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Festival de Cannes 2016 - Dia 03 Festivais e Mostras

Ma Loute, de Bruno Dumont

O novo filme de Bruno Dumont, Ma Loute, é uma comédia farsesco-fabulesca que, através da estilização dos personagens, do design de produção e dos figurinos, tenta fazer várias coisas ao mesmo tempo (o que é admirável) sem jamais conseguir realizar qualquer delas com eficiência (o que é lamentável).

Ambientado em uma pequena comunidade litorânea francesa na década de 30, o roteiro de do próprio Dumont acompanha vários núcleos de ação: aqui, seguimos a família Van Peteghem, composta pelos aristocratas André (Fabrice Luchini), Isabelle (Valeria Bruni Tedeschi) e Aude (Juliette Binoche); ali, vemos dois policiais que investigam uma série de desaparecimentos; acolá, testemunhamos os responsáveis pelos crimes, a família Brufort, que captura turistas para devorá-los; e, finalmente, somos apresentados à jovem Billie (Raph), que veste-se com roupas masculinas e desenvolve um surpreendente interesse pelo personagem-título, integrante da família de canibais.

Fotografado com cores intensas e alegres, Ma Loute não esconde sua proposta de combinar componentes fantásticos a temas socialmente relevantes – e já de início, quando vemos os Van Peteghem apontando para os Brufort como se estes fossem curiosidades da geografia, Dumont deixa claro que um dos propósitos da narrativa será ressaltar os eternos conflitos de classe (e tampouco é coincidência que os locais matem a fome com a carne dos turistas ricos). Além disso, o filme realmente mantém um equilíbrio eficiente entre o humor e a crítica social em seu primeiro ato, provocando risos especialmente com as gags físicas e com a composição dos personagens.

Aliás, se há algo que jamais desaponta aqui é o elenco: Luchini (tão fantástico em Courted, que vi em Tribeca) transforma o esnobe André em uma coleção grotesca de maneirismos e caretas, conseguindo manter sua composição interessante durante as duas horas de projeção, ao passo que Raph, como a jovem Billie, se contrapõe bem aos excessos dos companheiros ao ilustrar a natureza transgênero de seu personagem (e se uso ambos os gêneros ao me referir a ele/ela é porque Billie constantemente oscila entre identidades, mostrando-se confortável em ambas). Já Juliette Binoche, embora divirta inicialmente, acaba perdendo a mão a partir do terceiro ato, quando o exagero de suas caretas se torna apenas cansativa.

Enquanto isso, boa parte dos demais intérpretes fascinam já com seus rostos marcantes e atípicos, de Brandon Lavieville (como Ma Loute) a Didier Desprès e Cyril Rigaux (como os investigadores Machin e Malfoy, que surgem como referências claras a Oliver Hardy e Stan Laurel). Infelizmente, se a princípio é até divertido notar a dificuldade com que o chefe Machin se locomove (ele vai inchando de frustração por não resolver os casos, algo que o design sonoro ressalta ao acompanhar seus movimentos com os ruídos que remetem à borracha de um balão), aos poucos a gag vai se revelando repetitiva até tornar-se apenas cansativa e constrangedora.

Para piorar, Ma Loute ainda tenta fazer humor com temas como incesto (não, pior: com o abuso sexual que a personagem de Binoche aparentemente sofreu por parte do pai e do irmão) e violência contra transgêneros. E quando chegamos a este ponto, o filme definitivamente já perdeu a graça há muito tempo.

 

Uchenik, de Kirill Serebrennikov

Considerando como os fundamentalistas religiosos adoram dizer que vivemos num mundo dominado pelo “politicamente correto”, que não permite que minorias sejam “criticadas” (leia-se: ofendidas e massacradas), não deixa de ser curioso como estas mesmas pessoas são extremamente rápidas ao berrar contra a “intolerância religiosa” sempre que têm seus credos postos em xeque. Infelizmente, esta é uma estratégia eficaz que frequentemente confere privilégios absurdos a qualquer um que alegue estar agindo por motivos religiosos – e, não por coincidência, recentemente um promotor público foi inocentado da acusação de torturar a esposa e mantê-la em cárcere privado quando sua advogada argumentou que puni-lo seria restringir sua “liberdade religiosa”(!).

Pois este é o tema central de Uchenik, produção russa escrita e dirigida por Kirill Serebrennikov a partir da peça de Marius von Mayenburg. Girando em torno de um estudante do ensino médio que se torna um cristão fundamentalista e passa a influenciar as políticas da escola, o filme se concentra nos conflitos entre o rapaz (Pyotr Skvortsov) e sua professora de Biologia (Viktoriya Isakova), que vê com frustração crescente as mudanças conservadoras despertadas pelas chantagens do aluno.

Já de cara, claro, o sexismo mostra as caras quando as alunas são obrigadas a trocar biquínis por maiôs durante as aulas de natação, já que a obsessão/vergonha que a maior parte das religiões possui com relação ao corpo feminino – aliás, com o próprio conceito de feminilidade – é notória (sintomaticamente, os alunos do sexo masculino continuam com permissão para vestir o que quiserem). Aos poucos, a retórica do estudante começa a refletir cada vez mais a violência e a intolerância presentes na Bíblia e que o longa faz questão de comprovar ao incluir como legenda, na tela, cada um dos versículos citados durante a projeção.

Hábil ao levar o espectador a sentir as limitações cada vez maiores impostas pelo colégio, o diretor muitas vezes recorre a alterações sutis para evocá-las, como, por exemplo, ao subitamente colocar raias delimitando os espaços na piscina depois que o código de vestuário é alterado, o que ilustra a perda da liberdade coletiva – e tampouco é coincidência o fato de o protagonista vestir roupas com um preto sufocante na maior parte do tempo. Além disso, ao frequentemente levar o público a observar a ação a partir do ponto de vista da professora, Uchenik permite que constatemos como esta parece experimentar terrível sensação de ser a única pessoa sã em um hospício controlado pelos loucos.

Não que a obra seja necessariamente anti-religião, pois não é; em vez disso, pontua como o extremismo é destrutivo e, principalmente, como os credos particulares de cada um podem ser abraçados desde que não se imponham aos demais, saindo dos templos e igrejas com o objetivo de determinar as regras de funcionamento da sociedade como um todo (como, por exemplo, ao pressionar as escolas a ensinarem o criacionismo como uma “alternativa” à Teoria da Evolução). Para completar, o filme é eficiente ao demonstrar como constantemente aqueles que defendem a razão acabam sendo acusados de “dogmáticos” precisamente por aqueles que oferecem, como resposta a tudo, apenas sua própria fé.

Com isso, Uchenik se apresenta como uma obra adulta, inteligente e corajosa – e o simples fato de dizer o óbvio é encarado como um ato de coragem ainda em 2016 é algo triste por si mesmo.

 

A Dançarina, de Stéphanie Di Giusto

Quando saí da sessão de A Dançarina, comentei no Snapchat (@pablovillaca) que me sentia envergonhado por nunca ter ouvido falar de Loïe Fuller, que dá título ao filme. Pois eu estava errado: Fuller foi tão marcante que não só eu já havia visto sua performance como ainda a comento em meu curso A Arte do Filme ao falar da técnica de colorização manual (ela é o foco de Dança Serpentina, que os irmãos Lumière rodaram em 1897). Ainda assim, é lamentável que eu não conhecesse sua fascinante história.

Não que o filme inspirado em sua vida faça jus a esta: burocrático em sua estrutura e mergulhando em clichês melodramáticos que transformam certas sequências (principalmente o clímax) em momentos embaraçosos, A Dançarina traz a cantora e atriz francesa Soko como Fuller numa interpretação que se solidifica como um dos pontos altos da produção. Começando a acompanhar a garota quando esta ainda morava nos Estados Unidos com o pai francês, o roteiro de Sarah Thibau e da diretora estreante Stéphanie Di Giusto (baseado no livro de Giovanni Lista) revela como o fantástico conceito criado pela protagonista foi criado e desenvolvido e é especialmente eficaz ao recriar o rigoroso treinamento feito por esta para se manter preparada para os extenuantes números que apresentava.

Infelizmente, é justamente neste detalhe crucial que a inexperiência da diretora acaba cobrando um preço alto, já que sua decisão de rodar as danças primordialmente em planos fechados que se concentram no rosto da personagem acaba por sacrificar o impacto que as coreografias em si provocariam – e num dos únicos momentos nos quais temos a chance de ver a apresentação o resultado é impressionante. (Aliás, Di Giusto comete este erro até mesmo na dança que deveria servir como culminância do trabalho de anos da biografada, o que é imperdoável.)

Trazendo Lily-Rose Melody Depp (filha de Johnny Depp e Vanessa Paradis) numa pequena e eficiente participação como a garota que se torna o primeiro grande amor homossexual de Fuller, A Dançarina não é um desastre, mas é, no mínimo, uma oportunidade desperdiçada.

 

Toni Erdmann, Maren Ade

Winfried Conradi é um músico que, já há muito na meia-idade, mantém uma jovialidade invejável. Adepto de piadas e pegadinhas, ele vive sozinho com seu velho cão Willi, dá aulas de música para as crianças de uma escola próxima e faz visitas diárias à sua mãe adoentada. Divorciado há muitos anos, ele mantém uma relação cordial, mas fria com a filha Ines, que se mudou para a Romênia há algum tempo a fim de trabalhar no processo de transição de uma grande empresa que se prepara para terceirizar praticamente todos os seus postos de trabalho – e quando seu cãozinho morre, o sujeito decide visitá-la em Bucareste justamente quando ela se encontra em uma semana decisiva em seu emprego.

Funcionando como estudo de personagens, o roteiro escrito pela própria diretora Maren Ade é dotado de um senso de humor particular que faz jus a alguém que também atuou como produtora da divertida e estranha trilogia As Mil e Uma Noites, do divertido e estranho cineasta português Miguel Gomes. Aliás, é notável como Ade consegue sustentar a leveza do filme mesmo que este tenha 162 minutos de duração, algo pouco comum em comédias, que tendem a ser mais breves e ágeis.

Mas a abordagem vale a pena: construindo cuidadosamente a relação entre Ines e Winfried (que, a partir de certo ponto, assume a personalidade “alternativa” de Toni Erdmann a fim de tentar trazer alguma espontaneidade à vida da filha), o filme leva o público a realmente conhecer aquelas pessoas, o que permite que um simples abraço ganhe uma força dramática inesperada – e contribui para isto as performances de Peter Simonischek e Sandra Hüller, que criam uma dinâmica soberba entre seus personagens (e eu não me espantaria caso um deles levasse o prêmio de Ator/Atriz em Cannes).

Especialmente surpreendente em seu ato final, quando traz uma festa de aniversário que desenrola de uma maneira hilária e inesperada, Toni Erdmann talvez não consiga atingir a profundidade filosófica que almeja, mas merece pontos por ao menos fazer as perguntas certas.

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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