Só porque no texto de ontem elogiei a projeção e as legendas em Cannes, hoje elas falharam durante uma das sessões.
O que me leva a lembrar que nunca recebo cheques milionários das mãos de estranhos na Riviera.
E vamos aos filmes:
Sicário (Idem, 2015) – 5 estrelas em 5
Dirigido por Denis Villeneuve. Roteiro de Taylor Sheridan. Com: Emily Blunt, Josh Brolin, Benicio Del Toro, Jeffrey Donovan, Daniel Kaluuya, Jon Bernthal, Victor Garber, Maximiliano Hernández.
A filmografia do cineasta canadense Denis Villeneuve é eclética em seu estilo, mas consistente em sua qualidade. Responsável por obras admiráveis como Politécnica, Incêndios, Os Suspeitos e O Homem Duplicado, o diretor é também um autêntico mestre na maneira com que constrói uma tensão insuportável em vários de seus longas e que em Sicario atinge um novo patamar.
Escrito por Taylor Sheridan, o filme é uma espécie de Traffic 2.0 que demonstra como as teses principais apresentadas naquele trabalho de Soderbergh eram essencialmente corretas: não há solução em curto ou médio prazo para o narcotráfico – e mesmo qualquer saída em longo prazo deve ser encontrada com perspectivas realistas, não com uma fantasiosa de acabar definitivamente com o consumo de drogas ilegais no planeta. Ambientado na fronteira entre o México e os Estados Unidos, o projeto se concentra na agente do FBI Kate Macy (Blunt), que lidera uma equipe responsável por libertar vários reféns dos traficantes ao longo dos meses. Escalada para fazer parte de uma força-tarefa, ela se torna inquieta com os métodos do misterioso agente Matt (Brolin) e, especialmente, com a presença do insondável Alejandro (Del Toro), cujo papel na equipe ela não consegue identificar.
Funcionando como a bússola moral do roteiro, já que jamais se mostra confortável com o que testemunha por mais que a visão de Matt possa soar pragmática e mesmo eficaz, Kate é uma mulher forte e independente que Emily Blunt encarna com uma expressão constantemente tensa e com grande segurança na maneira como se move e age durante as missões, deixando claro por que seus companheiros têm tanta confiança em sua liderança. Muitas vezes se forçando a aceitar a ação do novo chefe (chegando a se “motivar” ao ver fotos das vítimas do tráfico), Kate é uma protagonista curiosa, já que parece se colocar com frequência no caminho da ação em vez de liderá-la. Enquanto isso, Josh Brolin transforma Matt em um homem cujo temperamento imprevisível já é ilustrado por seu figurino, quando, na primeira cena em que aparece, se contrapõe aos ternos e gravatas dos colegas ao vestir camisa aberta, sandálias e ao exibir a barba por fazer.
Um dos grandes atrativos de Sicario, diga-se de passagem, é a contraposição não só entre Kate e Matt, mas entre este e o Alejandro de Benicio Del Toro: se Brolin surge como o ianque arrogante e com modos irreverentes, Del Toro confere um ar inquestionável de ameaça ao seu personagem apenas através do olhar e dos modos rígidos, já que sua performance traz pouquíssimos diálogos. Favorito desde já a indicações às premiações de fim de ano, o ator evoca não só perigo, mas também a dor de Alejandro: aquele homem pode ser letal, mas é claramente um indivíduo com seus próprios demônios pessoais, mostrando-se inquieto até mesmo ao dormir e falando em um tom controlado que sugere não só autodisciplina, mas uma natureza solitária.
Neste aspecto, a abordagem de Villeneuve é novamente consistente, já que busca sempre encontrar a humanidade de cada personagem – não só dos principais, mas até mesmo daqueles que costumamos ver morrendo aos montes em obras do gênero sem jamais sabermos nada sobre suas vidas, mas que aqui ganham algum tempo de tela para que possamos constatar como também têm amores, receios, famílias e assim por diante. Da mesma maneira, é sintomático perceber como o cineasta filma uma breve cena na qual Matt e Alejandro interrogam dezenas de imigrantes ilegais presos, quando Villeneuve detém a câmera próxima ao rosto de vários daqueles homens e mulheres para aproximá-los do público em vez de tratá-los como uma massa de estrangeiros.
Fotografado pelo magnífico Roger Deakins, que já havia trabalhado com o canadense em seu brilhante Os Suspeitos, Sicario é constantemente inundado por uma luz levemente superexposta que cria uma atmosfera de calor sufocante envolvendo aqueles personagens. Por outro lado, as internas costumam trazer uma paleta fria e claustrofóbica, sendo comum vermos os personagens abafados por objetos ou linhas verticais (como o plano que traz Kate enfocada entre a moldura do espelho, como se estivesse numa caixa). Já a montagem de Joe Walker concebe a tensão através da justaposição de quadros abertos, que situam a geografia da cena, com outros que subitamente surgem bem mais fechados, escondendo parte do que se encontra nas proximidades. Para encerrar, a trilha de Jóhann Jóhannsson se apresenta como outro elemento narrativo importantíssimo, ressaltando a tensão sem soar óbvia ou onipresente.
Aliás, estudar a maneira como as sequências de ação são construídas por Villeneuve e sua equipe é uma boa forma de perceber por que boa parte dos cineastas que trabalham no gênero atualmente fracassam tão vergonhosamente em suas tentativas de imprimir urgência à narrativa: observem, por exemplo, como um dos momentos mais tensos de Sicario é precisamente aquele no qual vemos dúzias de carros parados e constatarão a força de um diretor inspirado. Primeiro, Villeneuve estabelece o engarrafamento no início da sequência, quando o vemos na mão oposta àquela ocupada pela heroína e os demais anti-heróis; com isso, ao retornar ao local minutos depois, o filme já havia preparado o espectador para o espaço da cena, podendo reambientá-lo rapidamente através de alguns planos aéreos breves, mas concentrando-se mais em quadros fechados que refletem o nervosismo dos agentes enquanto vasculham os carros vizinhos. Em contrapartida, Villeneuve usa uma abordagem completamente diferente (mas também eficaz) no clímax, quando retrata a ação através de câmera com visão noturna (e que não é subjetiva, o que é raro) justaposta a outra que traz imagens térmicas (estas, sim, subjetivas, jogando o espectador para a posição dos personagens).
Chocante ao trazer a realidade pavorosa que domina várias cidades mexicanas (e que pode ser constatada também no fabuloso documentário Cartel Land), Sicario nos mostra um mundo no qual corpos pendurados em pontes e a presença de vários jipes da polícia federal cruzando as ruas nem parecem afetar seus habitantes. É um universo triste que o filme não busca tornar mais palatável, já que é cínico – ou melhor: realista – ao demonstrar para o público que aquela é uma situação complexa e sem saída aparente em que pequenas vitórias são até possíveis, mas da qual o máximo que se pode esperar é algum controle sobre qual criminoso fará menos estrago ao ser mantido no comando.
Alias María (Idem, 2015) – 3 estrelas em 5
Dirigido por José Luis Rugeles. Roteiro de Diego Vivanco. Com: Karen Torres, Carlos Clavijo, Anderson Gomez, Erik Ruiz.
Maria é uma guerrilheira que,, aos 13 anos de idade, vive com os companheiros nas selvas colombianas. Grávida de um combatente mais velho, ela sabe que a grvidez não é permitida pelos superiores, embora a parceira de um deles tenha acabado de dar à luz. Recebendo a incumbência de levar o bebê a um local seguro, Maria (Torres) parte em uma viagem perigosa ao lado do namorado (Clavijo), do gentil Byron (Gomez) e do pequeno Yuldor (Ruiz), que acaba de ser aceito no grupo.
Assumindo um tom de filme de guerra desde o princípio – e remetendo especificamente àqueles ambientados no Vietnã -, Alias María busca examinar a trajetória emocional da personagem-título enquanto esta tenta conciliar seu papel de guerrilheira com os de jovem mulher (chamá-la de adolescente – o que ela é – seria negar sua vivência dura) e de mãe em potencial. Para isso, mantém o espectador colado ao rosto da expressiva atriz Karen Torres, que demonstra talento e energia ao convencer como uma menina habituada a manejar facões, submetralhadoras e a confrontos com o exército colombiano.
Impactante também ao abordar a presença de crianças na guerrilha, o filme de José Luis Rugeles peca bastante, porém, ao perder o foco narrativo em boa parte da projeção, parecendo se distrair com os aspectos de road movie (jungle movie?) da trama e com suas sequências de ação, deixando os dilemas de María diluídos em meio a todo o resto.
Como resultado, o desfecho, que poderia soar impactante e dramático, surge apenas como um anticlímax, como uma interrupção arbitrária e frustrante de uma história que poderia ter isso muito além.
Taklub (Idem, 2015) – 3 estrelas em 5
Dirigido por Brillante Mendoza. Roteiro de Honeylyn Joy Alipio. Com: Nora Aunor, Julio Diaz, Aaron Rivera, Lou Veloso, Romalito Mallari, Shine Santos.
Taklub é um filme de atmosfera, não de história. Sim, ao longo da projeção compreendemos o que os personagens estão buscando ou por que estão sofrendo (não é difícil imaginar), mas o que fazem ou pensam jamais se torna tão importante, para o diretor Brillante Mendoza, quanto o desespero e a sensação de abandono que experimentam.
Devastados pelo tufão que atingiu as Filipinas em 2013 e destruiu casas e famílias, os indivíduos vistos aqui estão presos em uma realidade da qual é impossível escapar, já que não possuem condições financeiras para buscar um recomeço em outro lugar - e, em muitos casos, nem desejariam de fato fazê-lo, já que sentem-se ancorados na região por não saberem sequer que fim levaram parentes desaparecidos. Basta dizer, como exemplo, que a protagonista Bebeth (Aunor) faz um exame de DNA na esperança de que isto ajude a identificar os restos de seu filho pequeno em uma vala que abriga centenas de corpos.
E quando sua principal esperança é achar seu filho numa vala comum, não há como experimentar realidade mais desesperadora.
Registrando as ruínas deixadas pelo tufão, Mendoza mergulha o espectador naquela comunidade específica, retratando, no processo, o apoio mútuo que aquelas pessoas encontram e que, de certa forma, torna a dor um pouco mais suportável.
Por outro lado, por mais eficiente que Teklub seja nesta tarefa, acaba se enfraquecendo como narrativa por não ter para onde ir, limitando-se a registrar o cotidiano daquelas pessoas perdidas em uma espera contínua por... o quê?
Elas não sabem. E filme tampouco.
Masaan (Idem, 2015) – 4 estrelas em 5
Dirigido por Neeraj Ghaywan. Roteiro de Ghaywan e Varun Grover. Com: Richa Chadda, Sanjay Mishra, Vicky Kaushal, Shweta Tripathi, Nikhil Sahni.
Dividido em duas tramas principais, Masaan é um filme bem estruturado que emprega suas histórias de amor para fazer uma crítica cortante à maneira com que as tradições sociais, culturais e religiosas atuam como uma força destrutiva na Índia – e o fato de ser coproduzido por aquele país (ao lado da França) e trazer uma equipe toda indiana é um testemunho não só de sua propriedade ao discutir o tema, mas também de sua coragem.
Abrindo a projeção com a jovem Devi (Chadda, lindíssima), que assiste a um vídeo pornô antes de sair de casa, o diretor e co-roteirista Neeraj Ghaywan acompanha a moça enquanto ela troca de roupa em um banheiro público e aplica o tradicional sinal na testa que a apresenta como mulher casada – apenas para entrar em um hotel com o namorado. Surpreendidos pela polícia, os dois sofrem consequências diferentes que se refletem em seus pais. Enquanto isso, o jovem Deepak (Kaushal) se apaixona por Shaalu (Tripathi), mas se angustia por saber que pertencem a castas diferentes e, portanto, não será aceito pelos pais da moça.
Alternando com fluidez entre as duas trajetórias, Masaan consegue uma proeza relativamente rara ao fazer com o que o espectador realmente sinta estar testemunhando o processo que leva duas pessoas a se apaixonarem, já que o relacionamento entre Deepak e Shaalu é desenvolvido com delicadeza ímpar e retratado com doçura pelos atores (o que é fundamental para que torçamos por sua felicidade). Já a história de Devi é bem mais angustiante ao demonstrar como o estúpido conceito de “honra do nome da família” é levado a dimensões absurdas, provocando um sofrimento desnecessário e imenso não só na garota (e Chadda, além de belíssima, é uma atriz competente), mas também em seu pai, vivido com um misto de leveza e tensão pelo ótimo Sanjay Mishra.
Amarrando as pontas em um desfecho previsível, mas não menos eficaz, Masaan é uma obra que funciona como romance e drama, tem humor, mas, acima de tudo, que demonstra como o Cinema pode ser uma arma poderosa ao defender causas de forma articulada e convincente.
Mountains May Depart (Shan he gu ren, 2015) – 1 estrela em 5
Dirigido e roteirizado por Zhangke Jia. Com: Zhao Tao, Sylvia Chang, Zhang Yi, Dong Zijian.
Obviamente influenciado por O Lugar Onde Tudo Termina e demonstrado ter aprendido de forma incorreta todas as lições contidas naquele relativamente bom projeto, o cineasta chinês Zhangke Jia conta, em Mountains My Depart, uma história que se divide em três tempos: 1999, 2014 e 2025. Iniciando com um triângulo amoroso, ele salta 15 anos no tempo para trazer um dos integrantes do trio sendo vitimado para um câncer – quando, então, se desinteressa novamente pela história e pula mais 11 anos para acompanhar o envolvimento entre uma mulher mais velha e o filho do casal formado em 1999.
E aí vem a pergunta: se nem o filme se interessa em acompanhar as trajetórias de seus personagens, por que eu deveria me importar? (E jamais descobrimos, por exemplo, que fim levou o tal sujeito adoentado.)
Claramente inspirado em Grande Hotel Budapeste, o longa também adota o recurso de usar razões de aspecto diferentes para cada época, repetindo até mesmo aquelas empregadas por Wes Anderson. Isto, porém, acaba funcionando como uma mera curiosidade em uma narrativa desconjuntada, melodramática e que traz diálogos absolutamente dolorosos de ouvir (“Você só saberá o que é o amor quando tiver sentido dor”).
Extremamente cafona em sua seleção musical – e há uma canção pavorosa que é repetida trezentas vezes ao longo da projeção -, Mountains May Depart quase consegue empatar com The Sea of Trees como o pior título da Mostra Competitiva em Cannes. Quase. E o fato de ter surgido falatório sobre a possibilidade de sair vencedor da Palma de Ouro é algo que me leva a crer que a cafonice está em voga na Croisette.