O glamour é mais atraente quando observado de longe; de perto, é difícil não notar as imperfeições e rachaduras na superfície que comprometem o efeito.
Um exemplo pode ser encontrado nas sessões de gala de Cannes, que incluem a passagem pelo tapete vermelho: a princípio, são um dos elementos que tornam o festival tão conhecido, mas quando observadas ao vivo, trazem um elemento surpreendente – os aspirantes à fama ou à mera oportunidade de vê-la de perto.
Pois basta andar pela Croisette, diante do Palácio dos Festivais, para encontrar este tipo curioso: pessoas que, usando roupas de gala (vestidos longos ou smoking), ficam paradas na rua segurando cartazinhos escritos à mão nos quais suplicam por convites para as premières. Por que fazem isso? Qual é o prazer que perseguem? O que fazem quando não conseguem o convite (e imagino que seja o mais frequente)? Voltam para casa e se trocam, entristecidos, ou buscam outro programa no qual o trabalho de se vestir com tanto esmero possa ser recompensado?
Ou a única recompensa que buscam são os poucos segundos do tapete vermelho e a chance de ver alguma celebridade a metros de distância?
Não sei. Mas me entristece um tico pensar nisso.
Enfim.
Vamos aos filmes do segundo dia:
Mad Max: Estrada da Fúria (Mad Max: Fury Road, 2015) – 5 estrelas em 5
Dirigido por George Miller. Roteiro de Miller, Brendan McCarthy e Nick Lathouris. Com: Tom Hardy, Charlize Theron, Nicholas Hoult, Hugh Keays-Byrne, Nathan Jones, Zoë Kravitz, Rosie Huntington-Whiteley, Riley Keough, Abbey Lee, Courtney Eaton.
Para saber como seria um filme que tomou ácido e cheirou cocaína, basta assistir a Mad Max: Estrada da Fúria. Louco como personagem título, este retorno do veterano cineasta George Miller à série que consagrou Mel Gibson é overdose sensorial, um longa de ação ao mesmo tempo clássico em sua abordagem e extremamente contemporâneo em sua energia.
Com roteiro escrito por Miller ao lado dos estreantes Brendan McCarthy e Nick Lathouris, Estrada da Fúria se passa num universo pós-apocalíptico no qual o combustível e a água são líquidos preciosos e que parece ter se transformado num imenso deserto. Trazendo referências periféricas aos longas anteriores, esta nova produção não pode ser considerada continuação, refilmagem ou reboot: aqui, Max (Hardy) já perdeu sua família há alguns anos, mas o mundo no qual habita não é exatamente aquele do original. Além disso, a trama é o que menos importa desta vez, já que o projeto se resume a longas sequências de ação que trazem o protagonista sendo perseguido pelo vilão Immortan Joe (Keays-Byrne, que também viveu um dos vilões do original), que encontra-se determinado a capturar a guerreira Imperator Furiosa (Theron), que fugiu de sua fortaleza levando seu harém particular.
Comprovando que a falta de uma trama elaborada não compromete necessariamente o resultado final de uma produção cinematográfica, já que esta é uma arte visual na qual a narrativa é mais importante do que a história, Estrada da Fúria diverte graças ao absurdo do universo que constrói e que abriga não só personagens com nomes como Rictus e... ora... Imperator Furiosa, mas também conceitos como o do Doador Universal (que aqui ganha contornos extremos), guerreiros kamikazes que anseiam se sacrificar em nome de Immortan Joe (cujo visual é uma mistura de Bane e Beetlejuice) e uma sociedade que idolatra o automobilismo, entregando-se a cânticos de “V8!” e usando expressões como “Isso é muito cromo!”.
Aliás, a imaginação de George Miller ganha vida graças ao excepcional trabalho de design de produção de Colin Gibson, candidato sério aos principais prêmios do ano que confere personalidade até mesmo aos veículos empregados pelos personagens – e meus favoritos são aqueles que trazem a carroceria de um carro sobre a base de um tanque, aquele que parece um porco-espinho e, claro, um terceiro que inclui imensas caixas de som e um guitarrista em sua estrutura. Chegando mesmo a fazer referência visual ao clássico Metrópolis ao trazer uma máquina gigantesca que incorpora elementos humanos em seus mecanismos, Gibson é beneficiado também pela parceria com o diretor de fotografia John Seale (mais um que merece indicações), que evita a paleta cinza e dessaturada da maior parte dos filmes pós-apocalípticos e opta por investir em cores intensas que tendem a valorizar o contraste esteticamente agradável entre o laranja das cenas diurnas e o azul das noturnas (e o trabalho de correção de cores que ocorre na pós-produção permite ressaltar contrastes em um mesmo plano, como aquele que traz Max e Furiosa no banco da frente, mergulhados em azul, e as garotas que resgatam logo no banco de trás banhadas em laranja).
No entanto, o que realmente torna Estrada da Fúria magnífico é a energia impressionante de suas sequências de ação – e a principal delas toma (sem exagero) praticamente toda a primeira hora de projeção, sendo fabuloso constatar como George Miller sustenta o ritmo ao torná-la cada vez mais insana em sua concepção, começando com uma simples perseguição e culminando em tempestades de areia, motocicletas que atiram bombas durante saltos, brigas que trazem oponentes acorrentados um ao outro e assim por diante. Mas mais importante do que isso é constatar como o septuagenário Miller dá uma surra de câmera (copyright meu) em diretores bem mais jovens como Joss Whedon (nem vou citar Michael Bay, pois seria covardia) ao demonstrar como não é necessário tornar a ação incompreensível para conferir tensão, energia e dinamismo ao que vemos na tela. Sem depender de cortar a cada milésimo de segundo e jamais movimentando o quadro como se o operador da câmera fosse Michael J. Fox, Miller permite que o espectador sempre saiba onde estão os personagens, em que direção se movimentam, suas relações espaciais uns com os outros e com a geografia que os cerca, chegando mesmo a empregar algo cada vez mais raro em longas do gênero: planos conjuntos que se detém alguns longos segundos antes de darem lugar a outros mais fechados.
Para completar, o cineasta toma uma decisão narrativa curiosa que tinha tudo para dar errado, mas acaba funcionando apesar do estranhamento que provoca inicialmente: o uso, durante as sequências de ação, de um frame rate mais baixo do que os 24 quadros por segundo habituais e que provocam uma sensação de movimento acelerado (algo como ocorre quando vemos, hoje em dia, os filmes da época do Cinema mudo, rodados a 16fps). Assim, é como se o próprio longa entrasse em modo turbo sempre que os personagens partem para o confronto, o que também é eficaz ao estabelecer um contraponto às cenas mais calmas, nas quais estes apenas conversam em tom baixo e cuidadoso. (E por falar em conversas, é bom reparar que Estrada da Fúria passaria até mesmo no famoso teste de Bechdel, já que suas personagens femininas se mostram independentes e discutem questões que fogem muito de sua relação com os homens. Homens que, por sinal, elas salvam repetidas vezes ao longo da jornada.)
Trazendo tanta ação que pode se dar até mesmo ao luxo de, em certo momento, mostrar o protagonista partindo para um confronto e voltando segundos depois com sinais de ter protagonizado uma luta feroz (que jamais vemos), Estrada da Fúria certamente morreria de overdose caso fosse uma pessoa. Como não é, porém, podemos apreciar sua viagem alucinada sem culpa ou preocupação alguma – e torcer para que Miller retorne ao narguilé mais algumas vezes.
An (Idem, 2015) – 4 estrelas em 5
Dirigido e roteirizado por Naomi Kawase. Com: Nagase Masatoshi, Kirin Kiki e Uchida Kyara.
Assim como comentei ao escrever sobre Mad Max: Estrada da Fúria (que vi imediatamente antes deste filme no segundo dia do Festival de Cannes), o Cinema é uma arte capaz de transformar a mais prosaica ou convencional das histórias em algo envolvente e memorável. Este An, novo longa da cineasta japonesa Naomi Kawase, é mais um exemplo disto: a princípio, é fácil descartar sua trama como uma coleção de clichês, já que acompanha um homem que reaprende, graças ao encontro inesperado com uma idosa, a valorizar a vida e a beleza do cotidiano – o tipo de trama que já vimos centenas de vezes. Porém, Kawase retrata a dinâmica da dupla com tamanha sensibilidade e delicadeza que isto suplanta qualquer familiaridade excessiva que poderíamos ter com a história em si.
Baseado em um livro de Durian Sukegawa e roteirizado pela própria diretora, o longa gira em torno de Sentaro (Masatoshi), gerente de uma pequena confeitaria especializada em dorayakis – uma espécie de panqueca recheada com pasta de feijão vermelho doce (o “an” do título). Homem triste e solitário cuja rotina vazia já é ilustrada no plano inicial da narrativa, que o acompanha enquanto desperta, caminha arrastando os pés desanimado até a cobertura do prédio e fuma sozinho em uma vizinhança ainda deserta, Sentaro chega a subornar seus poucos clientes para que saiam logo da loja, demonstrando apenas alguma atenção para com a jovem Wakana (Kyara) – talvez por pressentir que esta é tão solitária quanto ele. É então que, certa manhã, uma senhorinha chamada Tokue (Kiki) pede emprego ao sujeito, que, ao provar sua receita de an, decide contratá-la, imediatamente atraindo fregueses encantados com a mudança na qualidade das iguarias ali vendidas.
Construído a partir da dinâmica formada pelas personalidades opostas de Sentaro e Tokue, o filme traz uma performance encantadora por parte de Kirin Kiki (que, diga-se de passagem, também aparece em Our Little Sister, que participa da mostra competitiva de Cannes): encarnando a personagem como uma velhinha vivaz e feliz que enxerga beleza em tudo que vê (manifestando sua alegria com uma risadinha infantil), a atriz ilustra o encantamento de Tokue até mesmo com os feijões que cozinha – e o processo de preparo do doce é acompanhado em detalhes por Kasawe, que aproveita a sequência para aproximar a dupla através da tarefa que compartilham.
Já Sentaro é vivido por Nagase Masatoshi como um homem que não gosta sequer de doces, embora dependa destes para sobreviver (um descaso que, claro, choca Tokue). Vestindo sempre roupas cinzas que refletem sua melancolia constante, o protagonista aos poucos demonstra os efeitos da convivência com a nova funcionária – e o ator é hábil ao conduzir as mudanças com sutileza, como ao exibir um rápido sorriso de satisfação ao ouvir seus dorayakis elogiados e ao finalmente parecer prestar atenção no que lhe diz a jovem Wakana.
Este arco ganha também representação visual através da boa fotografia de Akiyama Shigeki, que frequentemente traz Sentaro sob uma luz fria enquanto a alegria de Tokue se mostra tão contagiante que chega a provocar flares na lente em função do sol agradável que a envolve – e que acaba por cercar também Sentaro enquanto este ouve um recado da amiga. Por outro lado, o filme acaba se revelando bem óbvio em sua mensagenzinha sobre como contratempos não devem determinar nossa felicidade, usando, para isso, uma comunidade de vítimas de hanseníase e, claro, a própria Tokue.
Mais: a própria ideia de trazer um confeiteiro que redescobre a doçura metafórica e literal da vida é excessivamente convencional. Ainda assim, não há como negar que, graças ao toque gentil de Kawase, o longa se mostra doce e gentil como a encantadora velhinha que enfoca, o que faz uma imensa diferença.
One Floor Below (Un etaj mai jos, 2015) – 4 estrelas em 5
Dirigido por Radu Muntean. Roteiro de Muntean, Alexandru Baciu e Razvan Radulescu. Com: Teodor Corban, Iulian Postelnicu, Oxana Moravec, Maria Popistasu.
Já manifestei, em várias ocasiões, minha admiração pelo Novo Cinema romeno, que frequentemente me encanta com sua abordagem narrativa típica: a observação cuidadosa e detalhista do cotidiano de personagens comuns que, lidando com empregos prosaicos e dilemas que nada têm de fantásticos, fascinam através de sua simples humanidade.
Pois todas estas características estão presentes neste One Floor Below, do diretor Radu Muntean: aqui, acompanhamos Patrascu (Corban), um homem de meia-idade que, atuando como despachante (a mais burocrática das profissões), vive com a esposa e o filho adolescente em um prédio de classe média. Certa manhã, ao voltar de um passeio com seu cachorro, o sujeito ouve uma discussão no apartamento abaixo do seu e nota que a vizinha está discutindo com o jovem Vali (Postelnicu). Quando a garota é descoberta morta algumas horas depois, Patrascu é interrogado pela polícia, mas opta por não revelar o que sabe.
Ora, por que ele toma esta decisão? Covardia? Receio de trazer problemas para sua família? Uma resistência natural à autoridade (algo que encontraria reflexo na história recente do país)? Excesso de discrição? O roteiro, escrito por Muntean, Alexandru Baciu e Razvan Radulescu (A Morte do Sr. Lazarescu), jamais revela – e com razão, já que as motivações de Patrascu interessam menos do que a maneira com que resolve lidar com a abordagem de Vali, que parece determinado a se intrometer em seu cotidiano. Aliás, por que o rapaz faz isso? Mais uma vez, o trio de roteiristas prefere deixar a conclusão a cargo do espectador, embora não seja difícil perceber um certo impulso autodestrutivo que, numa espécie de “efeito Raskolnikov”, sugere um desejo de punição por parte do jovem – isto caso seja mesmo culpado.
Seja como for, o maior atrativo de One Floor Below é, como em seus colegas de corrente cinematográfica, a atenção que presta às ações dos personagens: em certo instante, por exemplo, Patrascu desce do carro e, depois de recolher o lixo sobre o banco do passageiro, acaba de comer os restos de um salgadinho antes de atirar o pacote na lixeira, numa atitude que, mesmo rápida, confere autenticidade e humanidade ao sujeito. Da mesma maneira, é interessante reparar como, durante uma conversa que mantém com o vizinho, a esposa deste chama o marido para atender o telefone – algo que não tem nada a ver com a trama, mas nos lembra de que todas aquelas pessoas possuem vidas próprias mesmo sendo desimportantes para o filme.
Já Patrascu, cuja natureza gentil é estabelecida na sequência de abertura da projeção, quando o vemos brincando com seu cão em um parque, é interpretado pelo ótimo Teodor Corban como um homem que parece incerto sobre as próprias ações – e não é à toa que, em certo ponto, ele visita um amigo policial sem, porém, jamais tocar no assunto que ocupa sua mente, permitindo que percebamos que, de certa maneira, ele quer apenas se assegurar de ter a quem recorrer caso decida tomar alguma atitude. De forma similar, quando o vemos navegando pela página da vizinha no Facebook, podemos tanto concluir que está sentindo remorsos pelo silêncio ou que está buscando se motivar para recorrer a polícia, já que o processo de observar o que o homem faz é mais interessante do que suas decisões.
Adotando longos planos que praticamente se mantêm sem cortes durante cada cena, One Floor Below também descarta qualquer trilha não-diegética, construindo certa tensão apenas através de sua estratégia contemplativa – embora, ao contrário do que ocorria no trabalho anterior do diretor (o excepcional Tuesday, After Christmas), desta vez o filme acabe superestimando sua capacidade de manter o espectador envolvido e estenda demais a hesitação de Patrascu, perdendo um pouco do ritmo e do impacto que poderia provocar. O que não o transforma num fracasso, mas inevitavelmente limita seu alcance dramático.
Son of Saul (Saul fia, 2015) – 3 estrelas em 5
Dirigido por Laszlo Nemes. Roteiro de Nemes e Clara Royer. Com: Géza Röhrig, Levente Molnár, Urs Rechn, Todd Charmont, Kamil Dobrowolski.
Basta ler a sinopse do húngaro Son of Saul para constatar que será um filme doloroso de se assistir: ambientado durante a Segunda Guerra, o longa acompanha Saul (Röhrig), que atua em um campo de concentração como sonderkommando (basicamente, prisioneiros judeus forçados a ajudar os nazistas a conduzirem suas vítimas até as câmaras de gás e, depois, a providenciar a cremação ou enterro de seus corpos). Certo dia, Saul descobre o cadáver de um garoto em uma das câmeras e constata que se trata de seu filho, decidindo roubá-lo a fim de enterrá-lo apropriadamente.
Se esta trama já seria normalmente sufocante, ela se torna ainda mais intensa graças à abordagem do cineasta estreante Laszlo Nemes e de seu diretor de fotografia Mátyás Erdély, que empregam uma razão de aspecto reduzidíssima (1.37:1) que confere uma atmosfera claustrofóbica à experiência. Como se não bastasse, eles mantêm uma profundidade de campo mínima e quadros sempre fechados, numa estratégia que não só suga qualquer ar do ambiente como praticamente garante que o público assuma a perspectiva de Saul, quase transformando o longa em uma narrativa em primeira pessoa.
O curioso é que, com isso, toda a extensa ação que ocorre ao longo da projeção é mantida fora de foco, limitando-se a borrões que se tornam mais ou menos visíveis de acordo com as intenções imediatas do diretor – e considerando que o projeto parece ter empregado uma quantidade enorme de figurantes e de efeitos práticos, é notável que estes apareçam basicamente como espectros e sons. Aliás, o design sonoro da produção é fabuloso, desde o som crescente do trem na sequência inicial até os estrondos de tiros no clímax.
Em contrapartida, para que Son of Saul funcione, é fundamental que Géza Röhrig se mostre capaz de manter o espectador conectado ao seu personagem, já que é basicamente seu rosto que vemos durante os 107 minutos de projeção. Mantendo a expressão sempre cerrada em seu rosto machucado, o ator ilustra bem o condicionamento psicológico do protagonista – como, por exemplo, ao esbarrar em um oficial alemão e imediatamente tirar o boné e assumir uma postura reverencial.
Mas o fato é que justamente a eficácia da narrativa em seu propósito de nos mergulhar na perspectiva de Saul acaba comprometendo a experiência, já que, depois de algum tempo, aquilo se torna exaustivo não só para o personagem, mas também para o espectador – e como o longa é intencionalmente monocórdico visualmente, não resta sequer a válvula de escape de percorrer o quadro com o olhar para avaliar o que está ocorrendo.
O que não elimina os méritos de Nemes e a ironia trágica do ótimo plano no qual finalmente vemos Saul abrir seu único e rápido sorriso.