No terceiro dia do Festival do Rio 2015, vi apenas três filmes (já que um deles tinha 190 minutos), incluindo uma revisita a Sicário (Idem, 2015), sobre o qual já escrevi durante o Festival de Cannes. Portanto, falemos dos outros dois:
Novo trabalho do veterano documentarista Frederick Wiseman, Em Jackson Heights (In Jackson Heights, 2015) é um filme que inspira humanidade e expira empatia. Oferecendo um recorte sempre fascinante sobre um bairro de Nova York conhecido por seu multiculturalismo (de acordo com um dos personagens, nada menos do que 167 idiomas são falados ali), o longa demonstra uma curiosidade tocante sobre o cotidiano de pessoas comuns que normalmente só atrairiam a atenção de cineastas sensíveis não só com Wiseman, mas como o mestre Eduardo Coutinho.
Sem se preocupar em eleger um protagonista ou discutir um tema específico, a obra, que dura 190 minutos, é daquelas que reconhecem a curiosidade natural que temos por histórias – e, assim, basta acompanhar uma reunião de ativistas latinos por alguns minutos, por exemplo, para que fiquemos interessados pelo que têm a dizer e pelos obstáculos que enfrentam. Neste sentido, é notável o conforto que os habitantes da comunidade demonstram diante das câmeras de Wiseman e sua equipe, expondo questões profundamente pessoais e vulnerabilidades que possivelmente jamais haviam exibido nem mesmo perto de amigos próximos – algo para o qual a parede/escudo propiciado pela lente provavelmente contribui.
Visitando escolas, mercadinhos, sinagogas/madraças/igrejas, debates públicos e eventos artísticos, Em Jackson Heights mergulha o espectador de tal maneira na atmosfera local que logo nos tornamos mais do que simples visitantes, mas quase residentes. Da mesma maneira, ao enfocar alguns dos problemas que ameaçam a vizinhança, a obra logo nos leva a uma forte identificação, expondo a universalidade de questões como a falta de (ou má) representação política, o abuso policial, a fragilidade econômica e a prática predatória das grandes corporações, que destroem os pequenos comerciantes locais enquanto expandem suas filiais impessoais pelo bairro.
Além disso, a montagem (do próprio Wiseman, como de hábito) pontua a projeção com breves transições que se concentram em fachadas de prédios ou lojas, capturando não só o ritmo da vida da região, mas belos vislumbres de “figurantes” marcantes – como a velhinha que, encurvada pelo tempo a ponto de parecer prestes a se partir, caminha lentamente pela rua enquanto carrega uma sacola de compras. Já em outro instante, apenas ao capturar o suspiro cansado da assistente de um vereador ao discutir ao telefone, o diretor leva o público a perceber como a mulher certamente já manteve conversas similares milhares de vezes, despertando nossa simpatia diante de sua exaustão.
Esta habilidade em sugerir vivências (e em despertar nossa curiosidade por elas) é a maior virtude de Em Jackson Heights. Não à toa, o realizador frequentemente povoa a tela com os closes de dezenas de indivíduos – e cada ruga, cada olhar perdido, cada sorriso e cada inclinar de cabeça evocam personalidades, trajetórias e dores. Em determinado momento, por exemplo, Wiseman acompanha três imigrantes que, enquanto se preparam para o teste de naturalização, lutam com o inglês ao tentarem explicar por que querem o visto de residente e, naquele instante, ainda que tenhamos acabado de conhecê-los, percebemos as décadas de sofrimento até que ali chegassem.
Conhecido também pela força de sua comunidade LGBT, Jackson Heights é, também, um exemplo de inclusão e respeito às diferenças: grupos compostos por gays na terceira idade se reúnem na sinagoga local, o vereador mais querido da região é homossexual e um ato de homofobia logo inspira solidariedade e protestos. Ao mesmo tempo, o filme não comete o erro de idealizar uma vida de tranquilidade para estas minorias, expondo como, mesmo ali, há uma intolerância difícil de extinguir – e um dos pontos mais reveladores da projeção é aquele no qual uma transexual negra confessa se sentir menos discriminada desde que assumiu sua identidade feminina, já que passou a sofrer menos com o racismo. E quando constatamos que ainda vivemos num mundo no qual alguém celebra por sofrer o menor de dois tipos de intolerância... bom, é porque ainda temos muito a evoluir.
Oferecendo também sequências tomadas pela leveza de crianças brincando num parquinho ou de senhorinhas tricotando enquanto fofocam sobre a sexualidade de celebridades há muito mortas, Em Jackson Heigts comove simplesmente ao enfocar a humanidade em seu estado mais prosaico: durante cortes de cabelo, cochilos na missa, jogos infantis e em olhos que se fecham ao receber um cafuné.
Breve em seus 190 minutos, este documentário me fez lembrar de algo que outro mestre repleto de empatia, Roger Ebert, disse certa vez: “Nenhum bom filme é longo o bastante e nenhum filme ruim é suficientemente curto”.
Seguindo esta lógica, Em Jackson Heights parece um curta-metragem.
Já Grandma (Idem, 2015), dirigido por Paul Weitz, é realmente curto em seus 79 minutos de duração, representando um retorno à boa forma do diretor de Um Grande Garoto depois de atrocidades como Entrando Numa Fria Maior Ainda com a Família. Trazendo a veterana comediante Lily Tomlin como protagonista – ela também apareceu em A Seleção, trabalho anterior do diretor -, o filme acompanha a poetisa Elle (Tomlin), que, viúva depois de 38 anos de casamento com a amada Violet, acaba de terminar o primeiro relacionamento que teve após perder a esposa. Cruel com a jovem (ex-)namorada (Judy Greer, sempre eficiente), Elle recebe então a visita inesperada da neta Sage (Julia Garner), que revela estar grávida e pede a ajuda da avó para conseguir o dinheiro necessário para um aborto. A partir daí, o longa acompanha as duas mulheres enquanto visitam antigos amigos da artista – e, no processo, conhecemos mais sobre seu passado e seu temperamento.
Escrito pelo próprio Weitz, Grandma se revela surpreendentemente feminista para uma produção de Hollywood, deixando claro desde o princípio que não perderá tempo em discutir o direito de Sage em decidir o que fazer com o próprio corpo: sua decisão de terminar a gravidez é logo encarada como fato e ponto final, restando apenas os esforços para levantar a quantia cobrada pela clínica. Da mesma forma, Elle não demora a manifestar sua admiração por Simone de Beauvoir e Betty Friedan, espantando-se ao descobrir que a neta não as conhece – e o subtexto que se apresenta é o de como muitas mulheres mais jovens ignoram a importância de ativistas que possibilitaram a conquista de direitos hoje tomados como algo óbvio.
Ancorado pelo timing cômico de Tomlin e por sua capacidade de sugerir cicatrizes internas apenas através de um desvio de olhar um rápido tremor dos lábios, o filme também é beneficiado por performances breves, mas marcantes, de atores como Sam Elliott e Marcia Gay Harden, pecando apenas por certos clichês narrativos que parecem ser obrigatórios em produções do universo indie norte-americano, como a câmera na mão (que surge gratuita) e estruturas engraçadinhas (e desnecessárias) como a divisão da trama em capítulos.
O que não elimina o prazer de ver Lily Tomlin no lugar de destaque que sempre mereceu.
Para concluir o bom dia cinéfilo, revi o excelente Sicário – e a segunda visita apenas ressaltou as muitas virtudes do longa de Denis Villeneuve, sobre o qual já escrevi aqui.
Tomara que amanhã também traga boas surpresas.
04 de Outubro de 2015
Leia também os textos anteriores sobre o Festival do Rio 2015: Dia 1, Dia 2.
Abaixo, videocast sobre os longas vistos no terceiro dia: