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WHIPLASH e a moral da história Anatomia de um Filme

Whiplash: Em Busca da Perfeição é um filmaço.

Tenso, intenso, dirigido com eficácia, montado com brilhantismo, repleto de atuações excepcionais e impecável na construção de um clímax inesquecível. E que trilha sonora. O filme é um retrato fascinante da obsessão de seu protagonista, que literalmente sangra pelo que ama fazer. Mais do que isso, Whiplash demonstra a eficácia do bullying como ferramenta pedagógic...

...

Huh.

Whiplash demonstra a eficácia do bullying como ferramenta pedagógica.

E não, não é de forma ambígua.

 

01.

Toda história tem uma mensagem.

Querendo ou não.

É para isso que elas existem.

Quantas vezes você quis convencer alguém de algo e, para conseguir, contou uma história? Quantas vezes uma história convenceu você de alguma coisa? “Não vá por essa rua. Já me assaltaram nela duas vezes.” Isso é uma história. Não vai ganhar nenhum Oscar, mas ainda assim é um mini-drama, um conflito e sua resolução, utilizados para provar a tese do autor de que ir pela rua em questão é perigoso. “Quis ir para um lugar, porém fui assaltado no caminho, portanto evito esse caminho.”

Muitas pessoas veem histórias apenas como entretenimento, e mesmo que se limitassem só a isso, já seriam valiosíssimas. A vida é estressante. Precisamos de algum escapismo no nosso dia a dia. Porém, as melhores histórias já feitas são bem mais do que entretenimento: elas têm ideias para comunicar, e as comunicam de forma coerente e articulada sem que seja necessário verbalizá-las (e caso seja, verbalizando-as de forma bela e evocativa). Através das ações e reações dos personagens aos acontecimentos da trama, deciframos o que a narrativa procura dizer... ou o que ela acaba dizendo sem querer.

A forma mais acessível e comum de se contar uma história é o drama. “Ah, e as outras são comédia, ação, suspense, horror...” Não. Tudo é drama. Tudo depende das regras da construção dramática sendo aplicadas com diferentes propósitos. Um filme não precisa ser sobre um divórcio para ser considerado um drama.

“Peraí, mas então quais filmes não são um drama?” Vários: são tipicamente considerados os assim-chamados “filmes de arte”, um termo tão monumentalmente esnobe que deve ter sido inventado por alguém que tinha vinho ao invés de sangue. Eu particularmente odeio essa distinção, mas que seja: um filme de arte tende a operar num nível mais intelectual e simbólico, comunicando-se diretamente com o espectador através de linguagem cinematográfica. Portanto, pode abrir mão de um alicerce dramático se assim desejar. Não há uma linha clara: um filme de arte pode conter um grau de construção dramática (A Doce Vida) e um filme dramático pode conter elementos que requerem um entendimento de teoria cinematográfica para serem apreciados (Sangue Negro).

Este texto se limitará a falar do drama, já que Whiplash está firmemente nesse território. Porém, o que isso significa? Como se escreve um drama e como se constrói uma mensagem através dele?

A faísca que dá início a uma história pode ser um personagem, uma cena, uma simples imagem. Pequenas coisas que surgem num momento de inspiração, quando você menos espera. Talvez você leia um artigo sobre determinado assunto, formule uma opinião sobre ele e queira expressá-la através do drama. Ou talvez você tenha pensado em um conflito dramático interessante e decida desenvolvê-lo, encontrando sua opinião no processo.

O primeiro passo é imprimir um infográfico da Jornada do Herói e jogá-lo na fogueira mais próxima.

O segundo é aceitar que você não acertará a narrativa de primeira. E possivelmente nem de segunda ou de terceira. Grandes histórias passaram por várias revisões que mudaram detalhes importantíssimos. Se duvida de mim, leia as primeiras versões do roteiro de Blade Runner. Já aceite de antemão que você escreverá personagens, cenas e subtramas que se revelarão inúteis e serão substituídos por personagens, cenas e subtramas melhores. Se você tentar acertar de primeira a todo momento, ficará paralisado sem saber como prosseguir. Simplesmente escreva, crie um alicerce e o refine depois. O nome original de Sherlock Holmes era Sherrinford Hope. Sério.

Escritores tem diferentes métodos de desenvolver faíscas criativas. Alguns simplesmente escrevem “flash drafts”, improvisando a trama e os personagens sem parar para pensar até chegar no final. Ficará uma droga, mas terá vários elementos promissores que podem ser utilizados no próximo tratamento, a ser escrito com mais cuidado e ponderação. Já outros escritores começam com um resumo da trama e dos personagens, preparando o terreno antes da escrita. Às vezes a mensagem que você quer passar te guia desde o começo, ou surge durante o processo.

Toda história precisa de personagens; seus desejos os levam a tomar decisões que movem a trama. Em O Pagamento Final, o ex-traficante Carlito Brigante (Al Pacino) quer deixar para trás sua vida de crime. Em Um Corpo que Cai, o detetive John Ferguson (James Stewart) se apaixona pela mulher que é contratado para seguir. Em O Silêncio dos Inocentes, a agente do FBI Clarice Starling (Jodie Foster) quer se redimir por algo traumático que fez na infância.

Com isso estabelecido, como é esse personagem? Carlito, por exemplo, é um criminoso atento, esperto, altamente experiente e leal a seus amigos; todas essas características influenciarão a maneira como lida com os conflitos ao longo da história, então o filme não demora a desenvolver o personagem para que entendamos o porquê de cada decisão que virá a tomar. A lealdade de Carlito a seus amigos o colocam em risco, mas o filme deixa claro bem cedo que ele é incapaz de negar ajuda a eles, então não estranhamos quando ele o faz por mais perigosa que seja a situação. Essa é a marca de um personagem bem definido pelo roteiro.

E qual é o obstáculo principal que esse personagem enfrenta? Qual é o conflito? Carlito não consegue se livrar de todos os contatos que tinha quando era traficante, e um por um eles tentam puxá-lo de volta para o crime. A mulher que o detetive Ferguson ama retribui o sentimento, mas comete suicídio logo em seguida, deixando-o com um amor correspondido, porém não consumado. E a agente Starling vê sua possibilidade de redenção no ato de salvar uma mulher capturada por um serial killer, mas para isso precisa descobrir onde a vítima está sendo mantida em cativeiro.

A partir daí, desenvolvemos esses conflitos, e aqui entram as palavras-chave do planejamento dramático: porém e portanto. Uma boa maneira de testar sua trama é ver se seus acontecimentos estão conectados por essas palavras. Em O Silêncio dos Inocentes, Clarice recebe a missão de caçar o serial killer Buffalo Bill (Ted Levine), porém depende da ajuda do prisioneiro psicopata Hannibal Lecter (Anthony Hopkins), portanto se submete aos joguinhos deste, porém a situação se torna mais urgente, portanto Clarice o engana, prometendo uma recompensa falsa caso ele seja mais detalhado em sua ajuda, porém um outro personagem arruína o esquema de Clarice e revela a verdade para Hannibal, e por aí vai. Causa e efeito, conflitos se tornando mais complicados.

Se isso se encaixa em uma estrutura de três atos ou não é essencialmente irrelevante. Na crítica, usa-se muito os três atos para apontar com clareza a parte do filme sendo discutida, mas o filme em si pode conter mais atos. A série de TV Breaking Bad (que é imensamente cinematográfica) é um trabalho absolutamente soberbo de drama e tem sei lá quantas dúzias de atos ao longo de suas cinco temporadas. Uma simples cena pode se encaixar na estrutura de três atos: primeiro ato, o motivo da cena. Segundo ato, o desenvolvimento. Terceiro, o clímax seguido da resolução que justifica as próximas cenas ou conclui algum fio da trama. Então não se prenda a uma estrutura de três atos se sua história funciona melhor com mais.

Até aqui estamos falando de estrutura, mas e quanto ao estilo? Você pode ter o drama mais bem estruturado da história da arte e este ainda ser profundamente entediante. É preciso saber entreter o espectador no desenvolvimento de personagens e conflitos. Em O Pagamento Final, Carlito demonstra sua esperteza e experiência como criminoso de diversas formas fascinantes, e seus diálogos são frequentemente divertidos. Uma das técnicas para fazer o espectador se interessar por um personagem é mostrá-lo sendo bom no que faz.

Mas qual caminho seguir? A história pode terminar de tantas formas interessantes. Como chegar a um desfecho?

É aí que a mensagem deve entrar. Por exemplo, “o crime não compensa”. Soa simplista? Diga isso para Martin Scorsese, Brian De Palma, Fernando Meirelles, Billy Wilder e os irmãos Coen, que fizeram múltiplos filmes com essa tese, explorando-a de várias maneiras diferentes e convincentes. Também temos “a ciência sem cautela pode levar ao desastre”, “a vingança não traz paz de espírito”, “o orgulho corrompe a alma” e outras verdades que soam igualmente ridículas se resumidas dessa forma, e é justamente por isso que preferimos expressá-las através de histórias. Geralmente (mas não necessariamente) no final delas, servindo de ponto conclusivo da obra, após todos os argumentos terem sido desenvolvidos através de personagens e conflitos.

E não precisa ser só uma mensagem: uma história pode ter várias, primárias e secundárias, expressadas de forma escancarada ou sutil, convincente ou artificial, algumas descritíveis em uma só frase e outras que requerem parágrafos inteiros. E os personagens são os argumentos da tese. As características de uma pessoa a levam a tomar determinadas decisões, e o resultado dessas decisões sugerem uma opinião do autor. Se um personagem morre por ser ganancioso, fica sugerido que a ganância leva à morte. Na dinâmica da causa e do efeito, o efeito tece um comentário sobre a causa. A história de Salieri (F. Murray Abraham) em Amadeus é um exemplo perfeito disso.

“Mas onde está a mensagem, digamos, numa aventura blockbuster como Os Caçadores da Arca Perdida?” No final do filme, Deus em pessoa massacra um esquadrão nazista e derrete a cabeça de seus líderes. Só faltou Spielberg superimpor as palavras “Deus odeia nazistas” na tela. É perfeitamente válido que a ideia de seu filme seja tão simples quanto essa. Não é preciso que toda história tenha algo transcendentemente genial a dizer sobre a condição humana. O mais importante de estar ciente das mensagens de sua história é evitar que uma dessas mensagens seja algo que você despreza. Acredite: é muito fácil defender algo que você condena por acidente. Basta não prestar atenção.

E sim: é difícil pra caramba equilibrar tudo isso. Se os elementos básicos de uma história se assemelham aos conceitos básicos da matemática, então construir uma grande história é o equivalente a calcular todos os estágios de uma viagem à lua. Pode rir, NASA, mas quero ver vocês escreverem O Poderoso Chefão.

São tantas partes em movimento. Tantos personagens simbolizando tantas coisas, algumas das quais o escritor defende e outras não. Não é tão simples quanto “personagem x faz coisa y, coisa y é moralmente louvável, portanto personagem x ganha um final feliz”. Muitas histórias dão finais tristes para personagens que buscaram fazer a coisa certa. A vida real é extremamente complexa, e fazer algo de bom muitas vezes requer um sacrifício pessoal. Boas histórias precisam refletir essas complexidades. E ainda estou sendo simplista: seria preciso um livro para discutir as inúmeras formas, do óbvio ao sutil, de se passar uma mensagem complexa narrativamente.

E para fazer essa mensagem ressoar de forma profunda, você ainda tem que manipular as emoções do espectador. Várias delas. Um contador de histórias precisa saber como deixar o público intrigado, como fazê-lo rir, temer e chorar. E é tão, tão fácil errar a mão. Um leve exagero no diálogo pode fazer uma cena ir do drama eficaz para o melodrama forçado.

