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(PILOTO) Blow-Up, de Antonioni e As babas do Diabo, de Cortázar Letras & Frames

AVISO: este texto contém revelações de detalhes do filme e do conto.

A coluna Letras & Frames vai averiguar a relação entre literatura e cinema percebida em adaptações fílmicas, transfigurações das páginas dos livros para as telas. Neste espaço buscaremos compreender as principais diferenças e semelhanças entre o material literário original e o roteiro adaptado, além de desmistificar qualquer hierarquia entre os suportes, visto que cada gênero deve ser respeitado em suas peculiaridades artísticas.

Começaremos nossos estudos sobre filmes e livros comparando duas obras contemporâneas entre si, o filme Blow-Up - Depois Daquele Beijo (1966), de Michelangelo Antonioni, e o conto As Babas do Diabo, escrito pelo argentino Julio Cortázar e publicado em 1959. Retirado do livro As Armas Secretas, "Las babas del diablo" inspirou Antonioni, Edward Bond e Tonino Guerra na concepção do roteiro para o segundo longa em cores e o primeiro falado em língua inglesa na filmografia do diretor. 


O escritor argentino Julio Cortázar aparece entre as fotos de desabrigados mostradas em Blow-Up

Durante as filmagens, com o objetivo de questionar o realismo da experiência humana, Antonioni interferiu na coloração da grama, das árvores, das ruas e das casas. A MGM criou a empresa fictícia "Premiere Productions", permitindo que ousadas cenas repletas de sexo, drogas e rock’n’roll fossem incorporadas sem a barreira do Código de Produção, artimanhas que surtiram gloriosos efeitos: Blow-Up ganhou a Palma de Ouro em Cannes, e conquistou indicações ao Oscar e ao Globo de Ouro.

O personagem Thomas (David Hemmings), de Blow-Up, foi inspirado por fotógrafos de moda influentes na época. Veruschka von Lehndorff foi uma das modelos que posou para ele, em uma sequência que busca reproduzir o estilo de John Cowan, fotógrafo londrino locatário do estúdio para as filmagens e consultor para fornecer autenticidade à execução do ofício. Apesar de atuar na área, Thomas clicou as fotografias suspeitas do filme durante um momento de lazer no fim de semana. Michel, ao contrário, realiza seus cliques não profissionalmente, mas como um hobbie esporádico, pois julga que “entre as muitas maneiras de se combater o nada, uma das melhores é tirar fotografias”. Torna-se evidente, portanto, a criação de dois fotógrafos distintos, mas suplementares.

O narrador em As babas do Diabo assume uma identidade onisciente no momento da escrita, criando um distanciamento entre o autor e o personagem. Dividido entre duas ocupações, "tradutor e fotógrafo amador nas horas vagas", Michel encara o fotógrafo como uma espécie de alter ego, ora observador distante, ora participante das ações. Esta dualidade é refletida também nos instrumentos de trabalho, pois tanto a máquina de escrever quanto a fotográfica estabelecem uma relação simbiótica, uma dupla tentativa de eternizar o momento, seja no negativo, seja no papel. Prova disso é que o escritor de Cortázar “fotografa” com a máquina de escrever o voo dos pássaros e o movimento das nuvens – “...agora passa uma grande nuvem quase negra...”, ao passo que o fotógrafo de Antonioni congela com a máquina fotográfica a presença do casal no parque: “...o garoto surpreendido e interrogante, mas ela irritada, decididamente hostis seu corpo e seu rosto que haviam sido roubados, ignominiosamente presos numa pequena imagem química.”

Cortázar divaga sobre as conjecturas da captura e consequente revelação das fotos, enquanto Antonini, naturalmente, incrementa e amplia a narrativa com outras situações - como a visita ao antiquário - e ainda que de forma fragmentária, instaura uma linearidade mais palpável. O escritor faz descrições precisas e técnicas dos elementos encontrados nas fotos, enquanto o cineasta nos coloca para acompanhar (através dos olhos de Thomas) a silenciosa apreensão dos detalhes fotográficos.

Há uma notável discrepância de idade entre os dois casais fotografados, tanto entre a misteriosa mulher loura e o adolescente no conto, quanto entre o homem bem mais velho e a mulher que acompanha no filme. Nas ampliações da película revelada em preto e branco, aos poucos percebemos figuras escondidas nos arbustos: um homem armado e um corpo na grama. 

“O negativo era tão bom que preparou uma ampliação; a ampliação era tão boa que preparou outra muito maior, quase um pôster (...) pregou a ampliação numa parede do quarto, e no primeiro dia passou um bom tempo olhando e recordando, nessa operação comparativa e melancólica da recordação frente à realidade perdida; recordação petrificada, como toda fotografia, onde não faltava nada, nem mesmo e principalmente o nada, verdadeiro fixador da cena”.

Jane (Vanessa Redgrave) representa no filme a mulher com identidade não especificada no conto), furiosa por ter sido fotografada, aparece no estúdio de Thomas com o intuito de seduzi-lo para obter os negativos. Outro potente elemento de erotismo, distração e quebra de tensão da trama, ocorre na visita de duas insistentes adolescentes aspirantes a modelos, uma loira (Jane Birkin) e uma morena (Gillian Hills), possibilitando um lúdico ménage-a troi. 

Mais tarde, atordoado e irremediavelmente abalado pela identificação dos sinistros espectros nas fotos, Thomas permanece fiel à sua obsessiva busca enquanto se mistura em uma festa abarrotada de entorpecentes, que se seguiu a uma apresentação rara dos The Yardbirds, no Ricky Tick Club, em contraste com os longos silêncios e com o descontraído repertório de jazz, comentário sonoro a algumas cenas. 

A passagem “os fios da virgem também são chamados de babas do diabo” apresenta uma possível razão para o título do conto: a virgindade do menino, cuja inocência, ao que tudo indica, fora roubada após sérios abusos que sofreu pelo pederasta. Blow-Up não se ateve ao repugnante crime da pedofilia sugerido nas linhas de As babas do Diabo. Ao invés disso, retratou um suposto assassinato, talvez para facilitar o entendimento e a aceitação do público, ainda que ambos tenham se concretizado sem respostas fáceis para espectadores e leitores. Thomas é novamente desviado de seu objetivo, e abandona a busca pela verdade aceitando a ansiedade que carrega, ao passo que o conto encerra o caso de maneira perturbadora, ao constatar a impotência de Michel diante das evidências por ele testemunhadas:

“Da mulher via-se apenas um ombro e parte dos cabelos, brutalmente cortados pelo enquadramento da imagem; mas de frente estava o homem, com a boca entreaberta, onde se via tremular sua língua negra, e levantava lentamente as mãos, aproximando-as do primeiro plano, um instante ainda em perfeito foco, e depois ele todo um vulto que apagava a ilha, a árvore, e eu fechei os olhos e não quis olhar mais, e cobri o rosto e desandei a chorar feito um idiota”.

Um ciclo é encerrado quando um grupo de mímicos vistos no começo do filme reaparece e inicia uma partida de tênis no bosque, mesmo sem disporem de raquetes e bolinha, aparatos imprescindíveis ao esporte. Enquanto assiste ao jogo, o fotógrafo, tomado pela epifania, não hesita ao localizar e devolver para o time a bola imaginária que ultrapassou o perímetro da quadra. Esta metáfora visual sintetiza uma ideia de Antonioni, para quem “um dos temas principais de Blow-Up é ver ou não ver o valor correto das coisas”. O cineasta nunca deixou claras suas intenções a respeito do significado da obra: “Um filme que você pode explicar em palavras, não é um filme de verdade”. O subjetivo desfecho reafirma o caráter efêmero da existência, imagem ilusória que pode ser imortalizada por lentes fotográficas, ao mesmo tempo que passível de ser apagada, como a figura de Thomas, desaparecendo gradualmente, camuflada à grama do parque.  

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