem Rainha Victoria, em 2011.
Todos já conhecem a história: a jovem protagonista chamada Ella (Lily James) perde a mãe ainda quando criança e seu pai, um mercador constantemente em viagem, volta a casar. Além de sua Madrasta (Cate Blanchett), juntam-se a sua casa duas irmãs, Drisella (Sophie McShera) e Anastasia (Holliday Grainger). Após a morte de seu pai em terras distantes, Ella, agora apelidada de Cinderela, é maltratada pela Madrasta e pelas irmãs e passa a servi-las como única empregada da casa, uma vez que sua situação financeira piora.
Ella utiliza um vestido simples, azul claro com flores rosas quase imperceptíveis. Tanto a estrutura do tronco em corpete quanto o franzido em forma de V na parte frontal ajudam a criar a impressão de uma cintura mais fina. Nos pés, ela calça uma sapatilha também azul, mas que se desgasta e encarde com o passar do tempo. Esse traje, juntamente com outros do filme, vai mostrar que a fantasia se passa em uma época não determinada da história que faz uso de elementos da moda europeia do século XIX, sem necessariamente fixar-se nesse período e mesclando-os com outros de diferentes épocas.
A Madrasta é uma mulher intrigante. Seus trajes são uma mistura de épocas: são construídos como se fossem uma versão de 1940 de roupas de 1840. É fácil perceber que ao invés de ter corpetes, possui cintura marcada por cintos, ombros estruturados de maneira ampla e o busto em forma mais cônica, como ditava a moda da década citada do século XX. Diversas vezes sua saia é justa e reta, como uma saia lápis, com outra maior por fora que confere o volume necessário para passar a ideia de pertencer ao século XIX. Essa imagem é complementada pelos cabelos penteados com curvas e pelos chapéus com abas muito largas.
Traje de luto e, à direita, croqui de Sandy Powell
Vestido de baile e seu croqui correspondente
Marlene Dietrich e Joan Crowford são citadas como inspirações para a criação das peças. A elegância da Madrasta é completada pelo uso de cores frias em tons de pedras preciosas, como esmeralda e safira, geralmente com preto como complemento. Como acontece frequentemente, a vilã utiliza as roupas mais interessantes.
À esquerda, Marlene Dietrich; à direita, Joan Crowford
As irmãs Drisella e Anastasia funcionam como alívio cômico. Mesmo sendo belas, são gananciosas e competitivas. Suas roupas são sempre iguais, mesmo que uma tente superar a outra. A primeira sempre se veste em amarelo e a segunda, em rosa. Dessa forma, as duas também contrastam com o constante azul de Ella. Além disso, a moda que seguem (ou criam) é absurda, beirando o ridículo.
As irmãs e o croqui do traje idealizado pela figurinista
Kit (Richard Madden), o príncipe, veste roupas com inspiração militar, como jaquetas adornadas acompanhadas de calças justas de montaria, geralmente brancas, e botas. Azul claro é a cor que mais usa, embora combinada com outras, como o branco, já citado, o dourado e o verde. Sua paleta é bastante clara em comparação ao que era vigente na moda masculina de 1840, como se pegasse emprestado elementos do século XVIII, quando os homens das cortes europeias vestiam-se de forma mais elaborada e colorida.
A Fada Madrinha (Helena Bonham Carter) marca a presença da magia no filme. Primeiramente aparece como uma idosa pedinte, em um traje com textura e tons orgânicos que remetem a uma árvore. Depois, já transformada, vestindo algo “mais confortável” em suas palavras, utiliza um vestido que se estrutura como se fosse do século XVIII, com corpete curto e saia com anquinhas amplas nas laterais, além de gola rendada. O conjunto é iridescente e furta-cor e Sandy Powell afirma que pequenas lâmpadas de LED foram utilizadas sob as camadas de tecido para ampliar o efeito. As pequenas asas nas costas foram pedidas pela atriz.
Quando chega o grande dia do baile, Ella usa um vestido rosa que havia pertencido à sua mãe. Mas, para evitar que ela vá ao evento, a Madrasta o rasga.
A Fada Madrinha cria um vestido novo, dessa vez em cor azul. Os ombros largos, adornados com pequenas borboletas, contrastam com a cintura marcada pelo corpete que, oposta à saia volumosa, cria uma silhueta extrema em ampulheta. A saia é composta por uma crinolina (uma espécie de estrutura em forma de gaiola) leve, que sustenta a base. Sobre ela, a anágua, adornada com muitos babados na barra para que possam ser vistos quando Ella caminha. Por fim, doze camadas de tecido finas, que vão do branco ao azul, passando pelo lilás, e que juntas compõem a cor única da saia. Embora com toda essa estrutura e complexidade, o vestido parece leve e move-se de maneira bonita.
Croqui do vestido de baile de Ella
A cor azul contrasta com as demais convidadas do baile: a riqueza e variedade dos tecidos utilizados nas figurantes é grande, mas eles apenas emolduram a presença de Ella.
Quanto ao sapatinho de cristal, ele foi desenhado por Sandy Powell e confeccionado pela Swarovski. Cópias extras foram feitas em outros materiais para determinadas cenas. Lily James jamais o calçou, pois são impossíveis de utilizar. O que é visto em seus pés é uma versão em computação gráfica que cobriu uma réplica em couro no mesmo formato. Vale notar que Ella menciona diversas vezes como o sapato é confortável, mas tanto o material como o formato, e especialmente o tamanho do salto que deixa os pés quase na vertical, passam a impressão oposta.
Destaque para os animais que foram transformados em lacaios para Ella. Suas librés remetem às suas próprias espécies: casaca longa com calda verde para os lagartos e traje branco com meiões em laranja para o ganso.
O final feliz se traduz em matrimônio e o vestido de casamento de Cinderela é confeccionado em cor clara, com silhueta simples e diversas flores bordadas, de forma a lembrar que ela é uma rainha-camponesa e ligada à natureza ao seu redor.
Cinderela é um filme infantil que adapta o conto de fadas da forma romantizada que os estúdios Disney costumam fazer. Seguindo essa lógica, o figurino de Sandy Powell é estilizado, mistura elementos de diversos períodos históricos e faz uso de certos exageros para ressaltar a magia presente na trama. O visual é bonito e trabalha alinhado com a direção de arte bastante adequada à atmosfera pretendida.
É antropóloga e doutoranda em Antropologia Social pela USP, apaixonada por cinema e autora do blog Estante da Sala.