Porém quando se acerta a mão, quando uma história nos comove, a mensagem por trás dela parece verdade absoluta. É devastador – e muito subestimado -- o efeito que nossas emoções têm sobre nossa percepção da realidade. Entenda uma ideia intelectualmente e você não terá dificuldade de abandoná-la quando um bom contra-argumento surgir. Porém, conecte-se com uma ideia emocionalmente e você vai distorcer a realidade para continuar acreditando nela. No mínimo você irá querer fazer isso (essa é a mensagem de dois filmes de Christopher Nolan, aliás). Não é à toa que nossas crenças de infância, quando éramos completos imbec... – er, mais inocentes, são tão difíceis de largar. São “verdades emocionais”.

Esse é o grande diferencial das histórias. E o efeito é tão poderoso que, nas mãos de um bom escritor, até as teses mais falsas podem parecer repletas de verdade.

É o que acontece com Whiplash.

 

02.

Do ponto de vista dramático, o roteiro de Damien Chazelle é comparável a uma partitura. O que é um dos maiores elogios que se pode fazer a um drama; uma partitura é algo técnico, complexo, polido e preciso. Todo escritor deve cobrar de si os mesmos padrões de um compositor.

E além de saber escrever drama, Chazelle também sabe dirigi-lo.

O filme começa com uma amostra da dinâmica que se desenvolverá pelo resto da projeção: ao fim de um longo corredor deserto, está o protagonista Andrew Neiman (Miles Teller) praticando bateria em uma sala. Ele se sobressalta ao notar a silenciosa chegada do professor Terence Fletcher (J. K. Simmons), vestido de preto e mergulhado em sombras, faltando apenas um portal para o inferno atrás dele. Esse aparente exagero se revelará mais do que adequado. A história é contada de ponto de vista de Andrew, que está em todas as cenas, e logo os vários elementos visuais e sonoros do filme evocam o que ele está sentindo. Para ele, Fletcher é uma figura a ser temida e respeitada, algo refletido pela fotografia e pelo figurino da cena.

O professor está procurando por jovens talentos e testa Andrew ali mesmo, exigindo demonstrações de técnicas de bateria mas interrompendo o rapaz depois de apenas algumas notas, como se só precisasse ouvir um segundo de música para determinar o talento de alguém. Depois de apenas alguns testes, ele vai embora sem cerimônia enquanto o rapaz toca. Andrew fica desapontado, mas segundos depois o professor volta, parecendo ter mudado de ideia. Porém só esquecera seu casaco. Pela segunda vez, e sem mais cerimônia do que na primeira, ele abandona o rapaz.

Só no prólogo, Damien Chazelle deu início a várias engrenagens dramáticas. Primeiro, descobrimos o que Andrew quer: impressionar Fletcher. Daí somos apresentados ao obstáculo: Fletcher. Conflito dramático estabelecido. Mas por que nos importamos? Chazelle se utiliza de dois artifícios narrativos para que o espectador goste de Andrew: nós o vemos treinando duro para conseguir o que quer, o que provoca admiração, e logo depois sendo humilhado, o que provoca simpatia. Mas a isca do filme é Fletcher: personagens bons no que fazem sempre causam fascínio imediato, e Fletcher exala experiência, autoridade e conhecimento. Além disso, sua crueldade psicológica (“Eu pedi pra você começar a tocar?”) o transforma em alguém imprevisível e sadisticamente divertido. Para completar, ele é interpretado pelo brilhante J. K. Simmons, que seria condenado à prisão perpétua se roubar cenas fosse um crime.

Finalmente, Chazelle ainda termina a cena com um anticlímax. Repare que, quando começa a testar Andrew, Fletcher tira o casaco como se estivesse se preparando para uma longa sessão. Porém, o teste dura literalmente trinta segundos. Eu cronometrei. O professor leva trinta segundos para desistir. Uma cena que parecia ter acabado de começar subitamente termina. Com um prólogo de três minutos, o filme não só já ganhou nossa atenção como nos deixou querendo mais.

O primeiro ato é uma ascensão. Chazelle nos apresenta à vida solitária de Andrew: ele costuma ir ao cinema com o pai, que é estabelecido como alguém que não estimula o filho a perseverar. Ao ser informado do teste fracassado, ele diz a Andrew que “há outras opções”, insinuando que o rapaz deve desistir de seu sonho. Isso está tão fora de questão para Andrew que ele reage como se o pai tivesse falado grego. Além disso, o protagonista tem interesse romântico pela atendente da bombonière, Nicole (Melissa Benoist), mas lhe falta autoestima para convidá-la para sair.

Em seguida, vemos Andrew praticando na Nassau, uma das orquestras de jazz do Conservatório de Música Shaffer. A outra orquestra, de maior renome, é a Studio Band, conduzida por Fletcher. A fotografia e o design de produção se encarregam de contrastar as duas: a sala da Nassau é tão sem personalidade que poderia ser facilmente uma sala de qualquer outra coisa, e sua iluminação é fria e azulada. Já a sala da Studio Band só poderia ser uma sala de música, com sofisticadas paredes de madeira e luzes tão douradas que qualquer coisa que elas iluminem passa a custar no mínimo cem reais.

Fica estabelecido que na Nassau, Andrew é impopular; apenas o simpático baterista principal Ryan Connolly (Austin Stowell) o trata bem. Também vemos que Fletcher tem o hábito de ficar do lado de fora da sala ouvindo a Nassau tocar, mas – para a decepção da orquestra – não entra.

Ciente disso, Andrew pratica ferozmente as técnicas que Fletcher exigiu dele mais cedo. Quando o professor finalmente entra na Nassau e testa os vários músicos de forma fria e irônica (e no caso da única mulher da orquestra, sexista), ele – sem demonstrar qualquer empolgação – convida Andrew para a Studio Band. A cena também aproveita para fascinar o espectador ainda mais com a habilidade musical do professor, que lê rapidamente uma partitura, ouvindo a música em sua cabeça, e ainda conclui com um desdenhoso “Que bonitinho.”

Feliz com sua conquista, Andrew ganha confiança e convida Nicole para sair com ele. É uma boa forma de estabelecer como Fletcher tem influência sobre o rapaz mesmo com ambos tendo trocado pouquíssimas palavras. A rejeição do professor faz com que ele se sinta inadequado e pratique, e a aprovação o deixa cheio de si. E Andrew está tão feliz que, ao contrário da plateia, não suspeita que o pior ainda está por vir.

Chazelle brinca com nossas expectativas. Andrew acorda atrasado para a primeira sessão, e já prevemos a bronca bíblica que levará. Mas ao chegar, o rapaz se vê dentro de uma sala vazia. Fletcher lhe dera um horário três horas adiantado, a primeira de muitas crueldades psicológicas que sofrerá.

Quando a turma chega alguns minutos antes do professor, o baterista principal da Studio Band Carl Tanner (Nate Lang) trata Andrew como um servo, ordenando friamente que o rapaz afine a bateria para si bemol e que seja seu virador de páginas durante as músicas. A princípio a antipatia de Tanner parece um recurso barato do roteiro para nos fazer torcer ainda mais por Andrew, mas como veremos adiante, terá o efeito contrário.

No exato momento em que o ponteiro marca nove horas (com direito a plano-detalhe dos ponteiros chegando no nove), Fletcher entra na sala. É tão pontual que só pode ser calculismo do professor, e esse controle sobre a persona que projeta o deixa ainda mais interessante. Logo temos a primeira demonstração do quão sádico ele é: durante um ensaio, ele subitamente interrompe a música, identificando um instrumento desafinado (mais fascínio para o espectador: o ouvido de Fletcher é assustadoramente afiado). O que ele faz em seguida encapsula o porquê de ele ser tão divertido de assistir:

“Essa me irrita: temos um músico desafinado aqui. Antes que eu continue, será que esse músico gostaria de se identificar?” (pausa) “Não? Ok, talvez um inseto tenha entrado no meu ouvido.” (volta ao pódio, ordena que a seção de metais toque um trecho, interrompe novamente a música) “Não, meus ouvidos estão ótimos, nós definitivamente temos um músico desafinado. Quem quer que seja, esta é sua última chance.” (pequena pausa) “E lá se foi. Então ou você está deliberadamente tocando desafinado e sabotando minha banda, ou você não sabe que está desafinado, o que temo ser ainda pior.”

Lembra do que falei na primeira seção deste texto sobre o estilo? Como uma estrutura dramática impecável por si só não basta? O diálogo acima é um exemplo de bom estilo. É ameaçador, mas também divertido, e a última frase ainda desenvolve mais a personalidade de Fletcher: ele considera a ignorância pior do que a malícia.

O professor encontra o aluno culpado e tortura o rapaz verbalmente, fazendo diversas menções gratuitas à corpulência deste: “Eu carreguei sua bunda gorda por tempo demais. Não vou deixar que você nos custe uma competição porque sua mente está num McLanche Feliz ao invés de no tom.” Fletcher o expulsa da Studio Band ali mesmo. Como se isso não fosse suficiente, o professor revela para a turma que não era esse aluno o músico desafinado, mas como o rapaz não soube responder se estava ou não no tom, Fletcher o puniu mesmo assim. Fica óbvio que era seu desejo expulsá-lo faz tempo, e escolheu o método mais cruel possível.

Andrew fica tão chocado quanto nós. É, logo de cara, uma atitude imperdoável do professor. Mas no intervalo, Fletcher o chama num canto e faz perguntas pessoais ao rapaz de forma afável: o que o pai dele faz, o que a mãe dele faz, tudo num tom surpreendentemente agradável de duas pessoas se conhecendo melhor. Mesmo depois do que aconteceu, o espectador vê o quanto é fácil gostar do personagem; seu carisma é imenso. E como sua persona parece cuidadosamente calculada, ainda há a possibilidade de ele ser uma boa pessoa no fundo. Andrew, enquanto isso, parece achar que será a exceção. Que nele, Fletcher vê talento nato e não precisará pegar pesado.

E pelo tom da conversa dos dois, parece mesmo que tudo ficará bem. Mas num toque inteligente do filme, o professor apoia a mão na parede por cima do ombro de Andrew, um gesto invasivo e sutilmente autoritário que dá indícios de que ele está apenas fingindo ser legal.

Fletcher conta a Andrew que Charlie Parker, vulgo “Bird”, só se tornou um grande baterista de jazz porque Jo Jones tacou um címbalo em sua cabeça. É uma história que sutilmente justifica o que fez mais cedo com o aluno “desafinado” e dá ao professor uma intenção nobre que deixa nossa opinião dele ainda mais ambivalente. Ele conclui com um afável “divirta-se”, e ambos entram na sala para praticar com a turma.

Quando Andrew toca, a princípio ele vai bem e recebe um elogio de Fletcher, mas pouco depois erra o tempo musical. Fletcher para a música e pede, calmamente de início, que o rapaz repita o trecho no tempo certo. Andrew se esforça para acertar com a precisão exigida por Fletcher, que vai se irritando até decidir superar Jo Jones e tacar uma cadeira em seu aluno. Ele se aproxima de Andrew, que se desviou por pouco, e mede o tempo musical com tapas no rosto do rapaz, chegando ao ponto de gritar:

“Você é um merda com lábio de viado, sem valor, sem amigos, cuja mamãe deixou papai quando percebeu que ele não era Eugene O’Neill, e que agora está chorando e babando em cima do meu kit de bateria como uma garotinha de nove anos!”

Sexismo, gordofobia, e agora homofobia seguida de um insulto profundamente pessoal. E se isso tudo soa desconfortável apenas descrito, é muito pior assistido.

A humilhação de Fletcher estimula Andrew a praticar mais e mais. A recusa do protagonista em se deixar desencorajar só aumenta nossa admiração por ele. O professor o mantém como baterista alternativo, e Andrew treina até que suas mãos literalmente sangrem sobre o kit (nada realista, mas uma metáfora visual eficaz). Em seu primeiro encontro com Nicole, ele se mostra influenciado pelos altíssimos padrões de Fletcher e não consegue esconder sua condescendência quando a garota revela a escola sem renome onde estuda e que, além disso, não sabe no que quer se formar. Porém, depois desse feio deslize, Andrew reconquista Nicole (e o espectador) ao fazer uma piada autodepreciativa, e a cena termina com os dois sorrindo um para o outro, visivelmente interessados em continuar juntos.

A próxima cena é uma competição de jazz, na qual Andrew permanece como o baterista alternativo de Carl Tanner. No intervalo, Tanner ordena (sim, ordena) que Andrew guarde a partitura. O rapaz brevemente a deixa em uma cadeira para comprar um refrigerante e, quando olha novamente, a pasta sumiu. Tanner, enraivecido, não sabe tocar sem a partitura. Ele explica a Fletcher que é uma condição médica que afeta sua memória, mas é claro que o professor o ironiza cruelmente e dá a chance a Andrew, que sabe a partitura de cabeça. O rapaz toca bem, e torna-se o baterista principal. Fletcher, sendo Fletcher, anuncia isso de forma humilhante para Tanner (“Não se esqueça de virar as páginas pro Neiman”). Como o personagem é incrivelmente antipático de todas as formas possíveis até aqui, sentimos satisfação ao vê-lo na posição de inferioridade que tanto menosprezara.

Chega ao fim o primeiro ato, que mostrou a ascensão de Andrew até a posição que sempre almejou. Com persistência e prática incansáveis, o rapaz superou a adversidade representada por seu abusivo professor. Com isso, conquista a admiração do espectador, que torce mais do que nunca para ele. Mas depois da ascensão vem a queda, e Chazelle não começa com uma ladeira; ele vai direto pra um penhasco. Com seu ego absurdamente inflado, Andrew sofre uma mudança brutal de personalidade, sendo tão babaca em um jantar de família que até seu pai – que nunca desafia o filho – dá uma patada nele pela primeira e única vez na projeção.

Apesar disso, a trama está num momento de relativa estabilidade dramática. Andrew está onde quer estar. Então Chazelle introduz o próximo conflito na cena seguinte: Fletcher, sempre incapaz de passar mais de cinco minutos sem irritar alguém, coloca o ex-colega de Andrew, o simpático Ryan Connolly da Nassau, para competir com o rapaz pela vaga de baterista principal da Studio Band. Se Tanner foi antipático com Andrew, este é ainda mais com Ryan. Quando Fletcher demonstra gostar mais do baterista da Nassau, Andrew abertamente insulta aos gritos a habilidade de seu concorrente.

O que Andrew faz a seguir é ainda pior: sentindo-se pressionado a praticar ainda mais, ele termina com Nicole. É mais um anticlímax cuidadosamente calculado por Chazelle: a cena anterior foi literalmente o relacionamento deles começando. E Andrew ainda explica sua lógica para ela com uma insensibilidade que beira a psicopatia. Ele vê Nicole como inferior, previsível, um elemento mundano de sua vida que só o impediria de praticar tanto quanto pode para impressionar Fletcher. Porque o que ele quer é impressionar Fletcher. Ser o maior baterista de todos os tempos é o que ele diz para os outros e para si mesmo, mas o seu objetivo real é obter um sorriso do professor.

Na aula seguinte, Fletcher revela para seus alunos uma notícia que recebera no dia anterior: um ex-aluno seu, Sean Casey, falecera em um acidente de carro. O professor põe uma performance de Casey para tocar e faz um discurso elogioso sobre o rapaz. É um momento de raríssima sensibilidade de Fletcher, que chega a chorar enquanto fala, mas até aí há um quê de calculismo. Ao fazer um discurso sobre um ex-aluno seu, ele faz com que seus alunos atuais queiram ser lembrados da mesma forma. É mais um de seus jogos psicológicos. Mesmo que o sentimento seja sincero, ele vê o benefício de compartilhá-lo com seus alunos.

Como prova disso, seus métodos permanecem os mesmos. Apenas minutos depois de seu discurso, insatisfeito com as performances de Andrew, Carl e Ryan, ele força os três a competirem entre si na bateria até que, sim, sangrem sobre o kit. Ele grita com eles, xinga-os de forma xenofóbica (Ryan é de descendência irlandesa e logo é chamado de “leprechaun”) e homofóbica, joga instrumentos de um lado para o outro, faz de tudo para sabotá-los. Só Andrew consegue tocar direito sob a tortura (e não é hipérbole chamar de tortura). No fim das contas, Fletcher mantém o rapaz na posição de baterista principal para uma importante competição.

Porém, devido a uma série de imprevistos, Andrew atrasa ao ir para a competição. Quando chega, Fletcher já decidiu substituí-lo por Ryan. A reação de Andrew é assustadora em sua arrogância e agressividade. Ele insiste que irá tocar, mas percebe que esqueceu suas baquetas, dirige de volta para buscá-las, bate o carro e corre o resto do caminho, chegando ferido no palco. Fletcher o vê com metade da cara sangrando, mas não faz objeção quando o rapaz senta-se diante do kit. Machucado demais, Andrew não consegue tocar e a orquestra toda para.

Fletcher vai até ele -- um aluno que fez seu melhor mesmo seriamente ferido, que buscou tanto alcançar o patamar exigido -- e diz, “Acabou para você.”

Andrew pula pra cima do professor com desejo de matá-lo, é agarrado por seus colegas e arrastado pra fora do palco xingando Fletcher aos berros. Obviamente, é expulso da Studio Band.

E agora nos encontramos na posição de não gostar nem de Andrew nem de Fletcher. Com sua tutela sádica, o professor só conseguiu distorcer a personalidade previamente simpática do rapaz. Ao fazer o patamar de aprovação ser altíssimo, levou Andrew a se sentir um deus por alcançá-lo, e depois o expulsou do paraíso.

Porém, Fletcher não sai ileso. Andrew descobre que seu pai vinha falando com uma advogada que conhece o comportamento do professor. Ela revela que Sean Casey – o ex-aluno falecido que ganhou um discurso afetuoso – não morreu em um acidente de carro. O que ele fez foi cometer suicídio. Casey sofria de ansiedade e depressão que começaram no período em que se tornou aluno de Fletcher. A advogada pede a Andrew que testemunhe contra o professor anonimamente, a fim de que ele nunca mais abuse de aluno nenhum. Andrew aceita, e Chazelle corta para a escuridão.

Se terminasse aqui, o filme não seria nem de longe tão memorável e poderoso quanto é, mas do ponto de vista temático sua tese seria de que o bullying pedagógico é profundamente danoso, levando não só ao fim da carreira de Andrew como também a de seu sádico professor, que em um último ato de imensa canalhice mentiu sobre o ex-aluno cujo suicídio ele causou.

Porém... o filme prossegue e contradiz essa tese da maneira mais enfática possível.

 

03.

Pode parecer que Whiplash só continua porque o clímax é irresistível.

E não posso culpar Chazelle por isso: a cena final é absolutamente espetacular. Dramaticamente impecável, uma catarse fabulosa para o conflito central da história. Se eu fosse o cineasta, não conseguiria dormir pelo resto da minha vida caso não incluísse esse clímax em algum ponto da projeção. É aquela escolha: vou na direção mais interessante ou mais tematicamente apropriada? Há como conciliar ambas?

Mas o diretor vai além: antes desse clímax, ele inclui uma cena cujo único propósito é colocar Fletcher como o herói da história.

Com seu kit guardado em um armário, Andrew se torna atendente de um estabelecimento de fast food e, por acaso, passa por um restaurante onde Fletcher está tocando piano com uma pequena banda de jazz. Andrew assiste à performance, e o ex-professor o vê na plateia. Sem demonstrar raiva, não parecendo saber que o rapaz foi seu delator, Fletcher o convida para conversar.

FLETCHER: “A verdade é que eu não acho que as pessoas entenderam o que eu estava fazendo em Schaffer. Eu não estava lá para ser condutor; qualquer idiota pode balançar os braços e manter as pessoas no ritmo. Eu estava lá para exigir das pessoas que fossem além do que era esperado delas. Eu acredito que isso é uma necessidade absoluta. Do contrário, estamos privando o mundo do próximo Louie Armstrong. Do próximo Charlie Parker. Eu te contei a história de como Charlie Parker se tornou Charlie Parker, não contei?”

ANDREW: “Jo Jones tacou um címbalo na cabeça dele.”

FLETCHER: “Exato. Parker era um rapaz jovem, bom no saxofone, foi tocar em uma cutting session, e fez merda. E Jones quase o decapitou por isso. Saiu do palco sob gargalhadas da plateia. Naquela noite, chorou até pegar no sono. Mas na manhã seguinte, o que ele faz? Ele treina. E treina, e treina com um objetivo em mente: que nunca riam dele novamente. E um ano depois, ele volta pro Reno e sobe no palco e toca o melhor solo que o mundo já escutou. Então imagine se Jones tivesse dito: ‘não, tudo bem, Charlie, fez bem, bom trabalho’. E aí Charlie diz pra si mesmo, ‘é, eu fiz mesmo um bom trabalho’. Fim da história. Bird não vem a existir. Isso, para mim, é uma absoluta tragédia. Mas é isso que o mundo quer agora. E nós nos perguntamos porque o jazz está morrendo. Eu te digo, cara, e todo álbum ‘jazz’ de Starbucks prova meu argumento: não existem duas palavras na língua inglesa mais danosas que ‘bom trabalho’.”

ANDREW: “Mas há um limite? Tipo, talvez você vá longe demais e desencoraje o próximo Charlie Parker a se tornar Charlie Parker?”

FLETCHER: “Não, cara, não. Porque o próximo Charlie Parker jamais seria desencorajado.”

ANDREW: “Sim.”

FLETCHER: “A verdade, Andrew, é que eu nunca tive um Charlie Parker. Mas eu tentei. Porra, eu tentei de verdade. E isso é mais do que a maioria das pessoas faz. E eu nunca pedirei desculpas por como tentei.”

 

E ao longo de tudo isso, Andrew acena positivamente com a cabeça, sua expressão concordando com tudo o que ouve.

O único momento no qual demonstra dúvida é respondido de forma que considera satisfatória. A crença de Fletcher é literalmente que não há genialidade sem bullying. Que toda mente brilhante precisa ser traumatizada para alcançar seu potencial. Que pessoas como ele devem ser creditadas pelos grandes talentos da história.

É uma ideia simplesmente absurda, mas que o clímax do filme inequivocamente celebra. Após a conversa no restaurante, Fletcher diz que conduzirá um concerto de jazz e convida Andrew para ser o baterista. Já no palco, com todos prestes a começar, o professor se aproxima do protagonista e diz, “Você acha que sou estúpido? Eu sei que foi você.” Estupefato, Andrew vê Fletcher ir até o microfone e anunciar para a plateia qual será a primeira música. O rapaz olha para suas partituras e vê que a música em questão não está entre elas. Ele é forçado a improvisar, mas não consegue ir bem, causando o estranhamento de todos os presentes. Depois que a música termina, Fletcher se aproxima dele e diz, “É, talvez você não tenha mesmo o talento,” e volta para o microfone.

Andrew levanta-se derrotado e sai do palco, encontrando seu pai nas coxias. Este, como sempre, estimula o filho a desistir e ir pra casa. Mas o rapaz decide voltar para a bateria e, antes que Fletcher possa interferir, começa a tocar “Caravan”. A orquestra fica surpresa, mas hesitantemente o acompanha, e Fletcher – furioso, mas não querendo quebrar a cara na frente da plateia – decide não apresentar objeção e conduz a música. A performance é tão boa que o professor se vê conquistado, e quando Andrew decide improvisar um ambicioso solo de bateria, Fletcher se aproxima e o conduz com empolgação. É um momento de plena harmonia e reconciliação entre os dois, enquanto o pai derrotista de Andrew observa tudo de olhos arregalados e com “Eu estava errado em duvidar de Fletcher” escrito em neon na sua testa.

O bullying do professor deu certo. Chazelle não se preocupa em esclarecer o que aconteceu com os outros personagens que ficaram no caminho. Nunca sabemos o que houve com Tanner, com Ryan, com o aluno gordo, todos que foram humilhados pelo professor sem jamais ganharem sua aprovação. Só sabemos sobre o suicídio de Sean Casey, e mesmo que isso provoque a simpatia do espectador, o filme não parece compartilhar desse sentimento. Pelo contrário, joga o personagem de lado na cena em que Fletcher defende sua filosofia de “ensino”. Casey é tratado mais como um recurso dramático (reviravolta!) do que temático.

E sabe o que é pior? Nem teria sido tão difícil o filme contrariar a filosofia de Fletcher. Na verdade, teria sido a coisa mais simples do mundo: após o clímax, um epílogo no qual Andrew comete suicídio anos depois. Por mais incrível que tenha sido sua performance, ele termina que nem Sean Casey.

É assim que Stanley Kubrick conclui a primeira metade de Nascido Para Matar: o sargento Hartman (R. Lee Ermey), a quem Fletcher pode ser comparado sem exagero algum, consegue transformar o recruta Pyle (Vincent D’onofrio) em um soldado competente através de humilhações pavorosas. Porém, o processo destrói completamente a psique do rapaz, que sofre um colapso nervoso, assassina Hartman e comete suicídio.

Mas não era essa a mensagem que Chazelle queria passar, e cada cena de seu filme, cada pequeno momento, constrói sua tese desumana e absurda de maneira tão dramaticamente eficaz que é impossível para mim não adorar Whiplash como drama.

Mas jamais sua filosofia absurda de que o bullying é uma ferramenta de ensino vital.

 

04.

Além disso, Whiplash também passa pequenas mensagens que muito possivelmente são acidentais, mas que um diretor mais socialmente consciente teria percebido e achado um jeito de contornar. Seja de propósito ou por acidente, este é um filme profundamente retrógrado.

Por exemplo, alguém notou que o professor da orquestra inferior do conservatório, a Nassau, é negro?

Fletcher simplesmente entra na sala dele e, sem a menor cerimônia, zomba da partitura que estão praticando. O professor da Nassau não diz uma única palavra, demonstrando total submissão a Fletcher e não aparecendo mais pelo resto do filme. O cara negro fica com a orquestra inferior, e um professor branco pode entrar na sala quando quiser e pegar os alunos que bem entender.

Mas não termina aí: os outros personagens negros só falam em três momentos. Um desses personagens é o músico babaca da Nassau que fala mal de Andrew alto o suficiente para que o rapaz ouça. Depois disso, quando os músicos da Studio Band entram na sala, um personagem negro diz, em meio a uma conversa: “Não é tão ruim, cara, ela é uma go-go dancer, podia ter feito pornô, mas escolheu não fazer.” E o terceiro personagem negro a dizer algo é um músico no clímax do filme que, quando Andrew toca mal, diz pra ele: “Que porra cê tá fazendo?”.

Um comentário insensível, outro superficial e sexista, e uma pergunta. Essa é a contribuição dos personagens negros para o filme.

As personagens femininas também não se saem muito melhor. Entre os músicos da Nassau que Fletcher dispensa, está a única mulher do grupo. “Você está na primeira fileira, vejamos se é só por ser bonitinha,” Fletcher diz. Ela toca mal, e ele completa, “É, é por isso.”

A única outra mulher que vemos tocando em uma orquestra está no clímax do filme e só aparece com alguma proeminência (nunca sozinha) em dois rápidos planos. E é isso. Acabaram as instrumentistas femininas de Whiplash.

Se essa porcentagem de mulheres em orquestras de jazz reflete a realidade, não sei, mas por que Chazelle decidiu ser autêntico nisso? Whiplash é cheio de distorções da realidade: o treino de bateria sendo retratado como espancar o kit até que as mãos sangrem, um professor que nunca ensina nada a ninguém. Por que na hora de retratar a porcentagem de mulheres em bandas de jazz, Chazelle decide ser fiel à realidade? Supondo que essa seja mesmo a realidade, com isso o diretor apenas reforça o status quo. Retratar orquestras de jazz com uma porcentagem maior de mulheres teria sido uma atitude convidativa a estas na vida real.

Quanto a outras personagens femininas, há apenas quatro: a namorada de Andrew, Nicole; uma parente de Andrew que só aparece na cena de jantar e tem quatro falas superficiais; uma criança, que não diz nada; e uma assistente de palco que surge por alguns breves segundos ajudando Fletcher a vestir seu casaco. Mesmo.

Isso tudo para não mencionar o músico acima do peso que Fletcher expulsa da Studio Band. Chazelle filma a cena de forma a convidar o riso do espectador. “Veja que figura patética,” ele parece dizer. Repare no momento em que Fletcher fica parado impacientemente em primeiro plano enquanto o garoto junta suas coisas ao fundo, desfocado pela câmera como se não tivesse a mínima importância, tentando carregar seus instrumentos para fora da sala.

E ainda por cima, o diretor pisa em cima de pessoas com condições mentais: Carl Tanner perde sua vaga como baterista principal por ter um problema de memória e o ex-aluno Sean Casey, por mais que Fletcher gostasse dele, é logo esquecido. O professor lamenta o suicídio do rapaz, mas não se arrepende de sua contribuição para a ansiedade e depressão que o mataram, e o filme o aplaude por isso (“Eu nunca pedirei desculpas por como tentei”).

Com tudo isso listado, pode parecer incrível que esses momentos tenham sido um acidente, mas provavelmente foram. Chazelle pode simplesmente não ter parado para pensar nos elementos mais sutis de sua história. Fletcher gritar insultos homofóbicos não é um problema enquanto o filme parece considerá-lo um monstro, mas quando a história justifica tudo o que ele fez a ponto de torná-lo um ídolo, aí a coisa complica.

 

05.

“Mas eu não saí do filme achando que Fletcher é um herói!”

Que bom, mas é disso que o filme tentou te convencer, e o fato de ter fracassado não significa que é ambíguo. Ao analisar a mensagem de uma história, nossa reação aos acontecimentos da trama é importante, mas não tão importante quanto a reação que esses acontecimentos buscaram causar. E é muito, muito fácil confundir as duas coisas. Quando gostamos de uma obra, queremos que ela esteja alinhada com nosso compasso moral. Com frequência projetamos nossas crenças sobre o significado de um filme, quando o que devemos fazer é prestar atenção na crença que o filme demonstra. Por mais óbvio que pareça para nós que certa atitude de um personagem é imoral, não podemos presumir que o filme a considera imoral a menos que a história mostre – de alguma forma, da mais sutil à mais didática – que compartilha desse sentimento.

Se você assiste a uma cena de tortura brutal e a considera desumana, não significa que o filme também considera. Da mesma forma que “mostrar algo não significa defender algo”, também não significa “atacar algo”. Tudo dependerá do contexto em que a cena está. O que acontece antes dela? O que acontece depois? Qual é o tom da cena? Com que frequência o diretor carrega nos elementos repulsivos? Quais ações imorais a história se esforça para aliviar com justificativas dramáticas? E o mais importante de tudo: o que acontece no desfecho? A que conclusão a obra chega?

 

Veja Tropa de Elite, por exemplo. Muitos acusam o filme de ser fascista, de glorificar o BOPE como uma solução para os problemas do Rio de Janeiro. Vejamos os argumentos que sustentam essa tese:

- Os problemas do Rio de Janeiro são descritos pelo Capitão Nascimento (Wagner Moura) numa narração em off, com cenas ilustrando suas opiniões como corretas. Ao longo do filme inteiro, não há uma única cena que contradiga sua narração.

- O filme repetidamente mostra o BOPE como profissional, infalível e incorruptível. Os únicos outros personagens da trama com esse caráter terminam no BOPE e são os mais humanizados. Todos os demais personagens da trama são retratados, em maior ou menor grau, de forma negativa (PMs e políticos são corruptos, a classe média é hipócrita e desinformada, membros de uma ONG são retratados como idiotas por aceitar conviver com traficantes para poder trabalhar em uma favela).

- O Capitão Nascimento é o personagem mais humanizado do filme, sempre guiado por um idealismo inabalável. Todas as suas ações são, em algum grau, justificadas pelo filme (ele está sob pressão; ele sofre ataques de pânico; ele tem o desejo genuíno de proteger o cidadão).

- O tom das cenas que mostra o BOPE em ação ou em treinamento é quase pornográfico. A música pesa no rock, glorificando tudo ainda mais.

- Quatro cenas brutais de tortura feitas pelo BOPE se provam eficazes na obtenção de informação correta.

- A única cena de tortura que não rende informação alguma só acontece porque Capitão Nascimento quer se redimir por uma morte que indiretamente causou. E ainda fica subentendido que a tortura só não funcionou porque Nascimento precisou interrompê-la para resolver um imprevisto. Quando o torturado é assassinado a sangue-frio por um membro do BOPE, Nascimento diz “Bota na conta do papa”, distribuindo a responsabilidade pelo ato.

- O filme não oferece qualquer alternativa ao BOPE, que surge como a única entidade idealista e incorruptível do filme.

 

E aqui vão os argumentos que defendem o filme como sendo uma condenação do BOPE:

- No clímax do filme, que intensifica a brutalidade do BOPE na busca por Baiano, o Capitão Nascimento começa a revistar as casas dos moradores sem permissão judicial, o que até ele hesitaria fazer em circunstâncias normais. Um membro do BOPE se manifesta contra, e Nascimento o manda embora.

- Maria (Fernanda Machado) dá a Matias (André Ramiro) o nome de uma possível informante, fazendo-o prometer que não a machucará. O filme corta secamente para Matias participando da tortura da informante.

 

Só isso. E esses argumentos ainda por cima não convencem, porque ambas as torturas são vitais para a rápida captura de Baiano. Padilha mostra o traficante queimando uma pessoa no “micro-ondas” de pneus pouco antes dessas cenas, um ato de imensa crueldade e sadismo que o colocam num patamar muito pior do que qualquer outro personagem. Se você não acha que isso justifica as torturas, ótimo, mas o filme certamente parece achar que justifica. Fica subentendido que se o BOPE tivesse sido ainda mais brutal mais cedo, teriam conseguido capturar Baiano antes que ele matasse outros personagens.

Como uma condenação do BOPE, Tropa de Elite não tem qualquer coerência que seja. Como uma glorifica&c

Sobre o autor:

É primariamente escritor e autor da tira em quadrinhos PITCH BLACK. Sua experiência com técnicas narrativas e cinematográficas vem do estudo téorico e da prática, tendo trabalhado como videomaker por vários anos. Também fez cursos com um tal de Pablo Villaça.

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