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Mostra Indie 2015 - Dia 03 Festivais e Mostras

Um dos prazeres de mergulhar na programação de um festival reside na possibilidade de estabelecer conexões ou contrapontos entre filmes vistos em sequência. É fascinante, do ponto de vista de linguagem, observar como um diretor usa este ou aquele recurso para expressar uma ideia enquanto o realizador da obra seguinte pode ir na direção oposta ao buscar um efeito similar. Este tipo de mergulho sempre representa um aprendizado não apenas acerca das possibilidades da linguagem cinematográfica, mas sobre a humanidade em si.

Vejam, por exemplo, a sessão dupla que peguei no terceiro dia da Mostra Indie e que consistiu dos longas Alguns de Nós (Mūsų nedaug, 1996) e Conhecendo o Grande e Vasto Mundo (Poznavaya belyy svet, 1978): dirigidos, respectivamente, pelo lituano Sharunas Bartas e pela soviética (na realidade, romena) Kira Muratova, os filmes são influenciados, de um modo ou de outro, pela relação entre os realizadores e a cultura política e social da União Soviética. Bartas construiu sua carreira após a separação da Lituânia do bloco soviético (que, por sua vez, se desmancharia a seguir), enquanto Muratova floresceu durante o regime.

E, no entanto, seus filmes não poderiam trazer visões mais diferentes acerca de suas experiências – algo refletido também nas linguagens que adotam em seus trabalhos. Se Bartas é obviamente um pessimista, enxergando o sufocamento do espírito humano graças a uma situação de perda de identidade, Muratova vai na contramão, apostando na capacidade que temos de amar para superar até mesmo as realidades mais rígidas.

Muito mais coeso, disciplinado e eficaz que Sete Homens Invisíveis, que ele dirigiria nove anos depois e que, de certa forma, é quase uma refilmagem deste longa, Alguns de Nós demonstra a predileção estética de Bartas pela contraposição entre closes e planos gerais – algo que utiliza como um comentário fascinante sobre como a geografia de nossos rostos pode ser tão reveladora quanto a de um país. Adotando um ritmo estudado através de seus longos planos estáticos, o diretor (responsável também pela magistral fotografia) cria quadros absolutamente inesquecíveis ao explorar as paisagens siberianas que hospedam a narrativa, oscilando entre composições quase abstratas (como aquela que traz o rio semicongelado fluindo ao lado das margens brancas) e outras que primam não só pela beleza, mas pelo que buscam evocar (como aquela que consiste na parede lateral de uma cabana de madeira e na janela através da qual vemos um bebê e um vaso com flores).

Mas Bartas reconhece não só a beleza do vilarejo localizado à margem da curva de um rio, mas também a dos rostos de seus habitantes – e, não à toa, ele investiga, com primeiríssimos planos, as rugas profundas que parecem esculpir a expressão de um velho nativo (“idoso” não faria jus à sua idade) e a maneira como suas pálpebras flácidas e pesadas parecem sempre ansiosas para fechar seus olhos embaçados.  Assim, quando o diretor corta daquele rosto para um plano que traz a paisagem que o cerca, o design de som faz questão de manter os rangidos da cadeira na qual o velhinho se sentava, sugerindo que, de certa forma, continuamos a olhar para a sua face – ou uma versão desta.

Ao mesmo tempo, a beleza e a jovialidade da bela mulher que chega à vila certamente não a tornam menos melancólica, já que sua expressão parece exibir sempre uma tristeza inabalável que, aqui e ali, chega perto de encher seus olhos de água (e há um plano em específico no qual a atriz parece prestes a chorar, permitindo que vejamos algumas lágrimas se acumulando sob os olhos – mas não a ponto de escorrerem, o que, paradoxalmente, torna tudo ainda mais triste).

A contraposição entre estes dois rostos, aliás, conduz boa parte de Alguns de Nós, sendo resumida pelo belíssimo momento que traz ambos dividindo uma mesa: enquanto o velhinho cava o miolo de um pão endurecido com seus dedos curtos (permitindo que notemos que falta um deles), a garota olha para a frente com a tristeza de hábito, numa representação tocante de um país com um passado exausto e um futuro sem esperança. Além disso, o silêncio que atravessa a projeção (não há diálogos) sugere uma sociedade que perdeu a capacidade de se comunicar – ou que simplesmente não sabe ou não tem nada a dizer, o que seria ainda mais devastador.

Já a mensagem oposta atravessa Conhecendo o Grande e Vasto Mundo, que Kira Muratova dirigiu depois de banida do Cinema por sete anos pelas autoridades soviéticas. Demonstrando coragem e integridade artística notáveis, ao ser autorizada a retornar aos sets, ela basicamente optou por repetir as mesmas “ofensas” responsáveis por sua punição, escolhendo contar a história de um triângulo amoroso e adotando uma linguagem repleta de simbolismos e de passagens líricas que desafiavam as convenções narrativas realistas favorecidas pelo regime soviético.

Mas, mais do que isso, Muratova volta a contrapor – como fizera em seu primeiro longa solo, Breves Encontros – os conceitos de “coletivo” e “individual”, o que certamente não deve ter contribuído para que conquistasse o apoio dos censores. Se naquele filme víamos a protagonista (vivida pela própria diretora) visitando um edifício sem água e sendo obrigada a negar a licença para que seus desesperados conterrâneos se mudassem, aqui ouvimos o discurso feito pela personagem de Nina Ruslanova (que também esteve em Breves Encontros) sobre como encontrar o amor “é mais importante do que qualquer coisa produzida por uma fábrica” – algo que Muratova ilustra com uma sequência absolutamente adorável que traz dezenas de recém-casados se olhando apaixonadamente em meio a beijos e sorrisos incontidos.

A partir daí, o longa acompanha o trio principal enquanto participam justamente da construção de uma nova fábrica – e o fato de todas as operárias serem mulheres poderia também ser considerado como uma postura feminista por parte da diretora, numa sugestão da importância feminina na elaboração da identidade nacional.

Aliás, o que não falta ao filme são ideias e símbolos: é interessante notar, por exemplo, como os chapéus são frequentemente apresentados como um indício de status, poder ou dominância, o que pode ser observado na raiva de Nicolai ao ter seu boné arrancado por seu adversário, Michail. Da mesma maneira, é sintomático que ao decidir se tornar uma figura mais “digna” do amor de Liuba, este último imediatamente faça questão de adquirir seu próprio chapéu. Michail, diga-se de passagem, é um homem cuja simplicidade se revela a virtude que o diferencia do oponente, sendo manifestada por sua predileção por leite, por sua gentileza constante, por sua timidez e pela apreciação de valores tradicionais (algo ilustrado na sequência fantasiosa na qual ele e a amada se enxergam casados enquanto ele a puxa sobre um burrinho). Já Nicolai é arrogante, agressivo e sempre ansioso para demonstrar sua dominância sobre os demais, agindo até mesmo com uma brutalidade sexista ao frequentemente agarrar Liuba, movendo-a de um lado para outro.

Habitado por uma galeria de personagens coloridos e mesmo teatrais, Conhecendo o Grande e Vasto Mundo parece, por vezes, uma visão de Fellini importada para uma versão fabulesca da União Soviética – e a natureza de representação artificial (ou de alegoria) do filme é constantemente ressaltada por Muratova através de referências ao próprio Cinema, já que suas composições recorrentemente trazem frames dentro de frames, como se aquelas pessoas estivessem cientes da própria encenação.

E, de novo, duvido que as autoridades da época tenham aplaudido esta abordagem da cineasta.

07 de Setembro de 2015

Textos anteriores: Dia 01, Dia 02

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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