Comentei todos os longas do oitavo dia no vídeo ao fim deste post, mas não por escrito (com exceção de um drama brasileiro). Com relação ao nono dia, vamos lá:
Antes o Tempo Não Acabava é um filme sobre identidade – ou identidades, já que, em maior ou menor grau, todos nos apresentamos ao mundo de maneiras diversas dependendo do contexto, dos interesses imediatos e do que vivemos até ali. A identidade, claro, também é naturalmente fluida ao longo de nossas existências: mudamos porque crescemos, aprendemos e reagimos ao que nos cerca. Mas há também as mudanças que acontecem por necessidade ou simples desejo de ser outro tipo de pessoa, de ter outra vida.
O protagonista deste longa, o índio Anderson (Anderson Tikuna), ilustra um pouco tudo isso: criado em sua vila e tendo participado dos rituais de passagem concebidos por seus anciões, ele agora é um quase adulto que reside em Manaus, trabalha numa linha de produção e experimenta com sua sexualidade. Neste aspecto, as experiências particulares do rapaz o tornam universal, conferindo ao filme em si uma estatura maior do que a de um estudo de personagem (o que é), atuando como uma reflexão sobre grupos diversos e (especialmente) minorias.
Desejando trocar seu nome por um de “homem branco”, Anderson se vê claramente em conflito com suas origens – embora continue a usar o colar que o acompanha desde a infância e tenha conversas com seu xamã que apontam para um respeito ligado à autoridade espiritual deste (por outro lado, é sintomático que, ao ter uma visão envolvendo outro guru espiritual que o presenteia com um talismã, este seja branco). Do mesmo modo, o jovem explora a percepção recém-descoberta de sua homossexualidade ou mesmo de uma inclinação à transexualidade, maquiando-se e entregando-se a experiências sexuais com homens e mulheres (e ambos parecem satisfazê-lo).
Dirigido pela dupla Fábio Baldo e Sérgio Andrade e empregando bem as locações para ilustrar a jornada interior do personagem (é interessante, por exemplo, que sua primeira relação homossexual seja em um barco), Antes o Tempo Não Acabava cria um contraste importante logo no começo ao contrapor a vila do protagonista com o barraco de madeira que passa a ocupar na periferia de Manaus – e se há quem diga, preconceituosamente, que índios não são civilizados (sem compreender que o conceito de civilização é particular a cada cultura), fica difícil não observar que a existência miserável de Anderson em seu casebre que mal se mantém em pé é algo que aponta (aí, sim) para uma falta de civilidade atroz e que é algo ao qual submetemos tantos miseráveis ao redor do mundo em função das desigualdade econômicas e da falta de oportunidades.
E ao colocar-se de pé em um barco no meio do rio e projetar sua voz, Anderson (e o filme) demonstra que, como o eco que se espalha à distância, minorias como as representadas pelo jovem têm potencial para ir longe caso a sociedade lhes dê condições mínimas para isso. O problema é este “caso”.
Já o polonês Estados Unidos do Amor (Zjednoczone Stany Milosci) é um filme melancólico sobre repressão, frustração amorosa e solidão. Mesmo quando seus personagens dividem a mesa, o apartamento ou a cama com alguém, permanecem sós – e a tentativa de estabelecer uma conexão com quem quer que seja resulta invariavelmente em dor.
Ambientado na Polônia do início dos anos 90, quando Lech Walesa e seu Solidariedade chegaram ao poder e o Muro de Berlim acabara de cair, o longa de Tomasz Wasilewski enfoca uma sociedade cuja fragilidades econômica e política se refletem em seus habitantes; não à toa, a obra traz uma fotografia dessaturada, fria, como se as cores estivessem lutando para se destacar em meio a um universo construído em preto, branco e cinza. Concentrando-se em quatro personagens femininas que acabam, direta ou indiretamente, padecendo em função do egoísmo, da brutalidade ou da frieza masculina, Estados Unidos do Amor não traz este título por ironia ou por rir de suas personagens. Elas, de fato, estão unidas pelo amor que experimentam. O que não quer dizer que este resulta em felicidade.
Por falar em felicidade, A Dragon Arrives! tem um título empolgante. Acho, inclusive, que o ponto de exclamação é parte de seu charme. Não sei se o título iraniano original é este mesmo (Ejdeha Vared Mishavad! – isto é persa, certo?), mas ao menos sua versão em inglês é ótima.
Acho até que o Festival de Berlim o selecionou para a mostra competitiva pelo apelo do nome. Só pode. A história em si é até interessante, verdade – mas apenas durante os dez primeiros minutos, quando descobrimos um navio abandonado no meio do deserto, um homem enforcado em seu interior e um misterioso fenômeno que provoca um terremoto sempre que alguém é enterrado no cemitério local. Infelizmente, depois destes dez minutos, o filme de Mani Haghighi descamba para o tédio e a tolice: quanto mais sabemos sobre o que ocorre ali, menos instigante se torna a narrativa, que também é rodada numa lógica visual desinteressante fascinada por closes durante longas e aborrecidas conversas enquanto esperamos que o protagonista descubra aquilo que o título já nos informou que acontecerá. O que me leva a concluir que, trazendo um spoiler da própria trama, este talvez não seja tão bom assim.
Não sobra nada, então.
O que me traz ao próximo longa.
É curioso que Mãe Só Há Uma, novo filme de Anna Muylaert que segue o sucesso colossal de Que Horas Ela Volta?, tenha feito sua estreia mundial na mesma edição do Festival de Berlim que exibiu outro lançamento brasileiro com o qual divide seus principais temas: Antes o Tempo Não Acabava. Em ambos os longas, um adolescente enfrenta dilemas com relação à sua identidade que acabam se manifestando/confundindo também com a descoberta/exploração da própria homo ou bissexualidade (a ambiguidade a este respeito ocorre nos dois trabalhos).
Aqui, o protagonista é Pierre (Naomi Nero), um jovem que mora numa casa na periferia de São Paulo com a mãe, Aracy (Daniela Nefussi), e a irmã caçula, Jaqueline (Lais Dias). Integrante de uma banda amadora, ele gosta de usar roupas femininas e, em casa, se tranca no banheiro para se admirar no espelho com a boca pintada de batom. E é então que cai a bomba: sua mãe é presa e acusada de tê-lo roubado na maternidade, criando-o como se fosse seu – e, de repente, Pierre se descobre Felipe e morando na casa dos pais biológicos, Matheus e Glória (Matheus Nachtergaele e novamente Nefussi), e com um irmão mais novo, Joca (Daniel Botelho).
A inspiração óbvia do roteiro da própria Muylaert é o caso do menino Pedrinho, que tomou conta do noticiário brasileiro há alguns anos. Tanto na história real quanto na ficcional, o adolescente subitamente vê todo o conceito que tinha de “família” desintegrar-se enquanto é atirado em outro núcleo que vive em circunstâncias completamente distintas.
É um tema com imenso potencial dramático: mesmo tendo tirado o garoto dos pais, a criminosa é, para este, sua mãe verdadeira, ao passo que as vítimas (os pais biológicos) agora soam como intrusos tentando roubá-lo de tudo o que aprendeu a amar. Além disso, ao descobrir-se com outro nome, sua identidade em si é alterada, literal e figurativamente. Para complicar ainda mais, há a separação da irmã que amava e por quem era amado, ruindo de vez toda sua estrutura familiar. Como processar tudo isso? Como se relacionar com os estranhos que o geraram?
São muitas possibilidades para desenvolver a narrativa e, assim, é profundamente decepcionante que Mãe Só Há Uma não procure explorar de fato nenhuma delas. Em vez disso, a busca de Pierre/Felipe para definir sua identidade sexual acaba dominando a projeção: assim que retorna da delegacia após descobrir ter sido roubado, por exemplo, o rapaz imediatamente se tranca no banheiro para se maquiar. Sim, isto poderia ser empregado como um símbolo ou uma síntese de seus duros embates internos, mas o filme parece não ter esta imaginação, jamais abrindo realmente a possibilidade para que os elementos sexuais signifiquem algo além da exploração de seu desejo (ao contrário de Antes o Tempo Não Acabava, onde isso fica patente).
Aliás, nem mesmo para estabelecer um contraste entre os dois núcleos familiares isto serve, já que Aracy não chega a descobrir a bissexualidade do garoto, enquanto Matheus, depois de uma explosão homofóbica ao ver o filho usando vestido, já aparece com este travestido em público na cena seguinte, sem que uma transição mínima torne a mudança de sua postura plausível (e se isto quase acontece é porque Nachtergaele é um ator cujo talento colossal chega perto de distrair nossa atenção do roteiro mal construído).
E já que mencionei o ator, é frustrante perceber como, depois do elenco brilhante de Que Horas Ela Volta?, este Mãe Só Há Uma traz intérpretes irregulares em papéis importantes, fragilizando ainda mais a narrativa – e o protagonista, Naomi Nero, é especialmente problemático, já que faz Pierre oscilar entre a introspecção absoluta e as explosões de raiva, falhando em levar o espectador a compreendê-lo ou mesmo a simpatizar com ele (e considerando que ele é o centro do filme, este é um problema gravíssimo). E, afinal, por que Muylaert escala Daniela Nefussi para viver as duas mães de Pierre/Felipe? Que ideia quer passar: a de que ambas são as mães do jovem à própria maneira? Ora, isso é óbvio e, aliás, o interessante seria justamente contrastá-las externamente para fortalecer a posição materna que ocupam. Por outro lado, os pequenos Daniel Botelho e Lais Dias dominam bem suas cenas, trazendo bem mais calor humano ao projeto do que aquele projetado pelo personagem principal (e confesso que eu preferia tê-los acompanhado em vez de seguir Pierre).
Recheado de cenas dispensáveis que parecem ter sido criadas apenas para aumentar a (curta) duração da projeção, o filme inexplicavelmente inclui passagens que enfocam Joca em sua aula de judô e suas paqueras na escola (e até mesmo de seus colegas deste), contrastando com a eficiência narrativa de Que Horas Ela Volta?, onde cada cena tinha uma função e ajudava a desenvolver os personagens e a história. E já que mencionei aquele longa, é inacreditável perceber como Muylaert parece não ter visto o próprio filme, já que aqui traz uma empregada doméstica absurdamente estereotipada e que chega a beijar Pierre carinhosamente ao conhecê-lo, servindo apenas de figuração uniformizada no restante do tempo. Ora, por que a realizadora não empregou o tempo, por exemplo, para explorar o conflito inevitável entre o protagonista e a mulher que o roubou? Por que Aracy simplesmente não volta mais a aparecer ou a figurar significativamente nas discussões do rapaz? (Os diálogos, diga-se de passagem, são pavorosos, soando como improvisações no set de atores sem muito talento para isto, lembrando um pouco a experiência fracassada da diretora em Chamada a Cobrar.)
Decepcionante também ao usar a expressão da bissexualidade de Pierre/Felipe como um misto de provocação adolescente e fonte de humor, Mãe Há Só Uma frustra ainda mais por conter, espalhadas aqui e ali, cenas que demonstram o potencial da trama: o desabafo de Matheus no boliche e a réplica de Pierre por sentir-se roubado duas vezes são exemplos da força que a produção poderia ter evocado.
Uma das vantagens da ficção é que um realizador pode escolher o foco que quer adotar e as tramas que prefere desenvolver, permitindo que se desenvolvam com cuidado e profundidade. Ao não fazer estas escolhas, porém, Anna Muylaert frustra precisamente quando havia parecido cimentar sua posição como uma diretora excepcional. A impressão que temos, ao final, é que este novo longa foi realizado às pressas, sem tempo para amadurecer e explorar os temas e seus personagens – e esta falta de cuidado beira o imperdoável.
Tomara que em seus próximo trabalho Muylaert não volte a se sabotar. Ela tem talento demais para isso.
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Assistam abaixo aos vídeos com comentários sobre os filmes dos dias 8 e 9: