Uma das coisas mais fascinantes em um festival internacional de grande porte como o de Berlim (ou Cannes, Mostra de São Paulo, Festival do Rio, etc) é a possibilidade de ter um dia como o que tive hoje e durante o qual assisti a cinco filmes: um francês, um israelense, um saudita, um iraniano e um francês – sendo que estes dois últimos são excepcionais e os dois primeiros, muito bons.
O israelense foi Junction 48, escrito por Oren Moverman (Não Estou Lá, Love & Mercy) e dirigido por Udi Aloni, mais especializado em documentários. Aliás, esta experiência do cineasta se revela instrumental aqui, já que a história acompanha Kareem, o primeiro rapper palestino e que é vivido por Tamer Nafar, líder do... primeiro grupo de rap da Palestina. Gênero que rapidamente se notabilizou por dar voz a protestos de minorias contra o sistema que as oprime, o rap é, neste sentido, perfeito como instrumento político para artistas que vivem nos territórios ocupados por Israel, convivendo com a opressão, a falta de direitos e o preconceito. Assim, à medida que Kareem avança em sua carreira, o longa usa sua voz e suas letras poderosas para comentar sua realidade – e ainda que se diga “apolítico”, o músico não pode deixar de retratar, em suas performances, tudo que testemunha em seu dia-a-dia. Além disso, o roteiro discute também a dura realidade das mulheres em uma sociedade dominada pela religião – e se os palestinos sofrem nas mãos de Israel, as mulheres palestinas sofrem sob o jugo de seus compatriotas do sexo masculino.
A repressão religiosa também se encontra presente, mesmo que como maneira de buscar o humor, na comédia romântica saudita Barakah Conhece Barakah (Barakah yoqabil Barakah) – e confesso que minha principal motivação ao entrar na sessão desta produção foi a simples curiosidade diante da expressão “comédia romântica saudita”. Não demorou muito para que ficasse claro que, no que diz respeito a este gênero, a Arábia Saudita não é mais original do que Hollywood, apostando em convenções, clichês e personagens unidimensionais ao contar a história de um funcionário público (Hisham Fageeh) que se apaixona por uma celebridade do Instagram (Fatima AlBanawi). A fama da garota, vale apontar, é um ponto importante do roteiro ao estabelecer que a moça tem “valores ocidentais”, o que a contrapõe à rigidez com que a polícia religiosa saudita lida com as mulheres de sua sociedade. Esta crítica, claro, é importante e corajosa, já que aquele país é um dos mais atrasados e abusivos com relação aos direitos civis da população feminina, mas, infelizmente, relevância política não confere, por si só, qualidade narrativa a um filme. O pior, contudo, é que esta produção falha naquele que talvez seja o quesito mais importante em uma comédia romântica: nosso interesse pela felicidade do casal principal, já que, além de serem vividos por atores pouco expressivos e com química nula, os amantes que dão título ao longa não conseguem justificar nem mesmo a origem do interesse que sentem um pelo outro. Como se não bastasse, o diretor Mahmoud Sabbagh parece seguir a cartilha Zorra Total de humor, acreditando que qualquer fala dita aos berros se torna imediatamente engraçada – e, como consequência, bombardeia o público com gritos pelos intermináveis 88 minutos de duração da obra.
É curioso, aliás, como a percepção do tempo muda de acordo com a força de cada título (o mestre Roger Ebert costumava dizer que “nenhum filme ruim é curto o bastante e nenhum filme bom é longo o suficiente”). O iraniano Lantouri, por exemplo, tem quase duas horas de projeção que passam de forma quase imperceptível mesmo adotando uma estrutura narrativa complexa e contando uma história recheada de incidentes que provocam desconforto no público. Escrito e dirigido por Reza Dormishian, o projeto acompanha a gangue que dá título à trama e que se especializa em aplicar pequenos golpes na rua de Teerã, desde assaltos a extorsões baseadas em fotos comprometedoras conseguidas depois que uma das integrantes do grupo seduz vítimas endinheiradas. Este, porém, é apenas o elemento iniciador da história, que acaba se concentrando no relacionamento entre o líder da quadrilha, Pasha (Navid Mohammadzadeh), e a jornalista Maryam (Maryam Palizban), que termina de forma trágica quando o sujeito atira ácido no rosto da amada ao ser rejeitado por esta. E é aqui que Lantouri se torna realmente intrigante: construído como um documentário, o filme traz todos os seus personagens contando partes da trama diretamente para a câmera e, consequentemente, apresentando, muitas vezes, versões diferentes dos mesmos incidentes – e o mais importante contraponto é aquele entre a visão de Pasha, que encara seus atos (incluindo stalking) como “atos de amor”, ao passo que Maryam os vê como aquilo que são: assédio e violência cometidos por um sujeito egoísta, narcisista e que vê sua paixão pela mulher como razão suficiente para “tomar posse” desta. Inspirado em vários casos de ataques protagonizados por homens enciumados e/ou rejeitados, este longa traz, ainda, um elenco formidável e uma direção admiravelmente segura, se estabelecendo como um dos melhores exemplares da mostra Panorama da Berlinale.
Já a mostra competitiva do festival também contou com dois bons títulos hoje – aliás, um bom e um excepcional. O primeiro foi o francês Quando aos 17 Anos (Quand on a 17 ans), novo trabalho do cineasta André Téchiné. Protagonizado pelo excelente Kacey Mottet Klein, o filme gira em torno de Damien, que tem entrado em conflitos constantes com o colega de escola Thomas (o surpreendente estreante Corentin Fila). Quando a mãe de Damien (Sandrine Kiberlain, que é sempre ótima) resolve convidar Thomas para morar em sua casa, o verdadeiro motivo por trás das brigas começa a se tornar mais óbvio: há uma tensão sexual palpável entre os dois jovens, que estão começando a descobrir não só a própria sexualidade, mas também sua homossexualidade. A partir daí, Téchiné enriquece o desenvolvimento daquela relação ao usar de forma inteligente não só as locações e os simbolismos que despertam (como o lago gelado no qual Thomas costuma mergulhar) como também as mudanças nas estações. No entanto, o roteiro faz uma súbita mudança de foco a partir da segunda metade ao enfocar uma tragédia que provoca impacto na vida dos três personagens, levando especialmente aquela vivida por Kiberlain a atravessar seu próprio arco dramático. Por um lado, a intenção do cineasta é transparente (traçar paralelo entre o início de um relacionamento e o fim de outro); por outro, é inegável que, ao dividir sua atenção entre as duas subtramas, o longa acaba perdendo ritmo e força, praticamente se arrastando até o desfecho que culmina num plano final artificial e maniqueísta.
Já o alemão 24 Semanas, que tinha tudo para se revelar justamente um melodrama dedicado à manipulação descarada do público, acaba se apresentando como um drama sutil, mas incrivelmente poderoso e devastador. Trazendo a bela e talentosa Julia Jentsch em uma performance que já se apresenta como uma das favoritas ao prêmio de Melhor Atriz na Berlinale 2016, o longa acompanha a comediante de stand-up Astrid Lorentz (Jentsch) que, famosa e feliz no casamento com seu empresário Markus (Bjarne Mädel), está grávida de seu segundo filho. Quando descobrem que a criança nascerá com Síndrome de Down, o casal cogita momentaneamente optar pelo aborto permitido nestes casos pela legislação alemã – até que, depois de visitarem grupos de apoio organizados por pais de crianças com a síndrome, concluem que seu filho poderá ter uma vida perfeitamente feliz e decidem seguir adiante. É quando um problema mais grave na formação do feto é descoberto e começa a dividir o casal: enquanto Markus se mantém firme contra o término da gestação, Astrid passa a cogitá-lo por acreditar que o filho terá uma vida terrivelmente sofrida.
Como é fácil constatar, o tema abordado pela cineasta Anne Zohra Berrached é controverso por natureza – e a diretora não foge de seus pormenores mais espinhosos e nem parte para soluções artificiais. Ao longo dos dolorosos 103 minutos de projeção, o debate interno experimentado pelo casal é exposto de maneira honesta e adulta, fugindo da simplificação entre o “certo” ou “errado” e mergulhando em argumentos que podem ser defendidos com convicção pelos dois lados. Aliás, outro mérito de 24 Semanas reside em sua determinação em não transformar Astrid ou Markus em vilões, pois percebemos que, qualquer que seja a decisão tomada, o resultado inevitavelmente trará graus imprevisíveis de dor e sofrimento. Além disso, Berrached compreende que, por maior que seja a participação e o companheirismo do marido, o corpo que abriga a gestação pertence a Astrid e que esta é, em última análise, a dona da palavra final.
Representando uma das melhores representações do debate sobre o aborto que já vi em uma obra ficcional (em forma de documentário, recomendo o excepcional Lake of Fire, de Tony Kaye), 24 Semanas é tudo o que um cinéfilo espera de um longa em competição na Berlinale: sua abordagem narrativa é elegante; a fotografia usa a temperatura da luz para evocar a atmosfera dramática de forma orgânica à medida que a história avança; o elenco é homogeneamente brilhante e o roteiro jamais foge das discussões que se propõe a desenvolver. Primeiro filme a me fazer chorar vergonhosamente em Berlim, este certamente se estabelecerá entre os mais memoráveis desta edição do evento. E Julia Jentsch, em um nome que merece estar presente em todas as principais premiações dos próximos 12 meses.
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Assista também ao videocast sobre o quarto dia do festival: