O espaço dessa coluna sempre foi utilizado para discutir figurinos no cinema, ora partindo para interpretações subjetivas, ora pensando em termos de contexto histórico ou social. Invariavelmente escapam análises que vão para além do figurino e se estendem para a direção de arte como um todo, mas também para temas relacionados à representação, especialmente em se tratando de gênero. Dessa vez, a proposta desse texto vai ser um pouco diferente: ao invés de focar em um filme, vou levantar alguns pontos a respeito dos figurinos utilizados por personagens femininas em filmes de ação e aventura, especialmente a falta de praticidade e de conforto proporcionada por eles. O foco é o cinema, mas como muitas vezes as mídias dialogam entre si, quadrinhos, videogames e séries de televisão também serão citados.
Star Wars: Episódio VII - O Despertar da Força não estreou ainda, mas muitas pessoas já o esperam ansiosamente. Há poucos dias, no Facebook oficial da franquia, um fã deixou um comentário a respeito de uma nova personagem, Capitã Phasma, cuja imagem já havia sido divulgada. Ele afirmou o que pode ser traduzido como: “Não quero ser sexista, mas é realmente difícil para mim dizer que essa é uma armadura feminina”. O “não quero ser sexista, mas...” já era sintomático, mas a equipe de social media da página respondeu de forma clara: “É uma armadura. Em uma mulher. Ela não precisa parecer feminina”.
Imagem do comentário deixado na página de Star Wars e da resposta a ele
Capitã Phasma, em foto divulgada pela revista Vanity Fair
O figurino de Star Wars é desenhado por Michael Kaplan, que começou sua carreira em Blade Runner (cujo figurino já foi analisado aqui) e essa personagem em particular tem o visual claramente inspirado nas roupas de stormtroopers dos outros filmes da franquia. Mas mesmo que não fosse o caso, a questão aqui é a sua proteção. Independente do gênero, essa é (ou deveria ser) a função de uma armadura. Uma armadura tradicional, feita para uma narrativa que se passa em um contexto medieval, de ficção científica ou de fantasia, vai ter, basicamente, as mesmas características. As placas principais vão cobrir cada parte das pernas e braços, um elmo ou capacete para a cabeça e uma grande placa peitoral para o tronco. As juntas sempre são o ponto fraco em se tratando da segurança, pois não podem ser rígidas para preservar a mobilidade.
Mas o mais importante é: quem veste a armadura não está nu por baixo. Aparentemente, pela expectativa de certa parte do público, esse fato pode parecer inacreditável, mas a verdade é que seios no peitoral não fazem sentido, uma vez que a placa não está em contato direto com o corpo, seguindo suas formas. Uma mulher ou homem não só utilizarão pelo menos um tipo de camisa por baixo da armadura, como também algum material acolchoado para evitar o impacto, de maneira que suas formas se perdem dentro da proteção. Mas, mais que isso, o ideal é que as laterais do peitoral tenham uma angulação maior que o peito da pessoa, para que lanças, flechas e outras armas arremessadas sobre ele deslizem sobre a superfície. Uma placa que tivesse o formato de seios faria sua portadora correr o risco de fraturar o esterno, pois a depressão entre eles funcionaria como uma cunha sob o impacto de um golpe.
Com seus impressionantes 1,91m de altura, a atriz Gwendoline Christie, que interpreta a Capitã Phasma, também encarna Brienne de Tarth na série de televisão Game of Thrones. Lá, a figurinista Michele Clapton também providenciou a ela uma armadura funcional e adequada às atividades da personagem. Percebe-se que a peça tem uma linha central no peitoral, marcando a inclinação para as laterais que ajuda na proteção.
Existem bons exemplos de mulheres vestindo armaduras funcionais no cinema. A rainha Elizabeth I da Inglaterra, interpretada por Cate Blanchett com figurino de Alexandra Byrne no filme Elizabeth: A Era de Ouro, de 2007, é uma delas. A Branca de Neve de Kristen Stewart em Branca de Neve e o Caçador, de 2012, é outra. Nesse caso, o figurino fica por conta de Colleen Atwood, que também foi responsável por O Silêncio dos Inocentes (cuja análise pode ser lida aqui). Ambas as personagens contam com proteções nos ombros e usam cotas de malha. A rainha veste uma peça decorada e talvez a cintura marcada não seja uma boa decisão, mas o peitoral tem um formato adequado. Branca de Neve ainda conta com calças de couro, bem como o braço de segurar o escudo no mesmo material.
