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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
18/03/2021 18/03/2021 4 / 5 4 / 5
Distribuidora
Warner/HBO Max
Duração do filme
242 minuto(s)

Liga da Justiça de Zack Snyder
Zack Snyder´s Justice League

Dirigido por Zack Snyder. Roteiro de Chris Terrio. Com: Ben Affleck, Gal Gadot, Henry Cavill, Jason Momoa, Ray Fisher, Ezra Miller, Amy Adams, Diane Lane, J.K. Simmons, Connie Nielsen, Robin Wright, Karen Bryson, Amber Heard, Jared Leto, Jesse Eisenberg, Ciarán Hinds, Ray Porter, Harry Lennix, Joe Manganiello, Joe Morton, Jeremy Irons e Willem Dafoe.

Estabelecida pelos críticos-realizadores que dariam vida à Nouvelle vague quando ainda escreviam nas páginas da “Cahiers du Cinéma” (Truffaut em particular), a teoria do autor – posteriormente importada para os EUA por Andrew Sarris – situava na figura do diretor a identidade autoral na criação cinematográfica. Não se tratava de insistir que a Sétima Arte era uma forma de expressão que sempre refletia as sensibilidades estéticas, narrativas ou temáticas dos cineastas, mas sim que havia diretoras(es) que conseguiam imprimir sua visão em boa parte de suas obras, mesmo quando estas eram produzidas sob a supervisão rigorosa de um estúdio – e, claro, estes tendiam a ser os criadores mais admirados pelos então jovens críticos.


Pois goste-se ou não de Zack Snyder, creio não ser controverso apontá-lo como um autor – e basta comparar sua interpretação de Liga da Justiça à de Joss Whedon para constatar isto, o que mais do que justifica a inclusão de seu nome no título do filme. Reconstituída a partir do material descartado por Whedon quando assumiu o projeto depois que Snyder o deixou por uma série de questões (incluindo o trágico suicídio da filha), esta versão representa uma experiência completamente distinta daquela lançada em 2017 mesmo contando basicamente uma história quase idêntica. E ainda que eu não considere o “original” tão pavoroso quanto a comunidade de fãs DC insiste em considerá-lo, é impossível não constatar a diferença entre um projeto finalizado por um comitê e outro que traz uma voz definida em sua concepção.

Com roteiro creditado somente a Chris Terrio (o que indica que todas as contribuições de Whedon foram removidas), a Liga da Justiça de Zack Snyder se divide em seis capítulos e um epílogo que reencontram Bruce Wayne (Affleck) mergulhado em culpa pela morte do Superman (Cavill) no filme anterior e determinado em reunir o grupo de “meta-humanos” composto por Mulher-Maravilha (Gadot), Aquaman (Momoa), Flash (Miller) e Cyborg (Fisher). Esta decisão revela um bom timing, já que a Terra está prestes a ser atacada pelo Lobo da Estepe (Hinds), que pretende reunir três caixas míticas deixadas sob o cuidado das amazonas, dos atlantes e dos humanos há milhares de anos depois que estes derrotaram seu mestre Darkseid (Porter) em uma batalha – algo que resultará na destruição do planeta.

Durando quatro horas e dois minutos (sim), este Liga da Justiça é, como podem imaginar, um projeto cuja autoindulgência se torna patente em várias cenas que pouco ou nada acrescentam à narrativa e cuja inclusão sugere uma falta de discernimento (ou, sendo caridoso, excesso de apego ao material) que resulta em passagens que qualquer montador experiente tenderia a deixar na lixeira do computador, já que não movem a trama, não contribuem para a atmosfera do filme e nem ajudam a desenvolver os personagens. Exemplos claros disso podem ser encontrados no longo ritual das amazonas envolvendo uma flecha, na sequência em que Aquaman resgata um pescador no meio de um temporal e em todo o movimento do cientista Silas Stone (Morton) quando um falso sinal de contaminação é disparado em seu laboratório, quando se recusa a deixar o local, corre de um lado para outro para desativar o alarme, é bem-sucedido e entra em contato com sua equipe para que retornem... apenas para mudar de ideia, cancelar a ordem e deixar o prédio ao perceber que o filho estava por trás do incidente (e não, a breve troca de olhares entre os dois não representa uma mudança significativa no status de sua relação). Se somarmos estes e outros momentos ao excesso de câmeras lentas, ao menos 30 minutos poderiam ser subtraídos do longa sem prejuízo. (Por outro lado, o que seria um filme de Zack Snyder sem excesso de câmeras lentas?)

Igualmente desnecessária é a decisão do diretor de adotar uma razão de aspecto reduzida, de 1.33:1, para (segundo declarou em entrevistas) “manter a sensação da tela IMAX” – o que não faz o menor sentido quando consideramos que a experiência IMAX está muito mais relacionada ao tamanho colossal da tela (algo ausente no streaming, obviamente) do que à razão de aspecto em si. (Uma outra justificativa de Snyder é a de que os personagens são figuras “mais verticais do que horizontais”, o que... bom, invalidaria o uso de widescreen em qualquer projeto.) Como resultado, Liga da Justiça torna seu universo bem menos grandioso e bem mais claustrofóbico – o que, aliado à forte dessaturação da paleta de cores, torna o filme apenas desinteressante de um ponto de vista puramente plástico. Em vez de peso dramático, há apenas... tédio visual.

O mais irritante, no entanto, é perceber que mesmo com quatro horas à sua disposição, Snyder ainda abusa dos diálogos expositivos, demonstrando também uma triste tendência à pieguice – algo sintetizado pela cena em que uma garotinha, depois de ser salva pela Mulher-Maravilha, pergunta se “pode ser como ela algum dia”, recebendo uma resposta que deveria soar inspiradora, mas que é apenas mentirosa: “você pode ser o que quiser”. (Estejam avisados, jornalistas de Gotham City: se algum dia uma menina despencar de um prédio segurando um laço, a responsabilidade é de vocês-sabem-quem.) Ainda pior, contudo, é o hábito do realizador de incluir músicas incidentais que mastigam os sentimentos dos personagens para o espectador: quando Lois Lane (Adams) caminha em luto – e em câmera lenta – por Metropolis, ouvimos Nick Cave cantando “eles disseram que nossos deuses sobreviveriam a nós”; quando o Flash salva uma jovem de um acidente de carro, é a vez de Tim Buckley declarar “aqui estou eu esperando para te abraçar”; e, mais tarde, quando Aquaman caminha por um píer, Nick Cave retorna recitando “há um reino, há um rei e ele é tudo”. (A propósito: o herdeiro de Atlântida tem um hábito de tirar a camisa que rivaliza com o do Jacob da série Crepúsculo.)

E ainda assim, apesar de todos estes problemas, Liga da Justiça de Zack Snyder tem virtudes que, no balanço final, o transformam em um filme bem mais sólido do que o de Joss Whedon, já que acerta em pontos fundamentais nos quais aquele tropeçava – começando pelo fato de que desta vez a narrativa faz jus ao título ao contar a história de um grupo, não apenas a de Batman e Mulher-Maravilha cercados por coadjuvantes. Dedicando espaço para apresentar e desenvolver todos os integrantes da Liga, o longa ilustra como Aquaman é visto como um deus pelo povo de um vilarejo ao trazer as mulheres locais entoando um cântico reverente enquanto retorna ao mar; expõe as dificuldades de Flash para juntar dinheiro a fim de financiar seus estudos, apresentando também seus poderes na já citada cena do acidente de carro; e – na melhor das alterações - expande a história de Cyborg para explorar sua origem, seus poderes e sua relação com o pai, tornando-o uma figura infinitamente mais interessante e complexa do que a da outra versão.

As relações problemáticas entre pais e filhos, diga-se de passagem, funcionam como centro temático da obra, sendo refletidas não apenas no mais do que conhecido trauma de Bruce Wayne, mas também no “exílio” de Diana Prince, na prisão (aparentemente injusta) do pai de Barry Allen por matar a esposa, no ressentimento de Arthur Curry com relação à mãe, na dinâmica hostil entre Victor e Silas Stone e, claro, no conflito de Clark Kent entre seus pais biológico e adotivo. Além disso, Snyder evita diluir o peso das situações vividas por seus heróis ao remover a maior parte das piadinhas presentes no lançamento de 2017, comprovando a suspeita de que haviam partido de Whedon, e limitando o humor praticamente às intervenções do Flash. Do mesmo modo, ele elimina a hostilidade entre Aquaman e Cyborg, substituindo-a por uma tocante fala do primeiro ao demonstrar compaixão diante das dificuldades vividas pelo segundo, o que é bem mais orgânico. Para finalizar, se antes Superman era ressuscitado com pouco mais de uma hora de projeção, aqui a espera dura 2h40, criando uma expectativa bem mais condizente com seu significado – e, ainda melhor, a chegada do herói no confronto final representa um dos momentos mais geniais de todos os filmes que trouxeram o personagem (duas palavras: “Not. Impressed.”).

Mas não são apenas os membros da Liga que têm desenvolvimento mais eficaz: se antes Lobo da Estepe era “um fracasso absoluto” (como o descrevi em minha crítica), aqui não apenas seu visual se torna bem mais inventivo e imponente como suas motivações são mais interessantes do que simplesmente “destruir o mundo!”, envolvendo o desejo de retornar ao seu lugar de origem e apaziguar Darkseid, que visivelmente o intimida. De maneira similar, as explicações sobre as tais caixas são mais detalhadas, o que inclui a importante alteração de trazer este último na batalha narrada por Diana em vez de seu subordinado (por outro lado, a inclusão dos nazistas na trajetória de uma das caixas é tão gratuita e descartável que só posso atribui-la a um desejo de homenagear Os Caçadores da Arca Perdida).

Ampliando também a duração e a escala da batalha final sem jamais torná-la confusa (neste aspecto, Snyder dificilmente desaponta, já que costuma estabelecer sua mise-en-scène com clareza), Liga da Justiça elimina a presença de civis no clímax, algo que soava bastante forçado, e inclui um aspecto envolvendo o Flash que, ao seu próprio modo, faz uma referência curiosa ao Superman original e que me pareceu bastante apropriada. E, assim, é uma pena que em vez de encerrar sua história logo depois, o cineasta decida incluir um longo epílogo que fará o ato final de O Retorno do Rei parecer conciso em comparação – além de trazer uma breve, embaraçosa e absolutamente inútil aparição de Jared Leto apenas para eliminar qualquer dúvida de que a sua versão do Coringa é a pior que já existiu ou existirá.

E apenas por evitar que Leto retorne ao papel já sinto alívio em saber que, apesar de todas as virtudes da visão de Snyder, sua planejada continuação provavelmente jamais sairá do papel. Quatro horas de filme eu posso até aguentar, mas um minuto a mais deste Coringa me faria desistir da profissão.

Observação: em determinado instante do filme, Bruce Wayne passa diante de um outdoor que anuncia o site de uma fundação de prevenção do suicídio – uma tocante lembrança da morte da filha do diretor. Por aqui, um serviço similar é prestado pelo CVV.

18 de Março de 2021

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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