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Drácula de Bram Stoker e a comédia acidental Anatomia de um Filme

Atenção! Esta coluna utiliza gifs animados para ilustrar certos conceitos. Para visualizá-los, basta clicar nos trechos linkados ao longo do texto.

Francis Ford Coppola é um gênio, responsável por nada menos do que quatro dos melhores filmes já feitos (Apocalypse Now e a trilogia O Poderoso Chefão). Portanto, ao assistir Drácula de Bram Stoker e testemunhar Sir Anthony Hopkins – no papel de Dr. Van Helsing – simulando sexo com a perna de um personagem a fim de ilustrar um argumento que já estava perfeitamente claro, eu fiquei confuso. Bem, primeiro, eu pausei o filme para gargalhar. E aí fiquei confuso. Como é que Coppola faz uma escolha dessas? Como é que, num momento no qual Drácula deve soar ameaçador, ele deixa seu intérprete Gary Oldman dizer “it is no laughing matter” com uma ênfase tão imensa na última sílaba que seu hálito quase derrete o rosto de Keanu Reeves? E como, de todos os atores do mundo, Coppola decide que o britânico Jonathan Harker deve ser interpretado por Keanu Reeves?

Apesar de algumas (poucas) cenas genuinamente belas, Drácula de Bram Stoker é um filme que se entrega ao excesso de tal forma que seus momentos supostamente assustadores e épicos tornam-se engraçados ou até mesmo absolutamente hilários. É um filme repleto de escolhas absurdas, não só por parte de Coppola mas também de seus atores, e que ilustra o quão tênue é a linha entre o drama emocionante e a comédia acidental. A longa e cuidadosa construção da atmosfera de uma cena pode ser destruída pelo mais leve dos detalhes.

Mas se falaremos de comédia acidental, comecemos do fundo do poço.

01. “Oh, Hi, Mark!”

Em 2003, foi lançado The Room, um drama dirigido, escrito, produzido e estrelado por Tommy Wiseau. Inicialmente, o filme foi um completo fracasso de público. Porém, ao longo dos anos, foi ganhando uma legião de espectadores que até hoje se juntam anualmente para assisti-lo. Na verdade, “assistir” não é bem a palavra certa; o que eles fazem é zombar em voz alta de cada segundo do filme. 

The Room é conhecido como “o Cidadão Kane dos filmes ruins”. Parece hipérbole, mas acredite, é um eufemismo. Apesar de ser um drama, o filme provoca mais gargalhadas que 90% de todos os filmes de comédia já feitos. Eu não estou exagerando: The Room não consegue passar um minuto sem cometer algum crime cinematográfico. Chega a ser difícil acreditar que não seja uma comédia disfarçada, mas membros do elenco e da equipe garantem que a intenção de Wiseau era fazer um clássico do drama. Todos os filmes dos quais falarei nesta coluna – incluindo Drácula de Bram Stoker – serão discutidos com The Room servindo como o ápice da comédia acidental. Plano 9 do Espaço Sideral? Pffff.

A história gira em torno de Johnny (Tommy Wiseau), um banqueiro americano que... ok, os problemas já começam aí. O sotaque de Wiseau não se assemelha em nada com um americano. Ou com qualquer sotaque inglês. Ou com qualquer sotaque humano. A nacionalidade de Wiseau é desconhecida (ele revela muito pouco sobre si mesmo a quem quer que seja), portanto o mais próximo que já chegaram de deduzir sua terra de origem foi “leste europeu”, mas acho que até pessoas do leste europeu ficariam confusas ao ouvi-lo. Wiseau fala como se tivesse uma língua três vezes maior do que o normal. Cada sílaba compreensível é uma vitória. Como se não bastasse, sua voz é tão aguda e anasalada que respirar gás hélio não a deixaria muito diferente.

Isso já seria um obstáculo considerável para a suspensão de descrença do espectador, mas há um bem pior: Tommy Wiseau é o pior ator que já testemunhei. A maior parte dos intérpretes catastroficamente ruins têm sua mediocridade atribuída à falta de talento, mas Wiseau vai tão além de “catastroficamente ruim” que o único motivo que parece crível é dano cerebral. Suas inflexões não seguem qualquer lógica, não combinam com suas expressões faciais, que por sua vez também não seguem qualquer lógica. Qualquer cena na qual ele esteja se torna instantaneamente engraçada, não importando a qualidade da direção ou do roteiro.

Ambos, infelizmente, são da autoria de Wiseau, e são quase tão ruins quanto sua atuação. Voltemos à história: Johnny (Tommy Wiseau) é um banqueiro americano que está para se casar com Lisa (Juliette Danielle). Porém, esta deixa de amá-lo e começa a ter um caso em segredo com o melhor amigo de Johnny, Mark (Greg Sestero). É essencialmente isso. A história de The Room poderia facilmente ser reduzida para os dois minutos iniciais de um filme pornô, mas Wiseau a estica por uma hora e quarenta minutos. Como? Através de várias subtramas que começam e nunca terminam. Por exemplo: a mãe de Lisa revela ter câncer de mama com a mesma entonação de quem descreve uma visita ao shopping. Lisa responde que “ficará tudo bem, estão curando muita gente todo dia” (não estou parafraseando, esse é o exato diálogo). O câncer da mãe dela nunca volta a ser mencionado.

Em seguida, vemos uma amiga de Lisa na casa desta, prestes a fazer sexo com um rapaz e sendo flagrados por Lisa e sua mãe. Isso introduz a amiga de Lisa na história, mas o flagra não leva a nada a não ser uma cena posterior absolutamente constrangedora na qual o rapaz reconta a história para Johnny – a exata mesma história que o espectador testemunhou, sem adicionar absolutamente nada de novo – e Johnny responde, juro por Deus, “A vida é assim.” Mas ei, ao menos a cena do flagra introduz Lisa na história! O que também não leva a nada.

Além disso, Denny (Philip Haldiman), o jovem vizinho de Johnny que este praticamente adotou como filho, é encurralado no topo de seu prédio por um traficante de drogas que aparentemente gosta de conduzir negócios no topo de prédios. O traficante exige que Denny o pague uma dívida, Denny promete que irá conseguir o dinheiro, e é ameaçado com uma arma. Nesse momento, Johnny, Mark, Lisa e sua mãe chegam no telhado – todos juntos, indo pro telhado justamente nesse momento por algum motivo inexplicável – e conseguem desarmar o traficante. “Vamos levá-lo pra polícia!” diz Johnny enquanto carregam sem esforço o traficante que tem o dobro do tamanho deles. O problema de Denny com drogas nunca volta a ser mencionado pelo filme.

Este mesmo Denny também diz para Johnny que está apaixonado por Lisa. Sim, a mesma Lisa que está noiva de Johnny. Este recebe a notícia sem mudar de expressão, e diz, “Prossiga”. Eu juro que não estou inventando nada disso. Denny reitera o que já falou, e Johnny diz, “Denny, não se preocupe com isso”, completa com algumas platitudes sobre o amor, e o interesse de Denny por Lisa nunca volta a ser... é, você já entendeu. Ah, e em certo momento Mark tenta jogar um amigo do topo do prédio, mas quando não consegue, pede desculpas e o assunto é imediatamente esquecido.

E não esqueçamos as longuíssimas cenas de sexo. Não há drama nenhum ocorrendo nelas – são só planos intermináveis de personagens despindo-se, acariciando e beijando um ao outro, etc. Sem diálogo, sem conflito, sem subtexto; só amassos e mais amassos, tudo ao som de músicas indescritivelmente bregas. Esses planos completamente superficiais totalizam nove minutos do filme. Alguns deles são mais abertos, tentando retratar o sexo com movimentos pélvicos realistas e tudo o mais, mas Wiseau simula isso em uma posição tão mal-pensada que parece estar transando com o abdômen de Lisa.

A única conexão que pode ser encontrada entre todas as subtramas abandonadas é que ilustram o quanto Johnny é um ser humano absolutamente perfeito. Wiseau escalando a si próprio para o papel é uma fantasia tão escancarada que chega a dar pena, especialmente considerando que ele surge extremamente malhado nas cenas em que aparece sem camisa. Desse ponto de vista temático, algumas das subtramas cumprem seu papel, embora continuem sendo inertes do ponto de vista narrativo.

E é isso que faz The Room ser tão hilário: é uma tentativa sincera de fazer um grande drama, mas com um abismo colossal entre a ambição e o talento de seu criador. Wiseau tenta atuar bem, e falha da maneira mais catastrófica que já testemunhei (a cena na qual ele destrói uma sala – e que deixa a comparação com Cidadão Kane ainda mais apropriada – é um primor da comédia física que teria dado inveja a Buster Keaton se tivesse sido intencional). O filme tenta ser engraçado, e erra tão feio que você ri do quão sem graça as cenas são. O roteiro tenta criar uma conversa minimamente convincente entre dois personagens e não consegue (“Não posso te dizer, é secreto. Mas e aí, como vai sua vida sexual?”). A ineptidão de tudo e de todos é tão colossal que é impossível não rir.


Um dos magníficos sets que aparecem no filme.

Isso é vital de se entender: o principal motivo de estarmos rindo é porque sabemos que não é essa a intenção do autor, e quanto mais solene e confiante este é, mais engraçado seus erros se tornam.

E não é incomum que pessoas muito mais talentosas do que Tommy Wiseau fracassem da mesma forma.

02. Marlon Brando, Nicolas Cage, e Abelhas

Os primeiros vinte e cinco minutos de a A Ilha do Dr. Moreau são impecáveis. O filme já abre com um plano aéreo de três náufragos lutando entre si dentro de um bote inflável no meio do oceano, e a maneira como a luta é dirigida é nada menos do que brilhante. Os planos são claros, bem-compostos e a ação se desenvolve de maneira lógica e intensa, tudo isso no pouco espaço de um bote. Não está claro se o diretor dessa cena foi Richard Stanley ou John Frankenheimer, mas quem quer que tenha sido fez um trabalho espetacular.

Talvez eu deva explicar essa dúvida sobre os diretores: A Ilha do Dr. Moreau tem um dos bastidores mais absurdos da história de Hollywood. Isso não deve impactar o julgamento da qualidade de uma obra, jamais, mas é divertido demais pra não ser mencionado: estamos falando de um filme no qual o diretor original, Richard Stanley, foi despedido após quatro dias de filmagem e, ao invés de voltar para Los Angeles, desapareceu sem deixar pistas. John Frankenheimer foi contratado como o novo diretor e seguiu em frente com a produção, que já era desafiadora antes mesmo de sair do papel: um náufrago vai parar em uma ilha cheia de mutantes, híbridos de seres humanos e animais, criados por um cientista chamado Dr. Moreau.

Mas o principal obstáculo de Frankenheimer foi bater de frente com as personalidades de Val Kilmer e Marlon Brando. O comportamento de Kilmer em sets de filmagem é famosamente insuportável, levando Frankenheimer a dizer, “Mesmo que eu fizesse um filme chamado A Vida de Val Kilmer, eu não escalaria esse babaca no elenco”. Já Brando acabara de sofrer uma tragédia – o suicídio de sua filha – e sua excentricidade habitual estava à beira de se tornar loucura. Ele demandava alterações ao roteiro diariamente. A mais insana delas foi sugerir que o Dr. Moreau usasse um chapéu elaborado ao longo de toda a narrativa a fim de esconder sua verdadeira natureza. No desfecho da história, Moreau removeria o chapéu, revelando ser um golfinho.

Em certas cenas, Frankenheimer estava tão ocupado lidando com Brando e Kilmer que passou várias tarefas de diretor para Peter Elliot, um especialista em comportamento de animais. Infelizmente, Elliot também estava interpretando um babuíno, o que o forçou a dar ordens para a equipe sob quilos de maquiagem, incluindo um focinho animatrônico que deixava tudo o que ele dizia ininteligível. Mais incrível ainda é que Frankenheimer filmou, sem saber, uma cena inteira com Richard Stanley presente como figurante. Um mês após seu desaparecimento, o ex-diretor fora encontrado vivendo sozinho na floresta, aparentemente tendo sofrido um colapso nervoso, e foi trazido de volta para o set maquiado como uma das várias criaturas mutantes.

Mas ei, Apocalypse Now também teve bastidores tão absurdos que renderam um documentário e mesmo assim conseguiu se tornar um clássico.

Não é o caso de A Ilha do Dr. Moreau.

O filme decai de forma gradual. A princípio, parece mais um breve tropeço. Em uma sequência perturbadora na qual vemos uma criatura grotesca parindo um bebê deformado, o protagonista Edward (David Thewlis) é flagrado espiando a cesariana. Ele foge e dá de cara com outros mutantes, que o perseguem pela floresta. Ele e uma mulher que o ajuda chamada Interesse Românt... digo, Aissa (Fairuza Balk), fogem juntos, deparando-se com uma criatura felino-humana chamada Lo-Mai (Mark Dacascos).

A princípio, a maquiagem impressiona: os olhos de Lo-Mai são penetrantes e assustadores, e as próteses preservam as nuances faciais do ator. Porém, quando a criatura começa a fugir, o filme a substitui por um boneco inteiramente digital.

Em 1996.

É ainda pior do que você está imaginando.

E depois desse momento constrangedor, o filme começa a nos apresentar a outras criaturas mutantes... bonitinhas. Fofas, até. Vemos uma vila cheia delas, com um profeta mutante e cego (Ron Perlman) que as estimula a agir como humanos, não animais. Em seguida, surge o Dr. Moreau – no caso, um Marlon Brando imenso de gordo, coberto de pó-de-arroz da cabeça aos pés e usando um véu.

Portanto, depois de vinte e cinco minutos de tensão crescente, o filme se desvia para um tom decididamente excêntrico e não parece estar inteiramente ciente disso. A atmosfera construída pelo primeiro ato se desfaz. Moreau – por decisão do roteiro – se esforça tanto para não ser ameaçador que até entrega uma pistola carregada a Edward a fim de acalmá-lo. Já este (com um exagero imenso do ator David Thewlis) demonstra uma repulsa tão grande às criaturas que isso acaba destruindo a simpatia do espectador por ele, já que elas – além de serem bonitinhas – o tratam com educação e hospitalidade enquanto ele as insulta. Moreau (por insistência de Brando) tem até um Mini-Me interpretado pelo anão Nelson de la Rosa. Quando Edward, horrorizado, aponta para o anão e diz “Olhe para ele!”, o filme corta para um close inocente da criaturinha, e não fica claro se o diretor compreendeu o quão engraçado isso é.

O total descuido de Frankenheimer também leva a momentos embaraçosos como aquele no qual vemos Moreau e seu Mini-Me “tocando” um dueto ao piano. Os movimentos de câmera não fazem a menor questão de ocultar que Brando e de la Rosa não sabiam tocar piano: as mãos de ambos passeiam pelas teclas sem encostar nelas. É ainda pior no caso de de la Rosa porque uma das mãos de seu personagem é imensa e com garras, obviamente incapaz de tocar com precisão mesmo que o ator soubesse como, mas Frankenheimer não está nem aí: ele mostra a mão pressionando desajeitadamente as teclas ao mesmo tempo em que ouvimos a música sendo perfeitamente tocada. Chega a ser glorioso de tão ruim.

Com Edward continuando a agir de forma insuportável, nossa fascinação logo se transfere para o Dr. Moreau, que, apesar de ser um tirano, conquista o espectador por ser muito mais interessante e multifacetado. E, além disso, é interpretado por Marlon Brando. Por mais indiferente que fosse nos bastidores, Brando era simplesmente incapaz de atuar mal. A melhor cena do filme é aquela na qual Moreau toca um trecho de “Rhapsody in Blue” para acalmar seus “filhos”, que estão se rebelando. Infelizmente, essa cena também contém Hyena-Swine, o vilão mutante do filme. Por algum motivo, seu intérprete Daniel Rigney decide que a voz e entonação do personagem devem evocar um lorde inglês tendo um derrame. Ele soa ridículo quase o tempo todo, e também é prejudicado pela maquiagem tragicamente ruim (do mestre Stan Winston, inacreditavelmente): seu rosto desaparece sob uma máscara rígida que preserva apenas a movimentação de seus olhos. A boca parece ser uma atrocidade animatrônica que nunca sincroniza apropriadamente com a voz do ator. E não, isso não era limitação da época. O filme que será discutido daqui a pouco, Drácula de Bram Stoker, foi feito quatro anos antes e o trabalho prostético dele é magnífico até para os dias de hoje.


No meio, Daniel Rigney como Hyena-Swine.

Após a morte de Moreau, o filme se entrega à quase completa incoerência, decidindo arbitrariamente que o personagem de Val Kilmer, Montgomery, é insano. O relacionamento dele com Moreau é retratado de forma vaga e bizarramente contraditória, então quando Montgomery surge fantasiado como seu falecido colega e imitando sua voz em um microfone, não parece ser resultado de qualquer linha dramática lógica. E só fica pior: as últimas palavras de Montgomery antes de ser morto (sem motivo aparente) por um dos mutantes é “quero ir pro paraíso dos cachorros”. Mesmo.

É como se o filme estivesse tentando evocar a atmosfera louca, selvagem e febril de Apocalypse Now, mas fracassando em todos os quesitos. Os primeiros vinte e cinco minutos conseguem convencer o espectador de que a possibilidade existe, mas os setenta e cinco seguintes sofrem com a direção descuidada e burocrática, a fotografia que se torna cada vez mais desinteressante (ou desinteressada) ao longo da projeção, o roteiro sem nexo, a trilha sonora genérica, a maquiagem irregular, e as atuações que – excetuando-se o bom trabalho de Brando – ou são prejudicadas por personagens que o roteiro não desenvolve (Val Kilmer, Fairuza Balk) ou são mal-calculadas (David Thewlis) ou são simplesmente horríveis (Daniel Rigney). Se a loucura de Apocalypse Now é arrebatadora e fascinante, a de A Ilha do Dr. Moreau é engraçada. E essa linha é bem mais tênue do que parece.

O que nos leva a O Sacrifício (2006), estrelado por Nicolas Cage e dirigido por Neil LaBute. Trata-se de uma refilmagem de O Homem de Palha (1973), estrelado por Edward Woodward e dirigido por Robin Hardy. Supostamente, ambos os filmes se encaixam no gênero terror, mas adotam tons completamente diferentes. No original, Robin Hardy constrói uma atmosfera de perigo cada vez mais sufocante sem jamais se entregar ao exagero. Pelo contrário, ele é paciente e entende que o humor e o terror não devem ser separados. Em diversos momentos do filme, ele nos convida a rir do contraste entre a fé cristã do sargento Howie (Edward Woodward) e os costumes pagãos e sexualmente livres dos habitantes da ilha de Summerisle, que ele investiga em busca de uma criança desaparecida. Em um momento particularmente memorável, Howie ri do conceito de partenogênesis (fecundação sem contato sexual), no qual os habitantes da ilha acreditam, e é lembrado por um deles que o Jesus no qual tanto crê foi supostamente parido por uma virgem.


Christopher Lee como Lorde Summerisle e Edward Woodward como o sargento Howie. Sim, Christopher Lee era incrivelmente alto.

A exasperação de Howie acerca dos costumes da ilha fazem dele divertido, mas é sua integridade inabalável que conquista o espectador. Mesmo sendo religioso a ponto de não acreditar em sexo antes do casamento, ele ganha a admiração do público com sua persistência em encontrar a criança desaparecida. Ele é movido por genuína compaixão, e logo a forma como sofre por sua fé se torna comovente até para espectadores que não compartilham dela. Hardy entende isso, e contrabalança a rigidez do personagem com alguns toques de humor que o humanizam. O ator Edward Woodward se mostra em absoluta sincronia com o cineasta, oferecendo uma daquelas raras performances que só posso descrever como perfeita.

Além disso, o diretor não utiliza uma trilha sonora. Não há instrumentos pontuando a maior parte das cenas. O tom do filme, por quase toda a sua duração, depende exclusivamente das atuações, do design de som e da fotografia. Hardy entendia – mais do que a maioria dos diretores – o poder do silêncio. De não indicar claramente ao espectador como deve se sentir. Mas ele vai numa direção ainda mais inusitada: O Homem de Palha, um filme de terror (no mínimo, de suspense), contém números musicais. Em diversos momentos do filme, personagens começam a cantar músicas na íntegra, e elas se tornam cada vez mais perturbadoras. Se a princípio, recitam uma canção alegre de conteúdo obsceno, mais tarde ouvimos uma música bem mais sombria que constitui uma verdadeira ode à tentação sexual. Não há descrição que possa fazer justiça ao trabalho soberbo do compositor Paul Giovanni, cujo trabalho constrói por si só um tom ao mesmo tempo tenso e melancólico. Não hesito em dizer que a cena na qual uma mulher nua canta promessas sexuais ao sargento Howie – que luta consigo mesmo para não ceder a elas – se tornou um de meus momentos favoritos do Cinema.

O filme é uma experiência única, cuidadosamente construída para atingir o espectador em seu subconsciente, e o final é inesquecivelmente perturbador em sua frieza. Hardy mais uma vez não usa uma trilha sonora, só uma percussão diegética e um zoom eficaz, ao revelar o porquê de O Homem de Palha ter esse título.

O Sacrifício... meu Deus do céu, por onde começar?

Nicolas Cage. Ah, Nicolas Cage. A física quântica deveria estudar como ele consegue ocupar os estados de ótimo ator e péssimo ator ao mesmo tempo. Seja lá pra qual desses ele converge quando o diretor grita “ação!”, ele nunca deixa de ser fascinante. Em O Sacrifício, o ator já é prejudicado quando o cineasta Neil LaBute – que também escreveu o roteiro – decide transformar seu personagem em um detetive genérico assombrado por um trauma passado. Não um homem íntegro e religioso que tem sua fé desafiada e usada contra si – só mais um policial traumatizado e sem qualquer outro resquício de personalidade para se juntar aos quinhentos outros que já passaram pelo Cinema.

Ok, pra ser justo, ele tem personalidade – o problema é que é a de Nicolas Cage. Nos momentos mais intensos, ele faz o que Nicolas Cage costuma fazer: age como um completo lunático (“Como é que queimou? Como é que queimou? COMO É QUE QUEIMOU COMO É QUE QUEIMOU”). Bizarramente, ele alterna isso com uma composição bem mais comedida, quase letárgica – o que pode até ser um toque inteligente de interpretação, já que o personagem dele toma remédios para tratar estresse pós-traumático. Mesmo assim, isso não funciona com o tom do filme, e apenas cria um personagem estranhíssimo que – ao contrário de Howie no filme original – não é pra ser engraçado, mas acaba sendo. O filme o leva completamente a sério.

Mesmo com Cage sabotando a si próprio, LaBute consegue a proeza de prejudicá-lo ainda mais. Em certo momento, o ator ameaça uma mulher com uma arma a fim de usar a bicicleta dela. Depois desse momento de autoridade, LaBute mostra Cage, em plano aberto, pedalando desajeitadamente em direção ao perigo. Mas isso empalidece diante do momento no qual Cage corre para resgatar uma criança enquanto veste uma fantasia de urso. É um dos momentos mais surrealmente imbecis que o Cinema já ofereceu.

Tudo se torna ainda pior porque LaBute decide ir na direção oposta à de Robin Hardy e utilizar uma trilha sonora incidental. O tempo todo. Interminavelmente. O compositor Angelo Badalamenti carrega no suspense e na tensão toda vez que há a mínima desculpa para fazê-lo, o que dá uma solenidade excessiva a momentos como o da bicicleta e do urso e acaba deixando-os mais engraçados (o que, sejamos justos, já seriam mesmo sem a música).

Talvez você já conheça a famosa (e maravilhosamente péssima) cena na qual Cage é torturado com abelhas, levando-o a gritar, “As abelhas não! AS ABELHAS NÃO! AAAAAAH! AAAAAH! ESTÃO NOS MEUS OLHOS! MEUS OLHOS! AAAAAAH!” Bem, essa cena não existe no corte original do filme; é uma versão alternativa do desfecho, disponível no DVD, então não posso julgá-la como parte do filme. Só a menciono porque é absurda demais para não ser assistida, e  também porque o filme original não a elimina completamente: depois que Cage é atacado pelas mulheres, LaBute corta para um longo plano aberto enquanto escutamos a voz do protagonista em off sendo torturado. Em certo momento, quando ouvimos um baque, ele – parecendo saber que está em off e determinado a não deixar o espectador confuso – hilariantemente grita, “Minha perna! ”.

Além de tudo isso, a refilmagem muda o tema do original: se este era sobre os extremos do fanatismo religioso, O Sacrifício é sobre, aparentemente, os extremos do feminismo radical. A ilha de Summersisle é inteiramente habitada por mulheres que odeiam homens, e o filme ainda contém um epílogo que é uma das coisas mais sexistas que já tive o desprazer de testemunhar. Este é um filme que odeia mulheres num nível quase psicótico, o que só o deixa mais patético.

Porém, a comédia acidental não depende só do absurdo do que está sendo retratado; depende do quão favorável o espectador está em relação à sua obra. Toda cena de um filme está imersa no contexto das cenas anteriores, e a diferença que isso faz é colossal. O que leva àquela situação pela qual você provavelmente já passou: ouvir metade da platéia dando risadinhas de uma cena que a outra metade está levando a sério.

03. A Suspensão de Descrença e a Suspensão de Julgamento

Você com certeza já assistiu a uma cena que te deixou sem saber como reagir. Devo rir disto? Não devo? Isto é pra ser engraçado? Perturbador? Ou simplesmente é o que é e a sua reação não importa?

Há milhares de momentos clássicos no Cinema que caminham nessa corda bamba. No clímax violentíssimo de Taxi Driver, uma das vítimas de Travis Bickle (Robert De Niro) grita “vou te matar!” um número interminável de vezes, uma repetição que acaba sendo perturbadora mas poderia facilmente ter causado o riso. Em Seven: Os Sete Crimes Capitais, a maneira como Brad Pitt grita “O que tem dentro da caixa?” é absolutamente bizarra. O horror da cena, o fato de não sabermos como reagiríamos no lugar dele, é essencialmente o que a mantém eficaz – mas tirada de contexto, as inflexões de Pitt são absurdas. Em Cisne Negro, as ações de Nina (Natalie Portman) no terceiro ato vão se tornando mais e mais excessivas num nível que tinha tudo para ser sombriamente hilário.

Então por que não foi?

Dizem que, durante as filmagens de Tubarão, Peter Benchley (autor do livro original) reclamou com Steven Spielberg que o desfecho do filme não era realista. Spielberg teria respondido que, àquela altura do filme, isso não importaria mais; o espectador já teria sido conquistado e aceitaria o absurdo.

Seja essa história verídica ou não, esse ensinamento é verdade, e também nada fácil de seguir. Pelo contrário: abrir a mente do espectador para o universo de sua história é um imenso desafio. Mas uma vez que você ganha a boa vontade do público, as possibilidades se tornam infinitas. Em um filme do qual o espectador está gostando, as escolhas estranhas de um cineasta ganham o benefício da dúvida e são cuidadosamente analisadas em busca de um significado que as justifiquem. Já em um filme que o espectador está achando ruim, essas escolhas são vistas como meros erros dos quais você ri.

A Origem (2010) tem um terceiro ato que pareceria insano fora de contexto; o mesmo vale para Matrix (1999), Oldboy (2003), Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (2004) e Blade Runner – O Caçador de Andróides (1982). Em Oldboy, um personagem imita um cachorro a fim de indicar sua submissão e no contexto da história isso é trágico ao invés de ridículo. Quando você já está gostando de um filme, sua suspensão de descrença torna-se bem mais generosa. As inflexões bizarras de Brad Pitt em Seven? Em um filme ruim, seriam má atuação. Mas em Seven, que é excelente, são indicativas de um completo colapso emocional; quando o personagem de Brad Pitt pergunta “o que tem dentro da caixaaaaaa?” dessa maneira absurda, ele na verdade já sabe a resposta. Pode ter sido má atuação? Pode. Mas se foi, a qualidade do filme consegue não só salvar o momento como justificá-lo.

Park Chan-wook, diretor de Oldboy, é mestre em manipular o espectador dessa forma. Em Sr. Vingança, ele nos mostra um personagem em primeiro plano, concentrado em alguma coisa à sua frente, enquanto ao fundo uma pessoa morre lentamente sem que ele perceba. Isso é uma composição clássica de filmes de comédia: personagem em primeiro plano indiferente ou alheio ao que está acontecendo atrás dele, e Chan-wook usa isso de forma a horrorizar o espectador. Se ele tivesse errado a mão mesmo que um pouquinho, teria feito humor negro ao invés de drama.

Mas é em Lady Vingança que o cineasta parece ter se desafiado a fazer o filme mais tonalmente complicado possível. A história nem é complexa: aos dezenove anos, Lee Geum-ja (Lee Yeong-ae) é presa pelo assassinato de um menino. Na realidade, o assassino é o Sr. Baek (Choi Min-sik), um professor de inglês que, para não ser descoberto, rapta a filha bebê de Geum-ja e ameaça matar a criança a menos que a moça assuma a responsabilidade pelos crimes dele. Com isso, ela passa treze anos encarcerada e planejando sua vingança, ajudando várias colegas de cela para poder também contar com a ajuda delas posteriormente. Uma vez solta, Geum-ja cobra favores a fim de colocar seu plano em ação, e acaba envolvendo sua filha na história.

Tudo isso é estabelecido na primeira metade da projeção, mas através de microcenas desconexas, fora de ordem cronológica e repletas de elementos fantasiosos e conversas que procedem de forma quase aleatória. É um turbilhão, requerendo um esforço mental da parte do espectador para entender com clareza o que está acontecendo antes mesmo que qualquer conexão emocional ou mistério tenham sido de fato estabelecidos. Em tese, isso é uma péssima ideia, mas Lady Vingança consegue expressar desde o início que tem um objetivo em mente. A montagem caótica não parece o trabalho de um cineasta sem talento. Pelo contrário, ela, a soberba fotografia e as excepcionais atuações dão a sensação de que vale a pena continuar assistindo. Chan-wook dá várias informações ao espectador enquanto o convence a não formar opinião ainda. É uma suspensão não só de descrença como também de julgamento.


Um exemplo da genialidade visual de Park Chan-wook: neste plano, a personagem está rindo de uma ideia que acabou de ter.)

A partir da segunda metade, o filme planta os pés firmemente no chão, adotando uma narrativa linear e uma lógica consistente. Chan-wook começa a colher as sementes dramáticas que plantou, não abandonando sua tendência ao humor inusitado, mas ficando decididamente mais focado no drama. E em uma das cenas mais comoventes do filme, o cineasta faz uma escolha que viria a me deixar confuso por anos: após raptar o Sr. Baek, Geum-ja coloca uma arma em sua cabeça e o força a servir de intérprete em uma conversa entre ela e a filha. Ela explica para Jenny o motivo de seu abandono e pede perdão. A princípio, o diálogo é filmado de forma convencional, e o Sr. Baek traduz com óbvio nervosismo em sua voz. Mas aos poucos, Chan-wook inclui apenas Jenny e Geum-ja em seus planos, e finalmente só Geum-ja num longo plano no qual fala diretamente com a câmera (ou seja, estamos vendo Geum-ja através dos olhos de Jenny). E a partir daí o Sr. Baek começa a traduzir a conversa enquanto também imita as entonações de Geum-ja de maneira estranhamente caricatural. A impressão que dá é que ele está ridicularizando os sentimentos dela, e que ela está ignorando isso. Mas por algum motivo que na época não consegui entender, isso me soou estranhamente apropriado.

Eu provavelmente estava ocupado demais chorando para me preocupar muito com isso. É difícil não soar hiperbólico ao dizer isto, mas é a verdade: se eu tivesse que escolher a melhor performance que já vi em um filme até hoje, seria a de Lee Yeong-ae fazendo o monólogo de Geum-ja. Chamar o que a atriz faz meramente de “atuação” é diminuir seu trabalho; chega a dar medo pensar no que Lee Yeong-ae evocou em sua mente para fazer a dor em seus olhos parecer tão real. Quando Geum-ja revela sua cumplicidade no crime do Sr. Baek, a resposta inesperadamente inocente de Jenny faz com que sua mãe tenha uma crise simultânea de riso e choro, expressando um amor tão infinito e uma tristeza tão profunda que eu comecei a chorar junto. E isso ainda acontece toda vez que assisto essa cena.

Eu passei anos sem rever Lady Vingança. Para escrever este texto, eu fiz isso e desta vez busquei entender as entonações absurdas do Sr. Baek ao traduzir o monólogo de Geum-ja. E a resposta é inesperadamente simples (e uma sacada genial): os sentimentos do Sr. Baek estão completamente excluídos da cena. Nós ouvimos a tradução dele da mesma maneira que Jenny está ouvindo. A atenção dela está focada na mãe, não nele, então ela ouve a tradução dele mas com as entonações dela. A maneira caricatural com que o Sr. Baek imita essas entonações também pode ser atribuída à inocência de Jenny, que não consegue captar as nuances emocionais na voz da mãe. E assim, com esse simples entendimento, a cena se torna uniformemente magnífica. Um toque aparentemente bizarro que poderia levar um espectador ao riso torna-se um artifício dramático estupendo.

Esse não é o único momento de Lady Vingança que me faz chorar. A cena na qual um grupo de pais assiste vídeos de seus filhos sendo mortos pelo Sr. Baek me atingiu tão brutalmente que eu nem senti as lágrimas vindo; no momento em que ele puxa a corda de uma cadeira, o choro saiu de mim com a intensidade de um espirro. E claro, há o longo plano durante o qual Geum-ja olha para o nada e sua expressão lentamente se contorce em uma mistura indescritível e aterrorizante de alegria e dor. Mais uma vez: Yeong-ae Lee é uma atriz fenomenal.

Esses momentos ainda assim não impedem Chan-wook de explorar o ridículo: quando os pais entram em uma fila para torturar o Sr. Baek um por um, um deles percebe que o outro só tem um pedaço de pau e oferece sua faca, que julga ser um instrumento mais eficaz. Isso já é por si só um momento bizarro de cordialidade dentro das circunstâncias, mas Chan-wook vai além: o pai com o pedaço de pau revela que este é só a parte de baixo de um imenso machado. Toques de comédia como esse permeiam o filme, criando um contraste poderosíssimo quando se ausentam. Lady Vingança é um filme feito com extremo cuidado: quando te faz rir, é intencional. Quando te faz chorar, é intencional. Quando te deixa sem saber como reagir, é intencional. E o espectador percebe que é intencional. Mesmo não entendendo o motivo, dá para sentir que a escolha aparentemente estranha foi tomada deliberadamente, e isso nos leva a analisar com mais cuidado.

À medida que um filme vai nos conquistando, o cineasta vai ganhando mais e mais liberdades. Em inglês, há uma maneira concisa de se referir a esse fenômeno: “earning it” (leia-se: “fazer por merecer”). A filmografia das irmãs Wachowski oferece alguns exemplos disso. Em Matrix, um beijo de Trinity (Carrie Anne-Moss) traz Neo (Keanu Reeves) de volta à vida. Soa ridículo no papel, mas a essa altura do filme estamos torcendo muito pelo casal. Ficamos felizes que dê certo e depois, ao analisar o ocorrido, dá para aceitá-lo como plausível dentro do universo do filme (que contém elementos místicos como a Oráculo, por exemplo). Depois de ganhar o espectador, as Wachowskis ganham também o direito de evocar algo como “o amor tudo conquista”. Já Interestelar não consegue o mesmo feito porque, como discuti na minha primeira coluna, não faz por merecer. É tonalmente incoerente demais, com personagens rasos demais e com diálogos expositivos demais.

Como deve estar claro a esta altura, é muito, muito difícil conquistar o espectador. A quantidade de aspectos envolvidos é estonteantemente grande, e ainda por cima estão todos sujeitos à visão comprometida do criador: um cineasta nunca pode ver sua obra com os mesmos olhos do público. Durante o processo de ler (ou escrever) o roteiro, planejar cada cena, passar anos filmando, montando e remontando, você perde a noção do que está funcionando ou não. Você não aguenta mais olhar para o filme, e nessas circunstâncias é muito mais fácil errar.

Na maior parte dos casos, esses erros são meramente decepcionantes ou simplesmente entediantes. A maioria dos filmes ruins é um porre.

Não é o caso de...

04. Drácula de Bram Stoker

Francis Ford Coppola já declara suas aspirações ao épico desde o início do filme, que começa com uma cruz sendo envolta em fumaça enquanto a trilha sonora de Wojciech Kilar pulsa em tons graves. Trata-se de um prólogo no qual somos apresentados ao cavaleiro Drácula (Gary Oldman), que é encarregado de comandar os exércitos da Transilvânia contra os turcos em 1462. Mesmo em desvantagem, ele vence a batalha. Os turcos, no entanto, conseguem fazer com que a falsa notícia da morte de Drácula chegue aos ouvidos de sua amada noiva Elisabeta (Wynona Rider), que, desconsolada, joga-se do topo de seu castelo. Quando Drácula retorna, ele encontra o cadáver de sua amada no altar da capela, cercada de sacerdotes cujo líder (Anthony Hopkins) a declara condenada ao inferno por suicídio. Furioso, Drácula renuncia a Deus e agride os sacerdotes. Desembainhando sua espada, ele vai até o altar e impala a cruz, que jorra sangue. Drácula declara que voltará de sua morte para vingar a de Elisabeta e, com isso, bebe o sangue da cruz. Percebendo a gravidade do que fez e que é tarde demais para reverter o dano, ele grita em desespero, e cortamos para o título do filme gravado em alto relevo e iluminado por fogo.

Como essa última frase deve ter deixado aparente, Coppola dirige esse prólogo com uma grandiosidade que faz óperas parecerem teatrinhos de fantoche. Ele também introduz alguns dos exibicionism... digo, técnicas cinematográficas que virão a infest... digo, permear o filme, como os fades constantes e a superimposição de imagens sobre outras imagens. Contribuindo para a solenidade, Gary Oldman expressa o ódio de Drácula com a intensidade de mil sóis, a fotografia de Michael Ballhaus abusa do laranja e do vermelho vivos, e a música de Wojciech Kilar não hesita em explodir num coro de vozes gritando como se estivessem caindo no inferno. É tudo bem exagerado, mas até que funciona bem como prólogo.

As coisas começam a ruir logo em seguida: somos apresentados a Renfield (Tom Waits), um homem obviamente louco que come um inseto enquanto fala com as paredes sobre um “mestre” que o recompensará no futuro. O design de Renfield é... excêntrico, com seu penteado “afro” contemporâneo e oclinhos que aumentam o tamanho de seus olhos.

Mas se isso já causa estranhamento, a cena seguinte deixa tudo muito pior: vemos Jonathan Harker, um jovem advogado britânico, sendo encarregado de ir até a Transilvânia visitar o conde Drácula a fim de ratificar a compra que este fez de várias propriedades em Londres. Renfield era o advogado que estava lidando com a transação, mas sua internação dá a Harker a chance de finalizar o negócio e de garantir o próprio futuro na firma onde trabalha.

O problema é que Harker, um jovem advogado britânico, é interpretado por Keanu Reeves.

Eu adoro Keanu Reeves. Mesmo. Sem ironia alguma. Ele é um ator facialmente limitado, mas também imensamente carismático, capaz de um bom trabalho vocal (vide suas entonações deliciosamente cínicas em Constantine) e talentoso com linguagem corporal, o que faz dele um dos melhores astros de ação que existem. Como ninguém colocou ele e Tom Cruise no mesmo filme ainda, não faço ideia.

Porém, em Drácula de Bram Stoker, ele era um ator inexperiente encarregado de adotar um sotaque bem distante do seu próprio. A mãe de Reeves é britânica, mas isso não parece ter ajudado. O sotaque dele é tão falso que ele consegue soar menos convincente do que Gary Oldman falando romeno durante o prólogo. E o pior é que Reeves tenta com tanto esforço acertar as pronúncias que esquece da parte mais importante de seu trabalho: atuar. Ele não consegue dizer nada com naturalidade, e isso prejudica a carga dramática de qualquer momento no qual esteja presente. Até mesmo sua primeira cena, que serve apenas para informar o espectador de detalhes da trama, sofre com a dificuldade de Reeves de dizer até mesmo frases simples como “Of course, sir”.

Após se despedir de sua noiva Mina (Winona Ryder), Harker... ok, você deve estar confuso. Winona Ryder interpreta tanto a Elisabeta do prólogo quanto Mina. Anthony Hopkins, previamente o líder dos sacerdotes, também ressurgirá como Van Helsing. Já chegaremos nisso. Enfim, Harker se despede de sua futura noiva Mina e embarca em um trem para a Transilvânia, onde fechará em pessoa a compra dos imóveis por parte do conde Drácula. No caminho, Harker escreve em seu diário, e infelizmente o texto é narrado por Reeves. O ator pronuncia cada sílaba com tanto cuidado que parece estar lendo para um maternal, entonação que torna-se ainda mais problemática considerando que, ao longo de toda a cena, Coppola está tentando construir uma atmosfera de suspense. “Construir” é até uma palavra sutil demais; o cineasta deixa o céu inteiro vermelho-sangue e superimpõe os olhos malignos de Drácula sobre as nuvens. Não satisfeito, Coppola recorre aos poderes canastrões de Gary Oldman, um ator genuinamente brilhante, mas propenso a níveis Nicolas Cage de overacting: Harker pega uma carta enviada por Drácula e começa a lê-la. Desta vez, é Oldman que narra o texto, e a malevolência com que diz cada palavra é tão exagerada que o ator emprega um tom ameaçador até mesmo ao ler a letra “D”. Não o “D” de uma palavra qualquer; literalmente a letra “D”.

Após chegar à Transilvânia, Harker é buscado por uma sombria carruagem cujo guia tem óbvios poderes mágicos. A jornada inteira é repleta de acontecimentos sobrenaturais que seriam eficazes se não fosse pela presença de um Reeves que parece ter sido maquiado com Super Bonder. O rosto dele permanece impassível não importa o que aconteça; o hábito irritante do ator de manter os lábios entreabertos – já visto em tantos outros de seus filmes – está ausente justo quando teria sido uma boa ideia.

Quando Harker finalmente chega ao castelo, Drácula se apresenta; sua sombra se move independente dele, mas Harker, claro, não parece ver nada de preocupante nisso. Temos aí o erro clássico de não criar uma sincronia entre espectador e personagem. Para nós, é dolorosamente óbvio que Drácula é perigoso e imprevisível, mas Harker parece genuinamente não perceber isso. Coppola enche cada cena com elementos sobrenaturais e sombrios, mas Harker se comporta como Leslie Nielsen, completamente alheio aos absurdos à sua volta.

Essa atitude não muda quando Drácula, segundos depois, o ameaça com uma espada por rir de um assunto inapropriado. Como já mencionei mais cedo, Oldman diz “It is no laughing matter!” ("Não há motivo para riso!") com uma ênfase hilária na última sílaba, e também diz a frase seguinte, “We draculs have a right to be proud!” ("Nós draculs temos o direito de nos orgulhar!"), com uma cadência tão rápida que soa como “Wedraculshavearighttobeproud!”.

Existe um termo em inglês chamado “chewing the scenery” (leia-se: “devorar o cenário”) que se refere a um ator se entregando ao exagero, ao overacting. Em Drácula, Oldman abre uma cadeia de restaurantes com o cenário. Não há nada que ele faça sem algum nível de exagero. E isso contracenando com Reeves, que cria um contraste hilário ao não fazer nenhuma expressão facial. É como se Oldman tivesse percebido e tentado compensar fazendo todas.

Enquanto isso, Coppola continua fascinado com a ideia de fazer a sombra de Drácula se mover independentemente deste, e portanto, faz com que isso aconteça o tempo todo. É uma distração constante, e no contexto da atuação de Oldman, eu não pude deixar de achar engraçado; é como se nem a sombra do ator conseguisse acompanhar a intensidade de sua canastrice.

Há acertos aqui e ali. Ao fechar a compra dos imóveis, Drácula vê uma foto de Mina e percebe a semelhança entre ela e sua falecida amada. A discreta lágrima que escapa dele é comovente, e a sombra de Drácula traindo as intenções deste e mostrando hostilidade a Harker também é um bom toque. É um dos pouquíssimos momentos de interação entre os dois personagens que parece se adequar ao tom de ameaça que o filme quer evocar. Mas Coppola volta a fracassar nisso antes mesmo que a cena acabe: percebendo sua chance de recuperar algum vestígio de seu amor perdido, Drácula insiste que Harker permaneça como convidado em seu castelo por um mês. O personagem estranha o pedido, mas aceita, e Coppola faz com que Drácula saia de cena de forma tão desnecessariamente espalhafatosa que é impossível continuar levando-o a sério.

Voltamos para Londres a fim de desenvolver Mina para o espectador. Aprendemos que ela e Harker são pobres (o que não é fácil de deduzir, já que o figurino da Inglaterra vitoriana faz todo mundo parecer um bilionário), e que a melhor amiga de Mina, Lucy (Sadie Frost), é uma jovem rica, bonita e sexualmente despudorada. Ela se comporta de forma abertamente provocante com seus três pretendentes, o Dr. Jack Seward (Richard E. Grant), o lorde Arthur (Cary Elwes) e o texano Quincey (Billy Campbell). Mina diz ter inveja de Lucy, que gostaria de ser tão bonita e adorada como ela. Coppola, sutil como sempre, conclui isso com a sombra de Drácula cobrindo Mina e o rosto pálido e sem vida do personagem surgindo da escuridão para indicar seu perigoso interesse pela moça. Essa sequência toda não parece muito interessante no papel, mas não se preocupe: também não é no filme, e não levará a absolutamente nada de valor ao longo de toda a projeção.

O exagero se mantém na cena seguinte, na qual voltamos ao manicômio onde está internado o insano Renfield. Aqui Tom Waits começa a se soltar, adotando a voz e os trejeitos que possivelmente viriam a inspirar Andy Serkis como o Gollum de O Senhor dos Anéis. Renfield e o Dr. Seward conversam de forma relativamente comedida a princípio, mas logo Renfield começa a implorar por um gatinho e os atores começam a gritar um com o outro e Renfield morde Seward e por aí vai. O conteúdo da conversa faz menção a Drácula como sendo o “mestre” de Renfield mas, acredite, isso não afetará a trama do filme em absolutamente nada. Só menciono a cena porque é bizarra demais para ser ignorada.

Voltamos ao castelo de Drácula. O que vem a seguir implora por uma descrição detalhada:

Harker se barbeia diante de um espelho. Uma mão toca seu ombro. Ele se sobressalta, causando um pequeno corte em seu pescoço, e ao virar- se vê Drácula longe de si, na porta da sala.

Harker sorri afavelmente. “Não ouvi você entrar”, diz o mongol, deixando pra lá o fato de que a mão do conde o tocou a dez metros de distância. Em seguida, Drácula vai até ele literalmente deslizando pelo chão como se estivesse de patins, um efeito que só se torna mais engraçado por tentar ser perturbador.

Harker não nota.

“Cuidado pra não se cortar”, diz Drácula, “é mais perigoso do que você pensa”. Harker vira para se olhar no espelho e percebe que Drácula não está refletido nele. Notando isso, o conde apressadamente cobre o próprio rosto e o espelho se estilhaça.

Harker parece achar isso meramente curioso.

Mais curioso ainda, para o espectador, é Drácula subitamente se importar em ser descoberto. O personagem chegou na sala tocando

Sobre o autor:

É primariamente escritor e autor da tira em quadrinhos PITCH BLACK. Sua experiência com técnicas narrativas e cinematográficas vem do estudo téorico e da prática, tendo trabalhado como videomaker por vários anos. Também fez cursos com um tal de Pablo Villaça.

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