Entre os lançamentos dessa última temporada do verão americano, Jurassic World: O Mundo dos Dinossauros também gerou muitos comentários a respeito de sua protagonista, Claire (Bryce Dallas Howard). Ela é retratada como uma pessoa rígida, focada no trabalho de administradora do parque e incapaz de se conectar com os sobrinhos que a estão visitando. Essas características são externadas pelo figurino impecavelmente claro, acompanhado de sapatos de salto alto beges, que destoam das roupas de lazer dos visitantes e das práticas dos demais trabalhadores do local. A personagem passa por todas as desventuras retratadas no filme sem jamais remover os fatídicos sapatos dos pés.
A ideia parece ser de mostrar que ela é capaz de tudo: administrar o parque, correr na mata e atrair um tiranossauro sem jamais tirar o salto, como se isso fosse empoderador. Não que se deva cobrar realismo em um filme repleto de dinossauros vivos, mas exigir resistência sobre-humana de uma personagem (que, como tal, foi escrita e idealizada dessa maneira por alguém) reflete apenas os padrões irreais com que as mulheres são retratadas no cinema. E isso é válido mesmo que a ideia tenha partido da atriz, afinal, esse é o meio em que ela está envolvida. Uma pessoa que tenha passado pela experiência de andar sobre um salto sabe que é humanamente impossível correr como Claire corre e por tanto tempo. O contraste com a Doutora Ellie Sattler (Laura Dern) não poderia ser maior. A paleobotânica foi representada à vontade com sua roupa adequada ao trabalho de campo no primeiro Jurassic Park (1993).
Não é à toa que em Tudo Por uma Esmeralda (1984), dirigido por Robert Zemeckis, o aventureiro John T. Colton (Michael Douglas) usa um facão para quebrar o salto dos sapatos de Joan Wilder (Kathleen Turner) quando ambos estão na selva.
Quando uma personagem é construída para ser uma profissional que lida com ação cotidianamente, isso tem que ser levado em conta. Por isso, a construção de Ilsa Faust, interpretada por Rebecca Ferguson no novo Missão: Impossível - Nação Secreta, funciona quase como uma resposta a Claire. Espiã experiente, em determinado momento da trama Ilsa se veste com vestido longo e fluido, que não impede seus movimentos, além de sandálias de salto alto. O conjunto é necessário como disfarce, uma vez que ela está em uma ópera, o que pede traje de gala. Ainda assim, quando ela precisa fugir ao lado de Ethan Hunt (Tom Cruise), prontamente pede para que ele retire seus calçados, pois sabe que eles não são ideais. No restante do longa, a espiã sempre utiliza botas sem salto, adequadas para corrida.
Há pouco tempo foi revelada a aparência da nova Mulher-Maravilha (Gal Gadot), que vai participar de Batman vs Superman: A Origem da Justiça, previsto para 2016, além de Liga da Justiça e de seu próprio filme solo, ambos marcados para 2017. O figurino é desenhado por Michael Wilkinson, que também trabalhou em Noé e Trapaça, cujos figurinos podem ser conferidos aqui e aqui.
Em primeiro lugar, a bota possui um salto bastante alto, disfarçado como anabela. Também é possível perceber que o corpete da personagem é feito de um material rígido, como uma carapaça. Ora, detentora de super-força garantida pela deusa Deméter e multiplicada por dez vezes pelo seu bracelete de Atlas, a heroína não tem necessidade de uma roupa com armadura. Se fosse o caso, uma com o contorno dos seios, como essa, seria mais perigosa do que segura, conforme já explicado. Além disso, ela necessitaria proteger braços e pernas também.
Como não precisa desse tipo de proteção, poderia se pensar em algum tipo de roupa mais prática para a movimentação. Os saltos definitivamente não se encaixam nesse quesito. É possível que sua hot pant tradicional também não seja a melhor opção e talvez calças confeccionadas em tecido com boa elasticidade o fossem. Foi assim que a personagem apareceu no seriado de 2011 Wonder Woman (que não passou do episódio piloto), quando foi interpretada por Adrianne Palicki.
Mesmo assim, as duas versões contam com outro ponto de desconforto: o corpete tomara que caia. Novamente, qualquer pessoa que já teve a experiência de usar essa peça de vestuário sabe que ela não é a ideal para correr e pular e provavelmente a personagem levaria a mão mecanicamente ao decote, puxando-o para cima de tempos em tempos.
