Hoje vi apenas quatro filmes, já que durante a manhã entrevistei o diretor e a atriz de Kate Plays Christine, um dos trabalhos que mais amei na Berlinale (a entrevista está no final deste texto). Vamos a eles:
Em 2010, um vírus batizado de SuxNet se espalhou por todo o mundo, afetando computadores supostamente protegidos e até mesmo sistemas que teoricamente deveriam estar completamente isolados da Internet. O curioso é que o malware não parecia ter sido criado com objetivos financeiros ou de ativismo político, possuindo um código extenso, sofisticado e recheado de elementos que apontavam para algo concebido não por hackers mas por um Estado. Ao mesmo tempo, o então presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, veio a público para acusar os Estados Unidos e Israel de terem criado o vírus para comprometer o programa nuclear iraniano.
Loucuras de um político querendo chamar a atenção de todos, certo? Teoria conspiratória estúpida, não?
De acordo com Zero Days, excelente novo documentário de Alex Gibney, loucura alguma. Entrevistando de experts em segurança digital a um ex-diretor do NSA e da CIA e passando por informantes do Mossad, o filme apresenta evidências suficientes para comprovar o envolvimento dos dois países (principalmente de Israel, que teria modificado o código escrito por programadores da CIA a fim de tornar o vírus mais agressivo, o que acabou por expô-lo para a mídia mundial depois de um longo tempo desde sua ativação.
Mas, mais do que uma denúncia sobre um caso específico, Zero Days apresenta uma discussão importante sobre as possibilidades deste novo tipo de guerra, que, ao contrário da corrida por armas nucleares, por exemplo, não é limitada por qualquer acordo ou convenção internacional embora possa ter consequências devastadoras para o planeta.
Cineasta incrivelmente prolífico (ele é o Woody Allen dos documentários), Gibney constrói aqui uma narrativa fascinante e apavorante, transformando um tema complicado e técnico em um thriller que assusta ainda mais por ser real.
Já o drama norte-americano Goat anuncia, logo em seu início, que a história que veremos em seguida é baseada em fatos reais – e é um péssimo sinal que, ao final da projeção, não saibamos dizer exatamente a que fatos os realizadores estavam se referindo. Construído sem foco algum, o filme de Andrew Neel (co-escrito por David Gordon Green) nos apresenta a Brad Land (Ben Schnetzer), um jovem que, certa noite, sofre um assalto e é espancado pelos bandidos. Meses depois, já recuperado fisicamente, mas não psicologicamente, ele se matricula na mesma faculdade na qual seu irmão mais velho estuda, decidindo também entrar para a fraternidade na qual este mora. O processo de admissão na casa, no entanto, envolve uma série de ritos de brutalidade, humilhação e sadismo, reconfigurando o conceito de “trote” e convertendo- em “tortura”. Quando um colega do protagonista sofre uma parada cardíaca súbita – algo que ocorre sem ligação alguma com os trotes -, um inquérito é instaurado pela universidade, criando um conflito entre os veteranos e o calouro.
E aí vem a questão: qual é a parte da narrativa “baseada em fatos reais”? O assalto? Os trotes? O infarto do jovem? O inquérito? O propósito do longa é analisar os efeitos psicológicos do espancamento em alguém que, por isso, se tornaria mais “vulnerável” à violência da fraternidade? Mas e os demais calouros? E o que estaria acontecendo com Brad, afinal? O que passa por sua mente? O que ele sente com relação aos abusos? Jamais sabemos, já que o roteiro e a composição do ator Ben Schnetzer não fornecem elementos suficientes. Aliás, é sintomático que passemos a conhecer melhor o irmão do protagonista (vivido por Nick Jonas) do que o protagonista em si.
Sim, Goat consegue ser angustiante e revoltante. Mas, ao final, não consegue justificar o porquê.
Ao contrário do filme que vi a seguir.
É inacreditável que em 2016 ainda existam países que achem razoável executar seres humanos. Como nenhuma estatísticas sugere que a pena de morte reduza a criminalidade (pois é), a execução cumpre simplesmente o papel de vingança – e mesmo que este sentimento seja compreensível em um nível individual, era de se esperar que o Estado e a Sociedade, como coletivos, se saíssem melhor ao lidar com tais questões.
Embora o Brasil não tenha a pena capital (ainda; mas, com o atual Congresso, não me dou o direito de ser otimista), no ano passado a questão passou a ocupar a atenção e a imaginação do país quando houve o anúncio de que Marcos “Curumim” Archer se tornaria o primeiro brasileiro a ser executado na Indonésia. Seu crime: ter tentado entrar com 15 quilos de cocaína escondidos na estrutura de sua asa-delta.
Coloquemos isto em perspectiva: há alguns anos, o fabricante de uma bomba que matou 202 pessoas em Bali foi preso e condenado na Indonésia. A pena? Nove anos de detenção. Se a pena de morte já é sinal de barbárie por si só, quando aplicada de forma tão aleatória se torna ainda pior.
Assim, é importante que Curumim, documentário dirigido por Marcos Prado (Estamira), personalize a questão e nos apresente ao personagem-título, usando, para isso, gravações feitas clandestinamente por este na prisão, fotos, imagens de arquivo, cartas e depoimentos de amigos. Com isso, o longa torna a discussão mais palpável para aqueles que encaram a pena de morte como um mero debate político, social e moral. É fácil dizer “Ele merecia morrer” quando estamos falando de um nome no jornal (bom, é fácil para alguns), mas espera-se que, ao percebermos que há alguém por trás do nome – alguém com história, sentimentos e aspirações -, torne-se mais evidente o disparate de um assassinato premeditado cometido pelo Estado.
E Curumim faz isso. Por outro lado, o longa sofre com alguns problemas estruturais, estabelecendo uma timeline cronologicamente confusa ao recontar a vida de Marcos, demorando também para explicar as circunstâncias de sua prisão. Além disso, a obra jamais tenta contextualizar a rigidez da Indonésia no que diz respeito ao tráfico (basicamente, uma reação à inundação de ópio patrocinada pelos britânicos no século 19 para equilibrar sua balança comercial), o que seria importante não para justificar a pena capital, mas para analisar com mais propriedade como um país pode se entregar a práticas medievais.
Aos poucos, porém, fica patente que a insistência do cineasta em manter tantas gravações redundantes feitas por seu protagonista representa, de certa forma, respeito à sua memória e uma forma de legado.
E, assim, condená-la torna-se difícil. Curumim já foi condenado o suficiente.
Não deixou de ser uma sorte, então, que depois do pesado longa brasileiro eu tenha entrado quase por acidente em uma sessão bem mais suave: a do documentário alemão The Audition (Die Prüfung), de Till Harms, que acompanha o processo de seleção de uma prestigiada escola de interpretação em Hanover. Inicialmente envolvendo quase 700 candidatos, a seleção é feita em etapas que envolvem testes de todos os tipos, permitindo que o filme assuma quase um caráter de reality show. O mais instigante, contudo, nem é a “competição” em si (embora eu tenha um fraco por docs que giram em torno de competições), mas as avaliações e discussões feitas pelos professores, que acabam expondo elementos interessantes na composição de personagens e das características que contribuem para formar um grande intérprete.
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Confira abaixo a entrevista com o diretor Robert Greene e com a atriz Kate Lyn Sheil, do excelente "Kate Plays Christine". Sim, está fora de foco e o quadro, torto. Gravei a entrevista enquanto conversava com os dois e ficava difícil conferir a câmera e me concentrar no papo ao mesmo tempo. (Além disso, não tenho experiência com essas coisas e sou um desastre como operador de câmera.) Ainda assim, decidi subir o resultado porque acho que a discussão ficou interessante.
E abaixo está o videocast com comentários sobre os filmes vistos no sétimo dia da Berlinale: