Como vocês podem imaginar, não é fácil, para um site independente como o Cinema em Cena, poder cobrir eventos importantes ao redor do mundo. Geralmente arcamos sozinhos com todos os custos envolvidos nos trabalhos feitos em festivais como os de Berlim, Tribeca e Cannes – e, assim, é fundamental quando nossas iniciativas recebem algum tipo de apoio cultural. Portanto, faço questão de agradecer mais uma vez ao apoio logístico que recebemos da LATAM Airlines Brasil. Se vocês estão curtindo a cobertura do Festiva de Cannes de 2016, parte dos créditos certamente pertence a ela.
E por falar em cobertura, vamos aos filmes do quinto dia:
Mal de pierres, de Nicole Garcia
Gabrielle é uma mulher tomada pelo desejo. Vivendo em um pequeno vilarejo francês no período logo após a Segunda Guerra, ela molha o sexo num lago próximo para explorar suas sensações, declara-se para um professor de literatura da escola local (casado e com a esposa grávida) e entra em desespero ao ser rejeitada por este. Transformando-se em um embaraço para sua família católica (lembrem-se: o desejo feminino é sempre um pecado para boa parte das religiões), ela é praticamente oferecida pela mãe em casamento a um trabalhador braçal das redondezas – e o que a velha senhora não admite é que, na verdade, está negociando um pênis de forma “decente” para a filha.
Mas o tesão de Gabrielle (Marion Cotillard) não é indiscriminado: se o professor a excitava, o novo marido, José (Alex Brendemühl), lhe provoca apenas indiferença, por mais gentil e compreensivo que seja (e é também um homem bonito, diga-se de passagem). É então que ela é internada em um spa para curar seus cálculos renais e acaba conhecendo o tenente André Sauvage (Louis Garrel), que se encontra gravemente enfermo – e o clichê do “bravo-soldado-vulnerável-e-à-beira-da-morte” é forte demais para que ela resista.
Felizmente, o roteiro escrito pela diretora Nicole Garcia ao lado de Jacques Fieschi – e baseado em livro de Milena Agus – não tem interesse em criar uma protagonista unidimensional, já que Gabrielle, embora seja certamente vítima de um conservadorismo que transforma sua sexualidade natural em fonte de neuroses e culpa, é também uma mulher egoísta e mesmo cruel na maneira como lida com o marido. Não que ela tenha qualquer obrigação de amá-lo ou de ir para a cama com ele apenas como agradecimento por sua gentileza (uma realidade que, vale apontar, muitos homens parecem ignorar), mas seu excesso de sinceridade ultrapassa o limite da honestidade e se torna mero sadismo, ainda que sua química com José não se equipare com aquela estabelecida com André (algo que o filme ressalta ao retratar a cena de sexo entre marido e esposa como um evento rápido e mecânico, ao passo que as transas com o tenente têm direito a montagem com trilha sonora de cordas).
Liderado por uma Marion Cotillard inspirada que não demonstra medo em abraçar os lados mais negativos da personagem, o elenco de Mal de pierres (o título em inglês é From the Land of the Moon) traz força e complexidade às suas performances: se Brendemühl equilibra-se entre a placidez e a frustração sofrida, Garrel encarna o amante idealizado fundamental para que a atração de Gabrielle seja compreendida.
Arrematado com uma reviravolta que talvez afaste alguns espectadores (confesso que mesmo julgando-a absurda e pouco original achei que amarra bem a trama), este drama alcança uma qualidade que no papel provavelmente soava difícil, mas que na tela é envolvente e tocante.
Câini, de Bogdan Mirica
Há uma similaridade curiosa entre os planos iniciais da produção romena Câini (Cães) e do Veludo Azul de David Lynch: em ambos, percorremos a superfície verde de um terreno até chegarmos a um ponto que revela a podridão e a violência que escondem sob a terra. Aqui, porém, estes aspectos assustadores se disfarçam de uma forma que era impossível ao Frank Booth de Dennis Hopper, já que a própria distância do território que abriga a narrativa se encarrega de evitar qualquer exposição maior.
Escrito e dirigido pelo estreante Bogdan Mirica, o longa tem início quando Roman (Dragos Bucur) viaja para uma região afastada na qual herdou uma imensa propriedade de um avô que mal conheceu. Determinado a vendê-la, ele logo percebe que há implicações inesperadas em sua decisão, já que aparentemente o avô era um temido chefe do crime que usava as características geográficas da fazenda para transportar drogas e dar um fim aos corpos de seus inimigos – e os integrantes remanescentes da gangue, agora liderados por Samir (Vlad Ivanov, que também estava em Toni Erdmann, exibido na mostra competitiva), ameaçam a própria existência do rapaz enquanto são investigados pelo velho policial Hogas (Gheorghe Visu), que se encontra em fase terminal de câncer.
Embora a breve descrição acima pareça sugerir uma história tensa e pontuada pela violência, Câini é conduzido por seu diretor não como um suspense policial, mas como um drama existencial que prefere focar nas visões de mundo de seus personagens solitários e introspectivos. Assim, ao longo da projeção acompanhamos longas cenas nas quais aqueles indivíduos se entregam a monólogos recitados com uma lentidão que provoca melancolia, mas também certo tédio – algo que Mirica tenta compensar através de explosões súbitas de violência e de algumas passagens que divertem pelo tom quase surreal (como aquela, por exemplo, na qual vemos Hogas, num plano extenso e sem cortes, investigando com um garfo o pé amputado que alguém descobriu no pântano).
Soando às vezes como um western dirigido por Bergman, Câini é uma obra pessimista (ou realista, dependendo da visão de mundo do espectador) que acredita que todos somos capazes de atacar como cães raivosos – e que a cadela que acompanha o protagonista se chame Polícia é apenas uma ironia final e mordaz.
Me’ever laharim vehagvaot (Beyond the Mountains and Hills), de Eran Kolirin
Durante os 15 primeiros minutos de Beyond the Mountains and Hills, somos apresentados a David Greenbaum (Alon Pdut), um oficial do exército israelense que, retornando à vida civil, enfrenta dificuldades para se adaptar e arranjar um emprego –e, claro, naturalmente presumimos que o tema do longa será este processo e, possivelmente, a relação de David com a questão palestina agora que sua filha Yifat (Mili Eshet) tem participado de manifestações pró-árabes.
E, convenhamos, este já seria um tópico mais do que suficiente para um longo de pouco mais de 90 minutos. No entanto, logo passamos a seguir também a esposa do protagonista, Rina (Shiree Nadav-Naor), que, professora do ensino médio, começa a manter um caso com um de seus alunos adolescentes – o que, por sua vez, nos leva ao filho mais velho do casal, Omri (Noam Imber), cujo temperamento explosivo o leva a tomar uma atitude com potenciais trágicos.
Com isso, se em um instante a obra busca retratar o preconceito contra árabes em Israel, no outro se concentra na inquietação sexual de uma esposa que se sente negligenciada e, em um terceiro, no dilema de uma jovem que quer enfrentar barreiras religiosas, mas é confrontada pelas próprias pré-concepções. Some a isto assassinatos acidentais, propositais, atos terroristas e terá uma salada de frutas cujo gosto jamais conseguimos sentir.
O surpreendente é que, ainda assim, a produção prende o público e o leva a se importar com seus personagens ainda que, depois de um tempo, já não sejamos mais capazes sequer de identificar o que ela quer discutir. A não ser, claro, que queira discutir justamente como uma única família pode ter tantos membros problemáticos.
Paterson, de Jim Jarmusch
Paterson é um filme melancólico sobre personagens melancólicos que levam existências melancólicas. Em outras palavras: é uma obra de Jim Jarmusch – e os fãs do cineasta encontrarão aqui todos os elementos que tornaram sua voz tão distinta entre os realizadores independentes norte-americanos.
Já de imediato, quando o fade in revela o casal Paterson (Adam Driver) e Laura (Golshifteh Farahani) despertando enquanto a legenda “Segunda-feira” surge na tela, a estrutura que será empregada para desenvolver a narrativa fica clara: iremos acompanhar uma semana na vida do personagem-título e os incidentes desta trajetória. Ou talvez “incidente” seja uma palavra forte demais, já que o roteiro do próprio Jarmusch demonstra muito mais interesse em seguir sua rotina comum do que em criar qualquer obstáculo dramático grandioso. Assim, ficamos ao lado de Paterson enquanto desperta sempre em torno do mesmo horário, mantém as mesmas conversas com seu supervisor, percorre a mesma rota com o ônibus que dirige, leva o cachorro para passear pelo mesmo caminho, bebe sua cerveja diária no mesmo bar e assim por diante.
Aliás, se há algo que caracteriza o sujeito é o fato de ser tão... comum – algo que o filme salienta ao observar que ele tem o mesmo nome não só da cidade em que mora, mas da linha de ônibus que conduz. Não à toa, o diretor emprega, como rima narrativa, a recorrência de diversos tipos de padrões no cotidiano do rapaz, das formas que sua esposa insiste em pintar nas cortinas, tapetes e cupcakes aos vários gêmeos que Paterson encontra ao longo da projeção. A única coisa a romper estas repetições é a paixão do motorista por poesia, o que o leva a a escrever seus próprios poemas em um pequeno caderno que sempre carrega e que despertam a admiração incondicional da esposa.
Admiração que provavelmente vem mais do amor que ela sente do que da qualidade do que o marido compõe. Por outro lado, a poesia parece desempenhar mais um exercício de sensibilidade para o protagonista do que um esforço artístico autêntico, já que seus versos são uma forma de buscar algum romantismo em seu dia-a-dia e mesmo de encontrar um sentido para sua vida tão banal – uma procura compartilhada por praticamente todos os demais personagens do longa: Laura tenta ser pintora e música country; um conhecido de infância se apresenta como ator; um estranho visto em uma lavanderia ensaia letras de rap e ao menos duas outras pessoas além de Paterson se identificam como poetas.
Que nenhum destes indivíduos seja especialmente talentoso é algo que não faz qualquer diferença.
O que importa é que tentam – e mesmo que o pouco de beleza que conseguem construir seja tão frágil a ponto de poder ser destruída numa única noite, o fundamental é que constatem que, prosaicos ou não, sempre haverá uma página em branco cheia de possibilidades.