Ainda que o tomara que caia faça parte do visual clássico da personagem, em se tratando de uma adaptação de cinema, tudo é possível. Os uniformes dos heróis nos quadrinhos foram originalmente inspirados pelas roupas de artistas circenses, mas cada um passou por diversos modelos e formas ao longo dos anos e a pessoa responsável pelo figurino tem liberdade para tomar decisões a respeito do resultado final que almeja. Tanto é que as cores escuras dessa versão cinematográfica com Gal Gadot em nada correspondem ao azul e vermelho abertos comumente associados à heroína. E de toda forma, em sua última encarnação nos quadrinhos ela já aparece com calças e uma blusa fechada, que jamais teimariam em cair.
Mesmo a Supergirl (Melissa Benoist) da série homônima que estreia neste ano mantém o uniforme tradicional, mas com botas sem salto, saia mais longa e camiseta simples, com punhos presos aos dedos, passando a ideia de que nenhum tecido atrapalha seus movimentos. As meias-calças provavelmente vão puxar um fio e desfiar na primeira atividade física, mas, no geral, é o tipo de roupa que não é imprópria à ação. O figurino aqui também é desenhado por Colleen Atwood.
As expectativas em termos de representação dos gêneros são bastante diferentes quando se leva em consideração o cinema de ação e aventura em geral. Tomemos um exemplo que talvez possa ser visto como extremo, mas que ilustra tal fato. Os dois personagens abaixo têm a mesma profissão, ainda que à primeira vista pareçam ter pouco em comum: ambos são arqueólogos.
Indiana Jones (Harrison Ford) teve seu visual com chapéu e jaqueta de couro estabelecido em Os Caçadores da Arca Perdida, de 1981, pela figurinista Deborah Nadoolman (que também trabalhou no clássico da sessão da tarde Um Príncipe em Nova York). Enquanto busca por suas relíquias entre as décadas de 1930 e 1950, o explorador tem as pernas resguardadas de qualquer eventual arranhão, enquanto a jaqueta protege seus braços e tronco.
Já Lara Croft (Angelina Jolie), personagem contemporânea adaptada dos videogames, apareceu em dois filmes: Lara Croft: Tomb Raider (2001) e Lara Croft: Tomb Raider - A Origem da Vida (2003). Em ambos ela foi vestida pela figurinista Lindy Hemming. O que mais chama atenção é que suas pernas estão completamente desprotegidas de qualquer tipo de impacto que possam receber. Novamente optou-se por manter a aparência que ela possuía nos jogos, ignorando que uma nova mídia permitiria a alteração desta. Vale notar que em 2013 a personagem passou por uma remodelação, deixando seu físico mais realista e trocando os shorts por calças.
Muitas vezes, figurinistas, diretores e demais responsáveis pela aparência de personagens femininas em filmes de ação e aventura as colocam em um papel fetichizado, desnecessário para o desenvolvimento da trama e especialmente das próprias personagens. Outras vezes, esse pode até não ser o caso, mas o retrato é preguiçoso e parece não levar em conta o ambiente em que elas estão inseridas e suas ações. As roupas de qualquer personagem, independente de gênero, deveriam ser pensadas de maneira a refletir as atividades que ele precisa desempenhar em cena. Personagens como Sarah Connor (Linda Hamilton), de O Exterminador do Futuro (1984), e Ripley (Sigourney Weaver), de Alien, o Oitavo Passageiro (1979), por exemplo, vestem uma roupa prática e um macacão de uniforme, respectivamente.
Ainda neste ano, Imperatriz Furiosa, interpretada por Charlize Theron, roubou a cena em Mad Max: Estrada da Fúria, vestindo figurino de Jenny Beavan. A personagem fácil e rapidamente se transformou em um novo ícone feminista, tudo isso com uma roupa que não só não a objetifica, como faz todo sentido estética e conceitualmente no cenário distópico proposto pelo longa.
Pelo menos metade do público consumidor de cinema é composto por mulheres, mas a quantidade de pessoas não deveria importar quando o que está em jogo é a construção de personagens. Todos os grupos deveriam ter direito de verem na tela constructos que façam sentido e não sejam meras caricaturas, fabricadas para o olhar de um público específico. Sim, trata-se de ficção e muitas vezes em mundos fantásticos, mas ainda assim, a representação de personagens femininas importa, e muito. Com um pouco mais de empatia por parte dos responsáveis é possível fazer filmes melhores.
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É antropóloga e doutoranda em Antropologia Social pela USP, apaixonada por cinema e autora do blog Estante da Sala.