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Festival de Tribeca 2016 - Dia 02 Festivais e Mostras

Dia 2

The Devil and the Deep Blue Sea é um daqueles filmes que levam o espectador a questionar não só o talento de seus realizadores, mas também o seu Q.I.. Uma coisa é não saber se decidir entre a comédia e o drama nem conseguir oscilar entre os dois com um mínimo de eficiência; outra é conceber uma cena na qual o protagonista vela a esposa que morreu aos nove meses de gravidez junto ao bebê apenas para imediatamente tentar fazer piada com o fato de o viúvo receber uma pequena sacola com maconha como forma de lidar melhor com o luto.

Mas eu já deveria ter imaginado; normalmente, quando o Festival de Tribeca inclui em sua programação algum filme independente estrelado por um nome famoso se esforçando para sair de sua zona de conforto, os resultados tendem a ser decepcionantes, comprovando que nenhum evento resiste a uma celebridade (ano passado, a tortura veio com Richard Gere em Franny). Desta vez, a estrela é o comediante Jason Sudeikis, que, depois de se tornar conhecido graças à sua passagem pelo Saturday Night Live, começou a construir uma carreira relativamente bem sucedida no Cinema. No entanto, como boa parte dos colegas humoristas, aqui Sudeikis sente aquela necessidade boba de se provar também como ator dramático - mas nem todos conseguem fazer o salto de um Robin Williams ou de um Steve Carell, infelizmente.

Sem conseguir desligar sua propensão ao humor por um segundo sequer, Sudeikis converte o protagonista deste drama em uma coleção de maneirismos engraçadinhos, mantendo os olhos constantemente arregalados e investindo em gaguejadas pouco convincentes que só abrem espaço para uma tentativa dramática quando ele tenta converter o rosto em uma expressão artificial de dor. Ainda assim, é preciso reconhecer que o sujeito provavelmente não conseguiria alcançar um resultado muito melhor nem mesmo se tivesse talento como intérprete, já que o roteiro pavoroso de Robbie Pickering e do diretor Bill Purple só é capaz de pensar em termos de caricaturas e estereótipos.

Henry, o arquiteto vivido por Sudeikis, por exemplo, é um daqueles indivíduos que “vivem-apenas-para-o-trabalho-e-não-sabem-reconhecer-o-valor-da-vida”, ao passo que sua esposa Penny (Jessica Biel) é um “espírito-livre-que-gosta-de-correr-na-chuva”. Aliás, mais do que isso: Penny, que conhecemos brevemente antes que ela morra num acidente antes da marca de dez minutos de projeção, é uma Santa Segundo o Sexismo, demonstrando apoio incondicional ao marido, um carinho irrestrito, uma submissão anacrônica (“Quando você vai me levar naquela viagem que prometeu?”) e, claro, uma predileção por filmes de kung fu (afinal, mulheres não gostam de artes marciais, certo?). Enquanto isso, o patrão de Henry (um desperdiçado Paul Reiser) é o “executivo-frio-que-não-se-importa-com-o-luto-do-funcionário-que-está-prestes-a-se-tornar-seu-sócio”, sendo devidamente complementado por Mary Steenburgen como “a-mãe-fria-que-nunca-conseguiu-aceitar-o-espírito-livre-da-filha”.

Lamentavelmente, o que apontei acima é apenas o começo das fragilidades do longa, que ainda constrói sua narrativa em torno do relacionamento entre Henry e uma jovem miserável que, órfã, vive com um “guardião-alcóolatra-e-abusivo” em um pequeno barraco de madeira e que, do alto de seus 16 anos, demonstra uma sabedoria invejável sobre a vida e consegue despertar em Henry um prazer inédito de viver. Ah, sim: e dez segundos depois de conhecer o protagonista e ouvir deste que ela “lembra alguém” (Penny), a garota diz uma frase idêntica a outra que a falecida esposa do herói dissera no dia em que morreria. 

Contando pesadamente com uma trilha sonora que faz questão de pontuar cada virada dramática ou cômica ao longo de toda a projeção, The Devil and the Deep Blue Sea demonstra incapacidade até mesmo de aplicar uma barba falsa em seu protagonista, que subitamente surge exibindo uma pelagem no rosto que, em vez de escancarar seu sofrimento, apenas leva o espectador a querer arrancá-la num único puxão.

E se é difícil não rir do rápido plano que, do nada, traz um balão preso sob um carrinho de supermercado virado (entenderam a metáfora?), mais complicado ainda de justificar é a referência gratuita e fora de lugar feita pelo cineasta a Os Bons Companheiros.

Sim, porque The Devil and the Deep Blue Sea é o tipo de filme que, não satisfeito em ser ruim, tenta ainda arruinar nossas lembranças acerca de obras infinitamente melhores.

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Quem assistiu ao fantástico A Grande Aposta (publiquei crítica aqui no site) sabe que “short” é um conceito do mercado especulativo que significa basicamente apostar contra uma empresa: caso ela fracasse, quem comprou uma posição destas ganhará uma fortuna. Pois o documentário Betting on Zero acompanha o investidor norte-americano Bill Ackman, cujo fundo apostou mais de um bilhão de dólares no fracasso de uma empresa que muitos considerariam inesperada para uma ação assim: a Herbalife.

Mas por que a Herbalife? 

É isso que o filme busca explicar com detalhes em seus 98 minutos de duração. Em resumo, Ackman aponta que, segundo a legislação vigente em boa parte dos países, a Herbalife deveria ser considerada um “esquema de pirâmide”, já que, em última análise, sua receita vem não da venda de produtos, mas do recrutamento de novos vendedores - e, entre outras evidências, o diretor Ted Braun inclui vídeos que revelam executivos da empresa explicando, em reuniões privadas, que a Herbalife vende “oportunidades de negócio”.

Infelizmente, as vítimas do esquema tendem a ser justamente aquelas mais vulneráveis: pessoas humildes, com relativamente pouco estudo, que encaram as promessas da Herbalife como a grande oportunidade de enriquecimento com a qual sempre sonharam - e, claro, nos Estados Unidos estes indivíduos tendem a pertencer à comunidade de imigrantes latinos (alguns dos quais são entrevistados pelo diretor, lembrando-nos da realidade por trás dos números apresentados). Há, claro, “investidores” que deveriam estar mais atentos para o tipo de modelo de negócios apresentado, mas que acabam cedendo graças à outra particularidade da arquitetura da Herbalife: o fato de que os convites geralmente partem de amigos, não de desconhecidos - e um dos alvos que aparecem no longa é um rapaz formado em Administração que só percebeu ter entrado em um “esquema de pirâmide” alguns meses depois de ter feito seus investimentos iniciais, optando por abandonar o que havia começado por não aceitar a ideia de trazer conhecidos ou familiares para um investimento que sabia não ser rentável.

E os números apresentados por Betting on Zero são impiedosos neste aspecto: 95% das pessoas que se tornaram representantes da Herbalife perdem dinheiro - algo que faz todo o sentido quando consideramos a lógica típica do esquema de pirâmide, que, neste caso específico, resulta numa estatística absurda, já que, para que todos os recém-entrados na empresa possam lucrar, mais do que o dobro de toda a população do planeta teria que se tornar representante da corporação.

O motivo também é fácil de entender: de acordo com o modelo de negócios revelado por Bill Ackman, a Herbalife ganha dinheiro graças ao investimento obrigatório feito por cada novo representante, que, para atingir descontos progressivos nos produtos que revende, é levado a comprar mais e mais, demorando a perceber que os preços dos suplementos alimentares que negocia são ridiculamente superiores à média do mercado e, portanto, difíceis de comercializar. 

Trazendo também entrevistas com o CEO da Herbalife, Michael O. Johnson (o executivo mais bem pago dos Estados Unidos, por sinal), o documentário não deixa, porém, de questionar as motivações do próprio Ackman, já que há o fato inegável de que este lucraria com a quebra da empresa e, portanto, teria todas as razões para difamá-la - e, não por coincidência, o investidor logo decide se comprometer a doar tudo o que vier a lucrar para as vítimas da corporação.

E, pelo que revela Betting on Zero, estas são muitas.

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Parte THX-1138, parte Romeu e Julieta, parte 1984, o romance Equals é uma ficção científica distópica que se passa em um mundo no qual os sentimentos foram extirpados graças a modificações no DNA. Porém, quando uma epidemia começa a provocar o ressurgimento de emoções em vários indivíduos, um centro de detenção é criado para isolá-los da sociedade até que uma cura seja descoberta. É então que o ilustrador Silas (Nicholas Hoult) descobre estar “infectado" e, desperto para sensações antes desconhecidas, se torna fascinado por uma colega de trabalho, Nia (Kristen Stewart), percebendo que esta vem escondendo ser portadora da mesma “doença”.

De um ponto de vista puramente técnico, é difícil não admirar Equals: sua concepção visual, mesmo parecendo óbvia em vários momentos, é também lógica e bem construída, lançando um frio tom azul sobre todos e abusando do branco ao criar cenários e figurinos estéreis que refletem a falta de cor interna dos personagens. Da mesma maneira, é interessante constatar como, durante uma importante conversa entre o casal principal, a luz ao fundo aos poucos se torna mais quente, acompanhando a alteração de seus sentimentos.

Aliás, o diretor Drake Doremus e o diretor de fotografia John Guleserian são hábeis também na forma como mantêm os personagens no canto dos quadros e presos no terço inferior da tela durante o primeiro ato da projeção, apequenando-os de forma significativa até que, finalmente vivos e intensos, comecem a ocupar mais e mais os espaços da tela. 

Claro que, neste tipo de produção, a dinâmica entre a dupla principal é fundamental para que a narrativa funcione e, também neste aspecto, Equals se sai bem, já que Hoult e Stewart executam bem o arco de seus personagens, iniciando a projeção com tons monocórdios, caminhar rígido e expressões congeladas apenas para gradualmente deixá-los de lado em busca de uma maior exposição de suas emoções (e Stewart, em particular, comove com a entrega de Nia ao que passa a viver, exibindo uma vulnerabilidade crescente que contrasta com sua frieza inicial - em certo momento, ela evoca toda a dor da garota simplesmente ao engolir em seco, o que é notável).

Assim, é uma pena que aos poucos o próprio filme abandone o autocontrole e se entregue cada vez mais ao sentimentalismo barato, não compreendendo que a melhor maneira de ilustrar a intensidade crescente das emoções de seus personagens seria justamente através da disciplina narrativa que vinha exibindo até então. Quando o nome “Eva" surge de forma significativa, então, a constatação é a de que o longa se rendeu completamente aos clichês.

Seu elenco merecia um resultado melhor.

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O último filme do dia foi o documentário Southwest of Salem, que conta a história de quatro mulheres que, habitantes de San Antonio (no Texas), foram acusadas em 1994 de abusarem sexualmente das duas sobrinhas pequenas de uma delas. Sem que qualquer evidência física fosse encontrada, elas acabaram sendo condenadas apenas a partir do depoimento das crianças - cujo pai havia tentado seduzir sem sucesso a tia das meninas e, não por coincidência, se encontrava por trás das denúncias.

Dirigido por Deborah S. Esquenazi, o filme recupera imagens de arquivo, entrevista todos os principais envolvidos no caso e, aos poucos, recupera o contexto do julgamento, deixando claro que as mulheres acabaram indo para a prisão basicamente por serem lésbicas (a obsessão dos Estados Unidos com cultos satânicos durante boa parte da década de 80 e início da de 90 contribuiu para o resultado - exatamente como no caso dos “3 de West Memphis” retratado na excepcional trilogia Paradise Lost). 

Apontando todas as fragilidades do sistema judiciário norte-americano, o puritanismo dos policiais, a ignoraria do júri e a homofobia de todos, Southwest of Salem se diferencia de produções como The Thin Blue Line, Paradise Lost e Making a Murderer por não se envolver diretamente no caso que acompanha, já que, claro, nenhum crime havia sido cometido e, portanto, seria impossível encontrar evidências físicas que apontassem para algum outro suspeito. Por outro lado, Esquenazi fez um trabalho diligente ao acompanhar boa parte do processo, incluindo a entrada no caso dos advogados do “Projeto Inocentes” (dedicado a defender pessoas acusadas injustamente) e, não menos importante, o momento no qual uma das crianças, agora adulta, confessa ter inventado toda a história por medo do pai.

Isto, porém, é só parte da história, já que, a rigor, as quatro jamais foram inocentadas de fato - e a batalha pela exoneração é outro elemento chocante da produção. 

Este é mais um filme que me impressionou imensamente. Até agora, o Festival de Tribeca 2016 tem sido recompensador.

Um grande abraço e bons filmes!

15 de Abril de 2016

Assista também ao videocast sobre o segundo dia do festival:

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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