Hoje foi o primeiro dia em que perdi um filme, já que a sessão de Right Now, Wrong Then, de Hong Sang-soo, esgotou. Com isso, vi apenas três filmes:
Futuro Junho (Idem, 2015), documentário de Maria Augusta Ramos, é um trabalho curioso: cumpre bem o que se propõe a fazer, mas é limitado por esta mesma proposta. Ramos, uma cineasta que admiro (são dela os docs Justiça, Juízo e Morro dos Prazeres), busca aqui lançar um olhar multifacetado sobre as manifestações que precederam a Copa do Mundo em 2014. Para isso, acompanha quatro personagens de perfis distintos: o dono de uma consultoria de investimentos, o funcionário de uma fábrica de automóveis, um motoboy e um líder sindical.
Saltando de maneira fluida entre estes personagens, a diretora frequentemente constrói argumentos apenas através da montagem, como ao trazer um deles instalando uma peça nova em um carro na linha de produção apenas para chegar em casa e passar pelo veículo envelhecido que se encontra parado em sua garagem. Já em outro instante, ela salta do investidor se divertindo durante um jogo da Copa ao líder sindicalista enfrentando a PM de Geraldo Alckmin enquanto esta faz o de hábito, espancando qualquer trabalhador que se atreva a exigir seus direitos.
Evitando fazer qualquer julgamento sobre os quatro homens que enfoca, Ramos resiste ao impulso de, por exemplo, vilanizar o abastado e romantizar o miserável, preferindo, em vez disso, retratá-los como os indivíduos complexos que são, com problemas e prioridades diferentes.
Infelizmente, justamente por fazer um recorte tão preciso, Futuro Junho é um documentário que já nasce datado: por mais complexa que seja a situação política/social/econômica abordada pelo filme, esta já se alterou radicalmente desde então. Assim, o longa acaba soando mais como uma cápsula do tempo do que como um retrato do Brasil contemporâneo. Algo que certamente não é culpa de sua diretora, que segue demonstrando uma notável capacidade de retratar nossas mazelas de forma objetiva e complexa.
Já mais simplista em seus objetivos, a comédia Nasty Baby (Idem, 2015) se concentra em um pequeno grupo de personagens obcecados por um objetivo em comum: gerar uma criança. Escrito, dirigido e estrelado pelo chileno Sebastián Silva (e produzido por outro excepcional cineasta do país, Pablo Larraín), o projeto acompanha Freddy (Silva), seu namorado Mo (Tunde Adebimpe, um astro em construção) e a amiga destes, Polly (Kristen Wiig). Ansioso para ser pai, Freddy inicialmente tenta fecundar Polly, mas logo descobre ter baixa contagem de esperma – o que frustra a garota, que parece ainda mais interessada do que o amigo em ter um bebê. Finalmente, eles convencem Mo a doar seu sêmen, ainda que o sujeito hesite até mesmo por desejar que o namorado aprenda a controlar seus impulsos de raiva.
Trazendo diversos momentos divertidos criados pelas situações constrangedoras experimentadas pelo trio, Nasty Baby conta com dois atos iniciais simpáticos, mesmo que excessivamente inofensivos – até que, no terceiro ato, adota a estratégia diametralmente oposta e abandona a simpatia por um incidente brutal que contrasta absurdamente com o que viera antes. E se isto não seria necessariamente um problema, aqui acaba prejudicando o projeto por ainda soar absurdo e implausível.
Indicando uma indecisão do realizador com relação ao tipo de filme que queria fazer, Nasty Baby se torna, como resultado, uma curiosidade esquecível.
O oposto, portanto, do maravilhoso Boi Neon (Idem, 2015).
Em certo momento do primeiro ato de Boi Neon, a pequena Cacá, que vive em meio ao universo das vaquejadas, expressa sua fascinação não pelo gado que está acostumada a ver o tempo todo, mas pelos cavalos que admira a certa distância – e imediatamente ouve o contraponto do vaqueiro Iremar, que, de forma pragmática, aponta que aqueles animais são belos, mas não úteis como os bois que costuma conduzir rumo às pequenas arenas da região.
Trata-se de uma cena breve, mas que resume de forma belíssima o tema central do longa: aquelas pessoas podem até sonhar (metafórica ou literalmente) com cavalos, mas levam vidas de gado. Não à toa, o filme abre com a imagem angustiante de bois amontoados uns sobre os outros em um estreito cercado enquanto aguardam o momento no qual serão empurrados rumo ao saibro, perseguidos por dois cowboys e violentamente puxados pelo rabo até serem derrubados para delírio da plateia. Um dos responsáveis por passar areia nos pelos da cauda dos pobres bichos, facilitando o puxão, é Iremar (Juliano Cazarré), que também ajuda a transportá-los dos currais aos espaços dos confrontos, sendo auxiliado por Zé (Carlos Pessoa) e Mário (Josinaldo Alves) em um cotidiano supervisionado pela caminhoneira Galega (Maeve Jikings). Completando esta quase família vem a filha pequena de Galega, Cacá (Alyne Santana), que insiste em permanecer ao lado da mãe mesmo sendo constantemente pressionada a ir morar com os avós a fim de poder estudar.
Escrito pelo diretor Gabriel Mascaro, Boi Neon não é filme de trama, mas de observação: com uma narrativa concebida a partir de longos planos que se dedicam a acompanhar aqueles personagens, o filme faz jus à origem de documentarista do cineasta ao sugerir estar simplesmente registrando eventos que se desenrolam naturalmente diante da câmera – uma “simplicidade” absurdamente difícil de ser alcançada, claramente dependendo de um elenco mergulhado na lógica daquele mundo e de uma direção que deve ser intimista sem soar intrusiva.
Ciente de que somos criaturas complexas, o filme parece determinado a subverter nossas expectativas e a fugir de estereótipos e preconceitos: se Galega é uma caminhoneira que cuida sozinha da manutenção do veículo (e é sintomático que o Word tenha acabado de sublinhar a palavra “caminhoneira” por não reconhecê-la no feminino), Iremar alterna suas tarefas de vaqueiro, limpando bosta de boi e marcando gado, com aquela que é sua verdadeira paixão: desenhar e costurar roupas femininas, chegando a afundar os pés num lamaçal para recolher restos de manequins que possam vestir suas criações. Aliás, nada no universo criado por Mascaro é óbvio – e até gestantes, normalmente (e paradoxalmente) retratadas como seres assexuados, aqui se tornam mulheres repletas de desejo e sensualidade.
Despertando nosso carinho por seus personagens ao enfocar suas interações e o cotidiano de trabalho constante no qual vivem, Boi Neon obviamente compartilha de nosso amor por aquelas pessoas, rindo de suas provocações bem-humoradas, exaurindo-se ao retratar seus esforços e comovendo-se ao enfocar seus sonhos. Aliás, se acreditamos na realidade daquelas atuações, esta força se origina em momentos aparentemente triviais: quando Iremar surge lavando a carroceria antes ocupada pela boiada, sua familiaridade com a tarefa é evidenciada através da maneira com que orienta o colega a não molhar as fezes dos animais, coletando-as com a mão e atirando-as para fora do caminhão com a naturalidade de quem passou anos executando o movimento. Já em outro ponto da projeção, Galega se depila na boleia do caminhão, assumindo uma posição desconfortável, mas que, percebemos, encontrou depois de inúmeras “sessões”, ao passo que Cacá jamais hesita em dar respostas atrevidas ao ser provocada pelos vaqueiros, ilustrando a intimidade construída entre todos.
Oscilando com segurança entre sequências cômicas (como a que envolve uma tentativa de roubo de sêmen) e dramáticas (carente, Cacá pede um abraço a Iremar), Boi Neon é fotografado com brilhantismo por Diego Garcia, que também se equilibra com talento entre a necessidade de retratar a crueza daquele mundo e a busca por uma estética plasticamente memorável. Assim, se em um momento vemos um casal transando no canto do quadro em meio a sombras duras enquanto se escoram em um cocho e dividem o curral com vários animais, em outro acompanhamos uma mulher (supostamente a própria Galega) que, com o rosto oculto por uma máscara de cavalo, dança sensualmente sob uma intensa luz vermelha.
O que me traz ao simbolismo magistral construído por Mascaro e que, partindo da conversa que descrevi na abertura deste texto, transforma os cavalos admirados por Cacá em uma representação dos sonhos dos personagens – e como é triste ver a garota desenhando seus animais favoritos nas páginas de uma revista pornográfica cujas páginas se encontram coladas pela ejaculação de homens carentes (aliás, é interessante notar que Iremar também havia rabiscado seus sonhos naquele espaço, cobrindo os corpos nus das modelos com seus designs de moda). Da mesma forma, o filme traz uma sequência emblemática – e incrivelmente evocativa – ao enfocar um adestrador que, em um picadeiro cercado por escuridão, acaricia a barriga de um cavalo como se este fosse um animal caseiro, de estimação, como se aspirações representadas pelo bicho estivessem sob seu controle.
A tragédia daqueles homens e mulheres, contudo, é que a mesma coisa que os torna fascinantes (sua adaptação ao mundo de secura que habitam) é também o que limita suas possibilidades – e mesmo que cubramos o boi de suas realidades com tinta neon, levando-os a brilhar no escuro, isto não impedirá que ele seja subordinado à vontade dos vaqueiros. Pois, assim como o gado que criam, Iremar e seus companheiros correm apenas para ser derrubados.
Evitando a artificialidade de tentar encontrar resoluções dramaticamente satisfatórias para seus personagens, Boi Neon nos leva a reconhecer que estes, por mais que lutem, estão condenados por suas circunstâncias a continuar sonhando.
Neste sentido, as aspirações daquelas pessoas são como o pequeno cavalo alado e brilhante que Cacá, numa brincadeira infantil que a representa tristemente, mantém suspenso sobre o gado aprisionado de sua realidade.
06 de Outubro de 2015
Leia também os textos anteriores sobre o Festival do Rio 2015: Dia 1, Dia 2, Dia 3, Dia 4.
Abaixo, videocast sobre os longas vistos no quinto dia: