Este talvez tenha sido um dos dias menos produtivos que já vivi em um festival – mas também um dos mais memoráveis, já que assisti a um daqueles filmes que sei que me acompanhará por muito, muito tempo: Olmo e a Gaivota (Olmo & the Seagull, 2015). E o melhor: antes dele, vi um longa também bastante interessante, o cubano A Obra do Século (La obra del siglo, 2015).
Dirigido por Carlos Quintella, este trabalho tem uma proposta intrigante, costurando sua narrativa entre imagens de arquivo e outras encenadas para o projeto. Enfocando três homens de gerações distintas que ocupam um pequeno apartamento na cidade de Juraguá, localizada na região de Cienfuegos, onde uma imensa usina nuclear começou a ser construída no início da década de 80 e abandonada pouco mais de dez anos depois quando o fim da União Soviética provocou o fim dos investimentos de Moscou em Cuba.
Resgatando entrevistas com operários da obra feitas na época e também matérias para a televisão que alardeavam a importância do projeto (já que Cuba dependia pesadamente da importação de energia), Quintella contrapõe estes arquivos em cores (mesmo com qualidade defasada) à triste fotografia em preto-e-branco que retrata os conflitos entre avô, filho e neto, que, não surpreendentemente, são vistos pelo filme como representantes e símbolos de três períodos distintos da História cubana, da entrega irrestrita aos ideais revolucionários até o cinismo deixado por promessas não cumpridas.
Sem receio de se entregar ao simbolismo, criando uma narrativa que gradualmente assume contornos de realismo fantástico, A Obra do Século promove uma discussão importante e atual sobre um projeto que, iniciado com pureza ideológica, gradualmente se rompeu sob a pressão do pragmatismo imposto pela realidade, deixando sentimentos agridoces naqueles que percebem sua beleza, mas também sua impossibilidade.
O que nos traz a Olmo e a Gaivota.
Petra Costa tem 32 anos, mas uma alma de anciã – no melhor sentido, o que sugere uma capacidade de enxergar o outro com uma sensibilidade adquirida ao longo de décadas. Em seu devastador e inesquecível Elena, a diretora expunha o suicídio da irmã como uma ferida em busca de curativo e, no processo, mergulhava nas mentes da garota e de sua mãe, investigando também seus próprios sentimentos conflitantes e a realidade de qualquer um que já lutou contra a depressão.
Pois em seu segundo longa, Costa, auxiliada pela co-diretora dinarmaquesa Lea Gob, volta seu olhar a um universo profundamente feminino, mas também universal, partindo da gravidez da atriz italiana Olivia Corsini e de sua relação com o marido Serge Nicolai para analisar não só as inseguranças despertadas pela experiência, mas as dúvidas existenciais e profissionais vividas pela protagonista. No processo, a cineasta ainda explora a natureza da Representação e da fronteira entre Arte e Realidade enquanto – como se tudo isso já não fosse o bastante – constrói uma estrutura narrativa desafiadora e fascinante.
Em primeiro lugar, é importante esclarecer que Corsini e Nicolai aqui “interpretam” a si mesmos (discutirei a razão das aspas adiante) e que a gravidez retratada pelo longa é real. Iniciando com a descoberta do casal acerca do bebê que esperam, Olmo e a Gaivota acompanha o conflito da atriz ao se dar conta de que não poderá mais participar do espetáculo que dá título ao filme e que levará o elenco a uma esperada turnê por Nova York e Montreal. Recebendo a recomendação de seu médico para manter repouso absoluto, a gestante se descobre solitária e frustrada, o que nem sempre é imediatamente percebido – ou compreendido – por Nicolai, que continua a se dedicar aos ensaios.
Deixando claro desde o início que a narrativa irá acompanhar o ponto de vista de Olivia (algo que é exposto de forma elegante quando a vemos olhando através da cortina do palco e a câmera se torna brevemente subjetiva), o filme é eficiente ao sugerir a claustrofobia crescente da mulher ao empregar planos constantemente fechados, ao trazê-la no canto do quadro e ao retratar seu olhar nos instantes nos quais olha através das grades da janela, como uma prisioneira – sendo revelador que, num destes momentos, ela observe uma criança na rua, já que é justamente o fato de estar gerando uma que a aprisiona em casa.
Da mesma forma, a carismática e expressiva Olivia Corsini domina todas as cenas do projeto, que jamais se afasta muito da protagonista ou retrata Serge quando este não se encontra com a esposa. Além disso, Costa expõe com habilidade e sutileza a barreira que surge entre estes já quando descobrem a gravidez, surgindo separados pela parede do banheiro mesmo que sentimentalmente estejam próximos enquanto antecipam o resultado do teste e cantam juntos. No entanto, por mais que o sujeito queira participar do processo e se mostre um bom companheiro, é inevitável que a gestação comprometa sua parceira infinitamente mais – começando já com sua impossibilidade de seguir trabalhando e desenvolvendo sua carreira.
Neste sentido, aponta a obra, falta constantemente ao homem a capacidade de perceber toda a dimensão desta distinção entre experiências: cansado depois de uma dia intenso, por exemplo, Serge mal presta atenção na esposa ao chegar em casa, concentrando-se no computador e respondendo, de forma surpreendentemente casual, que a substituta da esposa no espetáculo vem fazendo um excelente trabalho – uma informação que compreensivelmente a chateia. “A minha realidade presente é diferente da sua”, ele argumenta como uma forma pobre de defesa. “Minha realidade presente também é a sua”, ela responde, arrematando: “Mas sou eu quem a carrega.”
Precisamente.
Funcionando como um complexo estudo de personagens ao apontar estes conflitos que se originam não da frieza de Serge, mas de sua falta de percepção (tão comum aos homens) acerca das questões que afligem a companheira, Olmo e a Gaivota leva o público a se aproximar do casal e, gradualmente, a amá-lo – a ponto de desejarmos tê-los como amigos ao fim da projeção. E não há como negar que esta identificação é resultado também da entrega de Olivia e Serge às ideias de Petra Costa, que, em contrapartida, possibilita que estes explorem suas vidas na tela e amadureçam com isto.
O que nos traz a uma questão fundamental despertada pelo projeto: eles estão realmente explorando suas experiências ou estão apenas interpretando versões destas? Aliás, o “apenas” cabe na questão anterior? Afinal, a Representação é tão válida na Arte quanto a realidade que busca retratar. Aqui mais uma vez é revelador reparar como a cineasta oferece ao espectador um indício de sua proposta já nos minutos iniciais do filme, quando vemos Olivia em uma performance teatral e ouvimos uma voz apontando sua posição no quadro, expondo a consciência da atriz quanto ao fato de estar sendo dirigida. E se em alguns momentos Costa e a montadora Tina Baz incluem imagens de atores saindo da coxia e entrando no palco, estabelecendo a fronteira entre o real e o imaginário, aos poucos é o próprio longa que apaga a distinção entre o diegético e a instância narrativa – ou seja: entre o universo “fantasioso” que vemos na tela e a intromissão ativa dos realizadores.
Pois se Olivia e Serge não parecem reconhecer a existência da câmera na maior parte do tempo, é fascinante quando subitamente despertam para a presença desta e da diretora, que não hesita em se intrometer na “realidade” do casal e sugerir até mesmo que interpretem (ou “interpretem”?) novas versões de suas discussões – mas agora seguindo a orientação da autora, que assume, assim, a poderosa condição de deidade, narradora e terapeuta. Isto, por sua vez, nos leva a questionar o papel da própria cineasta: Petra é uma documentarista desenvolvendo um tema ou uma autora de ficção conduzindo seus personagens?
Afinal, quando o filme justapõe Serge montando o berço com cenas de um espetáculo no qual interpreta um pai agressivo, a montagem está sugerindo um contraste entre ator e personagem ou está reproduzindo uma preocupação de Olivia quanto ao dom do companheiro para a paternidade, já que ela parece observá-lo atentamente? De forma similar, quando vemos imagens de arquivo da juventude da protagonista, estas soam tão reais e presentes quanto aquelas registradas por Costa, promovendo uma discussão adicional sobre o imediatismo e a realidade que o Cinema confere ao que retrata.
Ao longo de Olmo e a Gaivota, o que descobrimos é que há várias Olivias: a personagem, sua intérprete, suas versões passadas e aquelas que ela criou em suas performances teatrais. Mas, mais do que isso, percebemos que todas – até mesmo por dividirem o mesmo corpo – existem simultaneamente e são muitas vezes indistintas. Ora, as rugas na testa da protagonista existem, estão lá, são visíveis – mas foram criadas em parte pelas expressões que tomavam conta de sua face ao interpretar suas personagens, deixando registros reais de sentimentos fictícios. Ou eles não poderiam ser classificados como “fictícios”, já que vemos suas pegadas no rosto de Olivia?
E de novo: esta distinção importa?
A resposta se encontra no efeito que a própria obra provoca no público: se amamos aquele casal e a vida que geram, não há como negar que sejam tão (ou mais) palpáveis que a pessoa que se encontra ao nosso lado na sala de projeção. Pois nas mãos de uma artista sensível como Petra Costa, a Arte pode ser uma presença tão sólida quanto o chão que nos suporta.
07 de Outubro de 2015
Leia também os textos anteriores sobre o Festival do Rio 2015: Dia 1, Dia 2, Dia 3, Dia 4, Dia 5.
Abaixo, videocast sobre os longas vistos no quinto dia: