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Festival de Cannes 2016 - Dia 04 Festivais e Mostras

Ao trabalho:

Fuchi ni tatsu, de Kôji Fukada

A premissa não é das mais originais: uma família tem sua dinâmica alterada quando passa a dividir o teto com um estranho. A questão é a maneira como esta premissa é desenvolvida e, na maior parte do tempo, o japonês Fuchi ni tatsu faz um trabalho correto neste aspecto.

O “estranho”, aqui, é um antigo amigo que, depois de passar anos preso por homicídio, pede emprego e morada por algumas semanas até conseguir se reerguer – e se inicialmente sua presença é vista com relutância por Akié (Mariko Tsutsui), que não compreende por que o marido se mostra tão solícito com alguém que não vê há tanto tempo, logo é ela quem se mostra interessada no recém-chegado, que, além de arrependido pelo crime que cometeu, é bastante gentil com a filha do casal. No entanto, chega um momento em que tudo sai do controle e uma tragédia ocorre, marcando todos os envolvidos.

E é aí que o longa começa a se perder ao incluir uma elipse de oito anos que, em vez de reposicionar as peças da história, apenas perde o interesse por elas, introduzindo um novo personagem cuja origem parece saída de uma telenovela e falhando em desenvolver os elementos dramáticos construídos na primeira metade da projeção.

Assim, quando o supostamente “impactante” desfecho surge na tela, o efeito é mais de um profundo anticlímax do que a de algo que mereça ser lembrado após a sessão, comprometendo, em retrospecto, boa parte do que viera antes.

 

The Transfiguration, de Michael O’Shea

Um Estranho Vampiro é um filme de 1988, protagonizado por Nicolas Cage, que me veio seguidas vezes à mente ao assistir a The Transfiguration, produção independente norte-americana. Naquele longa como neste, um jovem convencido de que é um vampiro age de maneira cada vez mais errática, despencando num abismo psicológico com consequências inalteráveis.

A comparação, como talvez possam imaginar, não é das mais lisonjeiras; porém, se o anterior contava com a vantagem de trazer Cage em uma de suas performances cageanas ainda em processo de formação, este filme escrito e dirigido pelo estreante Michael O’Shea merece créditos ao buscar investigar com autêntica curiosidade as motivações do tímido Milo (Eric Ruffin, numa performance cuja inexpressividade, proposital ou não, serve perfeitamente ao personagem). Afetado pelo suicídio da mãe e constantemente agredido pelos criminosos de sua vizinhança, ele demonstra verdadeira obsessão com filmes sobre vampiros, chegando ao ponto de, de tempos em tempos, cometer assassinatos e beber o sangue das vítimas.

Contudo, se isto pode sugerir um protagonista detestável, a realidade é que O’Shea leva o espectador a simpatizar com sua situação de extrema vulnerabilidade, o que nos mantém presos à trama mesmo que seu ritmo peque pela irregularidade. O problema é que, depois de chamar nossa atenção para Milo e seu estranho dilema, o roteiro não sabe o que fazer com ele e, assim, quando o filme chega ao fim a sensação é a de que, no fim das contas, o cineasta decidiu encerrá-lo de qualquer forma por não saber como continuar.

 

American Honey, de Andrea Arnold

A cineasta britânica Andrea Arnold já provou ter um olhar delicado e complexo ao retratar personagens femininas – um olhar que ela reafirma neste seu novo trabalho, American Honey, que acompanha uma garota, Star (a estreante Sasha Lane, excelente), que se encontra presa a um cotidiano opressivo que envolve buscar comida no lixo e se submeter ao namorado que agora detesta. Certo dia, ela é abordada por um estranho, Jake (Shia LaBeouf), que a convida a se juntar a um grupo de jovens que percorrem o país numa van enquanto vendem assinaturas de revista de porta em porta.

Rodado numa razão de aspecto reduzida que reflete a falta de horizontes na vida de Star (aliás, que nome tristemente irônico), o filme é estruturado pela diretora como um road movie que, no lugar de uma trama, dedica-se a retratar a dinâmica entre aqueles personagens e seu cotidiano superficialmente festivo mas profundamente deprimente. Aliás, a narrativa é tão frouxa que, embora Arnold assine o roteiro, eu ficaria surpreso caso este tivesse algo mais do que uma linha geral, já que traz todos os sinais de ter sido desenvolvido ao longo das filmagens a partir de improvisos com o elenco.

Outro indício disto, diga-se de passagem, reside nos personagens secundários (quase figurantes) que cruzam o caminho da protagonista e que são vividos por não-atores (uma das exceções é a pequena participação do sempre memorável Will Patton), o que confere uma autenticidade inquestionável ao projeto.

Mas autenticidade não significa necessariamente força dramática – e a falta de planejamento da trama se une a uma terrível autoindulgência por parte da cineasta, que leva o público a atravessar desnecessários 162 minutos de projeção que frequentemente se limitam a mostrar o grupo ouvindo música e cantando durante a viagem. Além disso, o relacionamento nada saudável entre Star e Jake se torna irritantemente repetitivo a partir de certo ponto, mesmo contando com entrega absoluta por parte dos atores.

Povoado por uma galeria de figuras insuportáveis (e nisto incluo, em última análise, a própria protagonista), American Honey é um tropeço na carreira de Andrea Arnold, mas não um desastre completo. Só espero que ela tenha um pouco mais de disciplina da próxima vez.

 

Mademoiselle (Ah-ga-ssi), de Chan-wook Park

A trilogia da vingança do sul-coreano Chan-wook Park apresentou para o mundo um talento que já havia despontado no ótimo Zona de Risco e que viria a ser confirmado nos posteriores Sede de Sangue e Segredo de Sangue. E, agora, neste fabuloso Mademoiselle, que combina os melhores aspectos da sensibilidade do cineasta: sua elegância estética, seu senso de humor sombrio, seu interesse pelo desejo sexual como força incontrolável e, claro, sua obsessão por personagens ambíguos que são mestres em guardar rancor e em vingança.

Escrito pelo diretor ao lado de Seo-Kyung Chung a partir do livro de Sarah Waters, este novo longa gira em torno do triângulo amoroso formado pela batedora de carteiras Sook-hee (Kim Tae-ri), pelo trapaceiro “Conde” Fujiwara (Ha Jung-woo) e pela rica Lady Hideko (Kim Min-hee). Quando a projeção tem início, os dois primeiros estão se unindo para aplicar um golpe nesta última – um plano que se torna frustrado quando as duas mulheres se apaixonam.

Com isso, Mademoiselle adiciona o componente de thriller erótico à mistura da narrativa, permitindo que o cineasta dê vazão aos seus mais do que conhecidos fetiches sem que isto jamais pareça mera exploração dos corpos das atrizes, já que as cenas de sexo são encenadas com imensa sensualidade, mas também com um apuro plástico que deixa óbvio o interesse de Park em lidar com o tema de maneira adulta e elaborada. Aliás, se há algo que não falta nesta obra são planos memoráveis, desde aquele que traz Sook-hee e o Conde conversando sob um túnel formado por árvores secas (que refletem a frieza do que planejam) até outro no qual vemos o Conde e Lady Hideko se beijando em um bosque, quando o contraste entre as cores do quimono da moça e das roupas do sujeito é belíssimo por si.

Ambicioso também em seu design de produção, que faz uma excepcional recriação de época enquanto reflete em cada ambiente a personalidade de seus ocupantes (como o quarto de Hideko, que é amplo sem ostentar luxo, e a biblioteca de seu tio Kouzuki (Cho Jin-woong), que faz questão de fazê-lo). Além disso, a lógica visual, no que diz respeito às cores, acompanha a estrutura surpreendente do roteiro – e é particularmente prazeiroso perceber como o roxo que cobre Hideko em dois momentos adquire novos significado a cada vez que os revemos depois de novas descobertas (primeiro, simbolizando sua própria destruição; em seguida, a de outra pessoa; finalmente, a de um terceiro personagem).

E já que mencionei a estrutura narrativa do longa, é bom ressaltar como o diretor é hábil ao levar o espectador a se identificar com os pontos de vista de Sook-hee e de Hideko com eficácia a partir do uso de diferentes off e mesmo de câmeras subjetivas que nos transportam para o olhar de cada uma dependendo do ponto da trama no qual nos encontramos. Contribui para esta identificação, como não poderia deixar de ser, as performances corajosas e viscerais das duas atrizes, que percorrem trajetos emocionais e psicológicos que, mesmo surpreendentes, jamais soam falsos).

Tropeçando levemente em seus dois minutos finais – os únicos que correm o risco de parecer pura exploração -, Mademoiselle é, ainda assim, um filme que faz jus à filmografia de Chan-wook Park.

 

O Bom Gigante Amigo, de Steven Spielberg

Ah, Spielberg, Spielberg, Spielberg... Quando lembro que Caçadores da Arca Perdida e E.T. foram dois dos filmes que ajudaram a solidificar meu amor pelo Cinema e os comparo com os trabalhos que o cineasta vem fazendo nos últimos anos, a decepção só não é maior do que a tristeza. Porém, por mais que eu tenha considerado Indiana Jones e a Caveira de Cristal, Cavalo de Guerra e Lincoln fraquíssimos (Ponte dos Espiões é razoável), ao menos neste período o diretor comandou o excelente As Aventuras de Tintim – num indício de que ao menos seu talento para a fantasia e o lúdico persistiam. Pois depois de assistir a O Bom Gigante Amigo, parece que nada sobrou do antigo autor.

Baseado no livro de Roald Dahl e roteirizado por Melissa Mathison (justamente a responsável por E.T.), o filme é uma fábula sobre a garotinha Sophie (a estreante Ruby Barnhill), que, órfã, certa madrugada surpreende um gigante (Mark Rylance) caminhando pelas ruas de Londres e é sequestrada por este e levada para o País dos Gigantes. Aos poucos, os dois vão se tornando amigos e a menina descobre que o BGA (Bom Gigante Amigo) tem, como hobby, capturar sonhos e pesadelos e guardá-los em garrafas a fim de misturá-los e “implantá-los” no sono de outras pessoas quando necessário. Porém, quando os conterrâneos do personagem-título ameaçam devorar Sophie, a dupla decide encontrar uma solução para o problema.

Prejudicado já de imediato pela absoluta falta de estrutura do roteiro, que parece mais saltar bruscamente de um incidente a outro em vez de enxergar o arco geral da história, o longa é tão falho neste sentido que comete o erro básico de introduzir personagens importantes só a partir da segunda metade da projeção, tentando disfarçar o problema, por exemplo, ao buscar criar uma ligação imediata entre Sophie e Mary (Rebecca Hall), que, minutos depois de se conhecerem, já aparecem trocando olhares cúmplices como se fossem velhas amigas. Além disso, a tentativa de criar conflitos dramáticos beira o desespero quando, em determinada sequência, o BGA decide devolver Sophie ao orfanato sob os protestos desta apenas para, segundos depois, ser levado a voltar atrás e expor a inutilidade de toda a passagem.

Aliás, O Bom Gigante Amigo é repleto de momentos como este – e quando duas luzes surgem “brigando” subitamente (uma representa um sonho; a outra, um pesadelo), o longa espera que sintamos alguma emoção qualquer (tensão? Encantamento? Surpresa? Divertimento?) como se aquilo representasse um ponto alto da narrativa – quando, de fato, soa simplesmente como uma bobagem sem propósito incluída apenas para inchar o tempo de projeção. O mesmo, vale apontar, pode ser dita sobre outra extensa cena que se concentra em mostrar o BGA sendo servido por vários humanos: durando longos minutos, o incidente obviamente julga divertidíssimo ver aquelas pessoas usando escadas para alcançar a mesa e regadores como bules de café – e, como não poderia deixar de ser, Spielberg inclui vários closes nos quais vemos Sophie fazendo caretas diante das gafes do amigo ou sinalizando para que este se comporte apropriadamente, aparentemente não percebendo que estes planos de reação soam apenas tolos e sem graça. (E prefiro nem comentar o “clímax” da cena, que envolve uma bebida que provoca gases e... não; como falei, é melhor nem lembrar.)

Claro que tecnicamente o projeto impressiona: a fotografia de Janusz Kaminski carrega nas cores intensas que ressaltam a atmosfera fabulesca e o design do gigante e sua animação a partir do motion capture são irrepreensíveis (especialmente o olhar gentil da criatura – que, tenho certeza, traz elementos inspirados no de Robin Williams). Por outro lado, Spielberg exagera absurdamente na utilização de uma de suas marcas registradas, o travelling que se aproxima do rosto dos personagens enquanto estes trazem um facho de luz sobre os olhos – um exagero que só é superado pelo da trilha sonora de John Williams, que, praticamente ininterrupta, faz questão de pontuar cada ação e emoção da narrativa.

Surpreendendo negativamente pela falta de vida com que conta uma história que deveria ser repleta de alegria, O Bom Gigante Amigo não é apenas um desapontamento; é, também, um dos piores filmes da carreira de seu diretor.

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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