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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
11/03/2021 31/12/2020 5 / 5 5 / 5
Distribuidora
Duração do filme
97 minuto(s)

Meu Pai
The Father

Dirigido por Florian Zeller. Roteiro de Florian Zeller e Christopher Hampton. Com: Anthony Hopkins, Olivia Colman, Olivia Williams, Imogen Poots, Rufus Sewell, Mark Gatiss, Ayesha Dharker.

Nossa compreensão de quem somos como indivíduos é, em grande parte, definida por nossas memórias e por nossas percepções do que vivemos todos os dias. Assim, quando as primeiras se perdem e as últimas deixam de ser confiáveis, o resultado é o horror de uma consciência fraturada, de um senso de identidade fragilizado, mesmo destruído, que transforma tudo e todos em algo estranho, desconhecido, ameaçador por se apresentar familiar quando parece não ter sentido algum. Neste aspecto, as doenças neurológicas degenerativas que afetam estes dois aspectos – memórias e percepções – são possivelmente as mais cruéis, destruindo a essência de sua vítima enquanto seu corpo permanece vivo, transformando-a numa concha vazia. Ou pior: que abriga, aprisionada, a consciência torturada de alguém amedrontado e incapaz de escapar de um pesadelo sem fim.


Meu Pai é um filme que busca compreender e retratar, através da relação entre um pai idoso e sua filha preocupada, como este mergulho na demência (disparado seja lá por qual processo) é percebido por quem o vive e por quem o testemunha. Se Anthony (Hopkins) se vê cada vez mais atordoado diante de um mundo que faz cada vez menos sentido racional, Anne (Colman) é obrigada a assistir ao apagamento gradual do pai e a enfrentar a frustração crescente que este exibe enquanto desaparece. É uma obra triste com cores de terror; um estudo de empatia que tenta colocar o espectador na mente de um homem enquanto este a perde.

Esta estratégia narrativa do roteiro escrito por Christopher Hampton e Florian Zeller a partir da peça teatral concebida por este último pode ser constatada já na introdução do longa, quando vemos Anne caminhando em direção ao apartamento do pai enquanto ouvimos a ária “What Power Art Thou?” como algo não-diegético (presente apenas na trilha, não no universo dos personagens) até encontrarmos o protagonista e este interromper a música ao retirar os fones de ouvido que usava para escutá-la – estabelecendo o ponto de vista subjetivo que acompanharemos durante quase toda a obra (e que encontra-se presente também no ótimo O Som do Silêncio, que concorre com Meu Pai ao Oscar, e que remete também ao soberbo O Escafandro e a Borboleta).

O resultado é que, como Anthony, não podemos confiar no que vemos ou ouvimos durante boa parte da narrativa, já que espaço e tempo parecem sofrer alterações – grandes ou pequenas – quase que de cena para cena. Quando Anne chega ao apartamento do pai pela primeira vez, por exemplo, podemos ver um pequeno piano no canto da sala, mas mais tarde uma cômoda ocupa seu lugar; aliás, a própria planta do imóvel é difícil de compreender, já que, com exceção do quarto do personagem-título ao fim do corredor (seu porto seguro), tudo aparenta mudar de lugar continuamente, incluindo portas que se abriam para uma sala e que subitamente passam a revelar um armário. Da mesma maneira, a cronologia chega a se tornar circular em algumas passagens, com cenas que têm início com diálogos que voltam a ser ouvidos no fim como se jamais houvessem sido ditos – e até mesmo o rosto de Anne muda em uma cena (quando Olivia Colman é substituída pela igualmente talentosa Olivia Williams). Não deixa de ser curioso, portanto, que Zeller, que aqui estreia como cineasta, tenha convidado Christopher Hampton para ajudar a adaptar sua peça, já que este roteirizou outro filme que jogava brilhantemente com nossa percepção do que era “real” ou não: Desejo e Reparação.

É essencial, porém, observar como toda esta abordagem é enriquecida pela performance de Anthony Hopkins, que aqui exibe registros dramáticos pouco explorados em sua carreira pós-O Silêncio dos Inocentes – especialmente a vulnerabilidade, já que, fortes ou apenas estoicos (com em Vestígios do Dia), seus personagens raramente se entregam ao desespero ou soam frágeis a ponto de despertar nossa preocupação com seu bem-estar (e por mais que tente, não consigo lembrar de uma cena em que o ator tenha se mostrado tão indefeso quanto algumas vistas neste trabalho). Parecendo encolher ao longo da projeção à medida que tudo se torna mais desconexo, Hopkins já sugere a confusão de seu personagem nos minutos iniciais, quando caminha de um lado a outro como se procurasse algo que não sabe exatamente o que é enquanto tenta não se perder na conversa com a filha (e suas tentativas de esconder sua perturbação são tão comoventes quanto transparentes). Assim, é fácil compreendermos a frustração e a raiva crescentes que demonstra não só por sentir-se perdido, mas por perceber sua dignidade se esvaindo – como, por exemplo, ao não querer ser visto de pijama pela nova cuidadora contratada pela filha ou ao ser tratado como criança pela moça (Imogen Poots).

Ao mesmo tempo, Olivia Colman encarna Anne de modo sensível, ilustrando seu amor e sua dedicação pelo pai mesmo quando este, movido por doença e mágoas, a surpreende com insultos. Não menos tocante, por sinal, é sua alegria ao ouvir um elogio inesperado ou ao reconhecer brevemente a velha personalidade de Anthony quando este faz uma brincadeira durante o café da manhã. Nestes momentos, é como se a exaustão da filha desaparecesse por alguns segundos, permitindo que tenhamos vislumbres de uma relação que, mesmo complicada, continha amor suficiente de ambas as partes para inspirar tamanho cuidado e lamento.

Retrato trágico de um homem que se desfaz, Meu Pai encontra, em seu apartamento, não apenas uma ambientação, mas também uma metáfora, já que, à medida que o filme caminha, o imóvel vai sendo desmontado: quadros somem das paredes, cadeiras se empilham num canto do corredor e estantes têm os livros removidos – como se a casa se esvaziasse como seu ocupante.

E o que resta, ao final, é um espaço físico – de carne ou cimento – que, antes preenchido de vida, agora guarda apenas os ecos de amores, tristezas, sonhos e desapontamentos que o tornavam único e lhe conferiam uma identidade agora ausente.

23 de Abril de 2021

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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