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Festival de Berlim 2016 - Dia 03 Festivais e Mostras

Antes de falar sobre os filmes que vi no terceiro dia da Berlinale, quero pedir desculpas pela qualidade dos textos publicados durante o evento, já que chego ao hotel por volta de 23h, gravo o videocast, escrevo os comentários sobre os longas e vou dormir rapidamente para já estar de pé umas cinco horas depois para a primeira sessão da manhã. Assim, não tenho tido tempo de revisar os textos ou de trabalhar melhor a prosa em si, o que é algo que me embaraça.

Enfim.

O dia começou com o documentário franco-italiano Fuocoammare, de Gianfranco Rossi (Sacro GRA). Ambientado na ilha de Lampedusa, localizada no sul da Itália, o projeto acompanha o cotidiano de alguns habitantes da cidade, concentrando-se principalmente no garoto Samuele, cujo carisma acaba trazendo um importante alívio cômico a uma obra que lida com um tema tão pesado quanto os refugiados africanos que, desesperados por uma nova vida, lotam botes precários que mal conseguem chegar à costa europeia antes de serem tomados pela água e pelo diesel. Aliás, assim como o também ótimo Lampedusa no Inverno, que abordava justamente as tentativas da pequena cidade para lidar com os imigrantes, este Fuocoammare reconhece o problema como uma tragédia moderna, sendo um sopro de esperançna humanidade observar a dedicação dos habitantes da ilha para tornar a vida daquelas pessoas um pouco menos sofrida, começando pelos integrantes da Guarda Costeira até chegar ao médico que avalia a saúde dos recém-chegados e colhe amostras dos corpos que lotam os porões dos botes. E é aí que a sensibilidade de Rossi desempenha um papel fundamental, já que, além de deixar seus personagens sempre à vontade diante da câmera, que se limita a observá-los em vez de posá-los para entrevistas, o diretor – que também faz a fotografia - ainda cria imagens belíssimas. Ficarei surpreso caso este longa não vença algum prêmio no festival.

Aliás, tampouco descartaria um prêmio à atriz Isabelle Huppert no drama L’Avenir, escrito e dirigido por Mia Hansen-Løve. Estudo de personagem complexo que traz sua protagonista em praticamente todas as suas cenas (e uso o “praticamente” só por segurança), o filme explora o cotidiano de uma professora de filosofia de um colégio secundário que é obrigada a lidar com os ataques de pânico da mãe, uma ex-modelo (Edith Scob, bela aos 78 anos), com problemas profissionais envolvendo os livros que co-edita e, claro, com a decisão do marido de ir morar com uma mulher bem mais jovem. O interessante, porém, é que nenhuma destas questões é usada para definir Nathalie (a personagem de Huppert), que as enfrenta sempre com maturidade e segurança. Seria fácil, por exemplo, usar a crise conjugal como um gatilho para um “crescimento” da mulher, mas Nathalie já é suficientemente segura para, mesmo sofrendo, não permitir que a crise se torne o centro de sua existência – e, neste sentido, o melodrama não poderia estar mais distante das intenções de Hansen-Løve, que constrói uma narrativa envolvente sem depender de grandes catarses ou explosões de raiva e lágrimas.

Por outro lado, é precisamente o melodrama barato que acaba por afundar Mahana, novo longa do neozelandês Lee Tamahori – e primeiro que ele comanda em seu país de origem depois de ter ido para Hollywood realizar porcarias como 007 – Um Novo dia para Morrer, O Vidente e O Dublê do Diabo. O curioso é que, apesar do passado nada promissor do diretor, este filme começa muito bem ao acompanhar a rivalidade entre duas famílias maori: os Mahana do título e os Poata. Adotando o ponto de vista do jovem Simeon Mahana (o ótimo estreante Akuhata Keefe), a narrativa aborda os conflitos entre este e o patriarca da família (Temuera Morrison), cujo rígido código de conduta soa anacrônico para o rapaz (e com razão). E é aí que começam os problemas do longa: em primeiro lugar, Tamahori parece querer levar o espectador a compreender certas posturas do avô em vez de encará-lo como o canalha que é; em segundo, o roteiro aos poucos passa a se preocupar menos com o crescimento de Simeon e mais com revelações dignas de novelas mexicanas, incluindo, aí, o motivo por trás do ódio entre as famílias. Desabando de vez no ridículo terceiro ato, que descamba pra artificialidade, o filme  desperdiça tudo o que construíra em sua metade inicial, provando que confiar em Lee Tamahori é mesmo perda de tempo.

Pausa.

Sim, precisei pausar antes de partir para o último longa do dia. Aliás, a pausa reflete aquela que ocorreu em meu dia no festival, já que, mesmo tendo mais duas sessões marcadas, decidi voltar ao hotel depois desta projeção.

Estou falando do documentário Kate Plays Christine, de Robert Greene. Aliás, definir o filme como “documentário” não é exatamente correto, já que ele parte de uma premissa fictícia para discutir um trágico evento real. O evento: o suicídio da jornalista Christine Chubbuck, que, em 1974, atirou contra a própria cabeça enquanto apresentava um telejornal na Flórida. A premissa fictícia: a escalação da atriz Kate Lyn Sheil (Você é o Próximo, House of Cards) para interpretar Chubbuck numa versão para cinema da história da repórter e seu processo de construção da personagem.

A verdade é que Greene não tinha qualquer intenção de realizar o tal filme (sim, sua atriz sabia disso), usando-o como mera desculpa para acompanhar Sheil em sua pesquisa para o papel. Assim, à medida que a moça conversa com psicólogos e antigos colegas de Chubbuck, o documentário expõe os principais fatos da curta vida da jornalista enquanto sua intérprete complementa a preparação com uma transformação física, fazendo bronzeamento artificial, comprando lentes de contato castanhas, peruca e roupas da época. Com isso, a obra consegue fazer com que Christine se materialize aos poucos diante do espectador, evocando sua presença provavelmente com mais eficiência do que se tivesse simplesmente recontado sua história em um drama.

Isto, no entanto, é apenas o começo da proposta do documentário, que também busca discutir o limite entre realidade e fantasia ao enfocar as dúvidas que passam a atormentar a protagonista e cuja autenticidade jamais fica muito clara: afinal, Sheil está mesmo se aproximando demais da personagem e questionando a ética do projeto ou esta é apenas a abordagem que o próprio Robert Greene quer adotar? Este, diga-se de passagem, é um dos grandes méritos da performance da garota, que não só se transforma gradualmente em Chubbuck diante dos nossos olhos como ainda nos leva a acreditar em seus dilemas profissionais como atriz.

Aliás, estes dilemas dizem respeito também ao filme em si – afinal, qual o valor de uma cinebiografia de Christine Chubbuck? Sua vida e sua carreira não foram particularmente memoráveis, infelizmente, já que ela nem se deu o tempo necessário para desenvolvê-las, matando-se aos 29 anos de idade – e, com isso, o documentário pode surgir como uma simples exploração macabra em função das circunstâncias de sua morte. Para contornar isso (ou tentar), Kate Plays Christine insiste em discutir a depressão que afligia a repórter e reconhecer a doença como algo grave que se tornou ainda pior por ser encarada como tabu, aproveitando também para expor (mesmo que perifericamente) a facilidade com que qualquer um podia (e ainda pode) comprar armas de fogo nos Estados Unidos.

Ainda mais fascinante, contudo, é constatar como o documentário não permite que o público escape da crítica, obrigando-o a reconhecer a própria curiosidade mórbida em um clímax que, além de muitíssimo bem construído, comprova a inteligência do realizador e de sua proposta ao simultaneamente evitar uma mera reconstrução do suicídio de Chubbuck, ao fechar com elegância o arco dramático vivido pela própria Kate Lyn Sheil e ao apontar seu dedo acusatório em direção ao espectador e ao próprio diretor. (Vale apontar a ironia contida no fato de que Kate Plays Christine foi inicialmente exibido na mesma edição do Festival de Sundance que contou com uma versão ficcional da história da jornalista.)

Trágico, complexo, delicado e emocionalmente desgastante, este fabuloso documentário é uma obra que, ao contrário do esperado, sabe reconhecer que uma vida não deveria ser definida pela maneira como foi encerrada.

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Assista também ao videocast no qual discuto os filmes do terceiro dia da Berlinale:

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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