Vamos trabalhar:
A mão de um grande editor pode ser invisível, mas sua importância no resultado de um texto (artigo, conto ou romance) é imensa. Os escritores tendem a amar excessivamente as próprias palavras e costumam se entregar a vícios estilísticos que, sob o crivo de alguém com experiência e discernimento, podem (e devem) ser corrigidos, suavizados e mesmo descartados pelo bem do conjunto.
Max Perkins (Colin Firth), segundo o livro “Editor of Genius”, de A. Scott Berg, era um destes editores. Responsável por oferecer orientação a autores como F. Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway, ele viria a trabalhar por anos em dois livros de tamanho e importância consideráveis: “Look Homeward, Angel” e “Of Time and the River”, escritos por Thomas Wolfe. E é em torno desta relação que gira Genius, longa de estreia do diretor teatral Michael Grandage.
Vivido por Firth como um homem de gosto apurado, modos discretos e profissionalmente diligente, Perkins é encarado pelo filme como o responsável por domar a verborragia de Wolfe (Jude Law), que produzia cinco mil palavras por dia enquanto outros autores respeitados tinham que lutar contra o papel em branco para escrever cem. Claro que isto não significa que as cinco mil palavras representavam pérolas instantâneas de literatura – e é aí que entra o segundo gênio da obra, juntando-se a Wolfe: o próprio Max Perkins, que encontrava a estrutura subjacente às milhares de páginas e auxiliava o autor a esculpi-la.
Neste aspecto, se a discrição de Firth atua para tornar o editor mais denso, os maneirismos grandiosos e a performance cheia de energia de Law fazem de Wolfe um excêntrico repleto de vida, mas também cego para a dor que podia provocar naqueles que o cercavam – incluindo, aí, sua amante e mecenas Sra. Bernstein, que Nicole Kidman interpreta com resultados irregulares, exagerando em suas explosões, mas acertando ao evocar suas mágoas. E se Laura Linney pouco pode fazer como a sra. Perkins (embora seu olhar de ressentimento ao ter seus esforços como dramaturga ignorados pelo marido seja tocante), Guy Pearce tem a oportunidade de conferir humanidade a F. Scott Fitzgerald, que aqui é retratado como um artista sensível, amigo fiel e marido devotado.
Confiando na força de seu elenco e na bela recriação de época feita pelo designer de produção Mark Digby, o diretor conduz Genius de forma promissora, conseguindo transformar o mero gesto de remover um chapéu da cabeça em algo significativo e mesmo esperado pelo público.
Drama sóbrio e envolvente, Genius não é uma grande obra, mas boa o bastante para evitar os temidos riscos vermelhos da caneta de um editor impiedoso.
Um editor, aliás, provavelmente encontraria uma maneira de ligar o parágrafo acima ao seguinte, no qual discutirei outra produção, mas como estou publicando tudo diretamente no site, terei que mudar de assunto abruptamente:
Reza a lenda que o cineasta Frank Capra, questionado por um jornalista com relação ao conteúdo social de seus filmes, respondeu irritado: “Se eu quisesse mandar uma mensagem, usaria (o correio)”. Bom, é claro que não concordo com o princípio da afirmação, pois o Cinema pode, sim, ser um instrumento importante de conscientização social e política. E, no entanto, reconheço o perigo subjacente a projetos que se preocupam primeiro em funcionar como manifesto para só depois se dedicarem a refinar a forma como irão transmiti-lo.
Soy Nero é um exemplo disso: escrito e dirigido pelo iraniano Rafi Pitts, o projeto praticamente grita seu protesto político nos letreiros finais, quando é dedicado aos imigrantes que alistaram no exército norte-americano e foram deportados depois de completarem seu serviço. Ok, bacana. Pena que filme leve duas longas horas para chegar até aí e, mesmo assim, precise da dedicatória para deixar claro o que havia tentado fazer. Pois o fato é que, até chegar ali, a narrativa em si apontava apenas tangencialmente para a questão ao acompanhar o jovem mexicano Nero Maldonado (Johnny Ortiz) em seus esforços para cruzar a fronteira para os Estados Unidos a fim de viver o “sonho americano”. Neste meio tempo, vemos o rapaz pegar carona com um maluco que se entrega a teorias conspiratórias e esconde um segredo (que em nada importa para a história) e visitar a mansão na qual seu irmão vive com a namorada, escondendo um segredo (que em nada importa para a história). Só então o longa se entrega a uma aborrecida sequência de guerra que ocupa a segunda metade da projeção, incluindo discussões irrelevantes sobre rap e extensos trechos em que todos parecem apenas observar a paisagem, chegando finalmente a uma conclusão tola e obviamente criada com o único propósito de permitir a inclusão da mensagem ao final.
O resultado, curiosamente, é um filme que não precisava ter emigrado para o festival de Berlim.
Coincidência ou não, o longa que vi a seguir também era um projeto cuja mensagem era gritada com energia por seu realizador, mas com resultados bem melhores: em Chi-Raq, Spike Lee faz um manifesto raivoso e revoltado sobre as frequentes mortes de jovens negros nas mãos da política norte-americana – e, mais do que isso, sobre o racismo institucional do país que resulta num apartheid econômico brutal. Assim, o roteiro faz menções recorrentes a incidentes recentes do cotidiano do país, citando figuras como George Zimmerman (e sua vítima, Trayvon Martin), o incêndio na igreja de Charlotte e, claro, a forma abjeta com que racistas do sul da nação insistem em exibir a bandeira da Confederação para expressar seu preconceito sob uma fachada de mero interesse histórico.
Apresentando-se como uma derivação de textos dramatúrgicos gregos como a comédia “Lysistrata”, com direito até mesmo ao seu próprio coro (aqui sintetizado na figura imponente de Samuel L. Jackson), o longa gira em torno justamente da bela Lysistrata (a excelente Teyonah Parris), que, namorada do líder de uma gangue (Nick Cannon), encontra-se farta da violência que tomou conta de Chicago (onde mais negros foram mortos nos últimos 14 anos do que o total de baixas norte-americanas no Afeganistão e no Iraque somadas). Para tentar encerrar este ciclo de terror, ela cria um movimento que inspira as mulheres do país a iniciarem uma greve de sexo até que a paz seja atingida (uma ideia baseada em algo que realmente ocorreu na Libéria).
Como é fácil constatar, Chi-Raq é uma comédia farsesca – e o cineasta a conduz com dinamismo através de uma montagem ágil, de grafismos que cobrem a tela, da trilha sonora repleta de letras com conteúdo político e das performances de seu ótimo elenco, que, além de Jackson, Parris e Cannon, traz também Angela Bassett, Wesley Snipes (com uma risadinha hilariamente ridícula e tapa-olho), Dave Chappelle, Jennifer Hudson, Harry Lennix e John Cusack, que, vivendo o padre Mike Corridan, tem a oportunidade de protagonizar um monólogo através do qual Spike Lee relembra as estatísticas significativas da desigualdade econômica nos Estados Unidos e da perversão de um sistema no qual negros são “formados em escolas de terceira classe e depois enviados para prisões de primeira” (e a lógica perigosa por trás da privatização do sistema carcerário também é discutida).
Trazendo figurinos que deveriam ter sido indicados ao Oscar (#OscarSoWhite mesmo) e a todos os prêmios da categoria e um design de produção que ressalta a natureza de farsa da narrativa sem torná-la fantasiosa, Chi-Raq é, apesar de tudo, um dos trabalhos mais otimistas do diretor, que se permite sonhar com uma sociedade utópica que, atraente nas telas, expõe ainda mais a crueldade do mundo real.
E continuando o tema “mensagens no Cinema”, nada mais apropriado do que discutir o novo documentário de Michael Moore, Where to Invade Next, no qual o cineasta mais uma vez escancara suas posições políticas e ideológicas, defendendo-as não só com exemplos positivos que refletem seu modo de pensar, mas pontuando os aspectos negativos do lado oposto. Neste sentido, Moore pode ser acusado de muita coisa, mas não de ser desonesto como documentarista, já que, ao contrário de boa parte de seus colegas de profissão, ele não tenta disfarçar suas posições pessoais ou simular uma aura de imparcialidade: sabemos como ele pensa, sabemos o que fará em seus filmes e sabemos que ele não terá pudores ao ridicularizar os oponentes. E, claro, esperamos alguma parcela de humor.
Assim, a questão é: Where to Invade Next funciona como longa-metragem? A resposta: mais ou menos. Para começo de conversa, seu ponto de partida não é dos mais originais, funcionando como uma extensão dos esforços anteriores do cineasta ao contrapor as mazelas dos Estados Unidos à maneira como os mesmos problemas são abordados no restante do mundo. Para isso, ele analisa o sistema carcerário da Noruega, o sistema educacional da Finlândia, os direitos trabalhistas da Itália (espantando-se com a existência do décimo-terceiro salário, da licença-maternidade e das férias remuneradas), a honestidade dos alemães ao lidar com os erros do passado, a punição aos grandes banqueiros imposta na Islândia e assim por diante (O Brasil é citado de passagem em três ocasiões: por eleger uma mulher para a presidência, por diminuir a idade necessária para votar e por oferecer universidade pública e gratuita.)
Em grande parte, o longa depende bastante do choque criado ao escancarar as injustiças e desigualdades norte-americanas – e, por mais que a plateia internacional presente na Berlinale tenha rido ao ver na tela estas contraposições, o efeito certamente não é tão grande sobre quem não vive naquele país. Além disso, as tentativas de humor de Moore nem sempre se revelam eficazes e, para piorar, a narrativa perde bastante o ritmo em sua segunda metade, soando muito longa em seus 120 minutos e repetitiva ao martelar questões já abordadas em outros momentos.
Criticando o “sistema” independentemente de este ser representado por democratas ou republicanos, Where to Invade Next é um retrato que inevitavelmente sacudirá todos que ainda acreditam no mito do “american dream”, mas que não traz nada de novo para quem costuma assistir a documentários políticos ou apenas tem o hábito de ler algo além da “Veja”, o panfleto turístico semioficial de Miami.
Concluindo o dia de Cinema ativista, conferi o documentário A Maid for Each (Makhdoumin), que aborda a maneira absurda com que as empregadas domésticas são vistas o Líbano, onde são tratadas menos como seres humanos e mais como bens de consumo, sendo “importadas” de países como as Filipinas e a Etiópia. Para discutir o tema, o diretor Maher Abi Samira basicamente registra o cotidiano de uma agência especializada em oferecer um catálogo de possibilidades para clientes de classe média (para os quais ter uma empregada é sinal de status). A decisão, infelizmente, converte o longa em uma espécie de reality show ou numa versão mais rebuscada de uma câmera de vigilância, terminando por parecer estar enrolando a fim de preencher os 67 minutos de projeção em vez de soar como uma exposição densa e bem informada.
Em suma: mais um projeto cujo importante conteúdo foi prejudicado pela forma pedestre.
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Assista também ao videocast sobre os filmes vistos no sexto dia da Berlinale: