Mais um dia que rendeu bastante aqui em Cannes - e aproveito, mais uma vez, para agradecer ao apoio da LATAM Airlines Brasil pelo apoio logístico na cobertura do festival.
Loving, de Jeff Nichols
Ao sair da primeira exibição pública de Loving, novo longa de Jeff Nichols (e seu segundo só em 2016, já que lançou também o ótimo Midnight Special), entreouvi algumas pessoas reclamando da “simplicidade” do filme, que teria sido dirigido no “piloto automático”. Eu não poderia discordar mais, já que não há nada de “simples” no que Nichols faz aqui. Sua abordagem é sóbria, o que é diferente; em vez de apostar em catarses artificiais que buscam lágrimas através de trilhas envolvendo violinos, ele busca uma construção gradual do drama em sua história, que, ao chegar no clímax, fez por merecer o impacto que provoca.
Escrito pelo próprio realizador, o projeto gira em torno de Richard e Mildred Loving (Joel Edgerton e Ruth Negga), um homem branco e uma mulher negra que, depois de se casarem na Virginia, nos Estados Unidos, são presos por infringirem as leis contra a miscigenação. Forçados a se declarem “culpados” para evitar uma pena maior, os Loving são forçados a abandonar o estado no qual foram criados e no qual suas famílias residem, tornando-se autênticos exilados em Washington. E quando esta história – real! – aconteceu: 1880? 1890? Não, há cerca de apenas 50 anos, já que, até 1967, alguns estados norte-americanos ainda consideravam ilegais as relações inter-raciais.
Esta é uma atrocidade histórica que Nichols ressalta visualmente de forma sutil quando, em certo momento, vemos uma corda ser atirada sobre o galho de uma árvore e imediatamente somos levados a pensar num dos inúmeros enforcamentos de negros promovidos pela Ku Klux Klan – e mesmo quando descobrimos que se trata apenas de uma brincadeira infantil, a realidade tão recente daqueles linchamentos permanece como uma lembrança pairando sobre a vida daquela família. De forma similar, o cineasta contrapõe o cotidiano de seus personagens no campo àquele que passam a viver na cidade quando, através do design de som, cria um contraste eficaz entre o silêncio do primeiro e as buzinas e ruídos do segundo, sugerindo o desconforto experimentado por Mildred em sua nova residência. Para completar, é notável como o design de produção de Chad Keith e a fotografia de Adam Stone evocam a tristeza do apartamento apertado em Washington, com suas camas amontadas no canto dos aposentos e as paredes com bolhas de ar sob a pintura, e o calor humano que, em contrapartida, é estabelecido pelas luzes quentes e a decoração da casa em Virginia.
Ancorado por duas atuações centrais admiráveis (que, aposto, serão bem lembradas no período de premiações), Loving permite a Joel Edgerton compor um tipo cujo visual, com cabelos louros curtíssimos e olhos claros, seria utilizado por nove em cada dez atores escalados para interpretar um supremacista branco, mas que aqui servem a um personagem gentil em sua essência e humilde por imposição econômica. Exibindo os dentes maltratados e mantendo a cabeça sempre abaixada ao conversar com qualquer pessoa em posição de autoridade, o Richard Loving de Edgerton é um homem introspectivo e intimidado pela vida, mas que revela muito amor pela esposa através de sua passividade habitual. Já Ruth Negga, como Mildred, percorre um arco dramático fascinante, iniciando a projeção como uma mulher amedrontada que gradualmente ganha determinação, revelando-se como o verdadeiro motor pela luta do casal contra a repugnante lei de seu estado natal. (Para completar, Michael Shannon – não seria um filme de Jeff Nichols sem ele – faz uma pequena e boa participação como o fotógrafo da revista “Life” que tirou os famosos retratos do casal, demonstrando, em poucos minutos, como o sujeito conseguiu deixá-los suficientemente à vontade para que posassem com tanta naturalidade.)
Evitando o erro autocongratulatório clássico de Hollywood (vide o pavoroso Histórias Cruzadas), que adora fazer filmes sobre racismo protagonizado por brancos corajosos que saem em defesa dos negros indefesos, Loving traz, como seu centro, o amor daquele casal, deixando claro, também, o papel instrumental de Mildred no processo – além de apontar que, embora sofrendo por amar a esposa, Richard ainda contava com muitos dos demais privilégios da raça branca.
Expressando assombro ao constatar como a história que conta é recente, o longa não precisa fazer pregações para questionar o óbvio: como leis como esta podem ter vigorado tanto? Qual seria o dano, para o Estado, de permitir o casamento entre duas pessoas? (Questões que podem ser feitas, hoje, em relação aos direitos LGBT, por sinal, comprovando que custamos a evoluir como sociedade.) Pois o fato é que não há como interromper o avanço da História; mesmo que figuras como Richard e Mildred sejam naturalmente vulneráveis e detestem confronto, quando a injustiça é grande demais há um momento em que até o indivíduo mais fraco diz “Chega!”.
E que, neste caso específico, o sobrenome do casal seja “Loving” é algo que só posso interpretar como sendo a História piscando um olho para a Humanidade.
Cinema Novo, de Eryk Rocha
Em certo momento de Cinema Novo, documentário sobre o movimento hipônimo, o cineasta Leon Hirszman surge em uma entrevista concedida na década de 80 explicando que um dos maiores problemas do Cinema brasileiro residia na distribuição/exibição. Infelizmente, esta é uma das muitas declarações presentes no filme que, feitas há décadas, poderiam ter sido ditas hoje.
Aliás, em muitos casos, as comparações são desfavoráveis aos nossos dias: se antes havia uma distribuidora como a DiFilme, por exemplo, que cuidava de boa parte dos longas nacionais, dedicando-se ao máximo a cada um, hoje a situação é a de cada um por si: se diversas besteiras produzidas pela Globo Filmes alcançam centenas de telas, preciosidades vistas em festivais jamais chegam a encontrar os olhos do público (um exemplo que me vem à mente é o magnífico A Despedida, que vi em Gramado em 2014 e que até hoje permanece inédito no circuito). Parte da culpa, claro, também pode ser atribuída aos espectadores, já que não são poucos os que abraçam um preconceito absurdo contra nossas produções – e o próprio Cinema Novo só passou a ser mais respeitado e visto no Brasil depois de ter vencido prêmios em Cannes, Berlim e ser ovacionado pelas críticas francesa e italiana.
A triste ironia é que, de todas as correntes da História do nosso Cinema, o movimento que surgiu no início da década de 60 e perseverou até a de 70 foi certamente aquele que mais se preocupava em representar nosso povo e nossa cultura, dando espaço político a quem não tinha espaço algum, criando personagens que falavam e viviam como brasileiros e buscando fazer tudo isso enquanto desenvolvia uma linguagem cinematográfica nova, vibrante e nossa, mesmo que nenhum de seus integrantes negasse a influência de autores estabelecidos (de acordo com o longa, havia uma forte e amigável divisão entre aqueles que seguiam Roberto Rosselini, John Ford e Sergei Eisenstein).
Contando com uma excepcional pesquisa de arquivo, esta obra dirigida pelo filho de Glauber traz registros de entrevistas muito boas em áudio e também em vídeo com figuras como Hirszman, Glauber, Joaquim Pedro de Andrade, Paulo Cézar Saraceni, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues e Ruy Guerra, entre outros – e é igualmente bacana perceber a reverência destes cineastas por aqueles que consideravam seus precursores, como Humberto Mauro e Mário Peixoto. Além disso, o filme comprova como aqueles cineastas eram não apenas companheiros de movimento, mas também colaboradores, apoiadores e amigos, muitas vezes alternando o uso da moviola para montarem as obras uns dos outros.
Porém, Eryk Rocha vai além e também transforma seu projeto em um ensaio visual sobre a riqueza e a força das imagens criadas pelo Cinema Novo, criando ligações, através da montagem, que constroem raccords e novos sentidos entre diversos filmes, como ao levar personagens de produções diferentes reagindo ao mesmo som ou ao trazer a explosão de um barranco que transforma o movimento de queda da terra no nascimento de Macunaíma – um jogo de relações espaciais e semânticas que fazem jus ao clássico curta experimental A Movie, de Bruce Conner (um daqueles títulos seminais que, lamentavelmente, poucos cinéfilos conhecem).
Como se não bastasse, Cinema Novo conta com uma triste coincidência histórica, já que, ao discutir o contexto político daquela escola, naturalmente lembra do golpe de 64 e as condições que o tornaram possível, desde o pavor da burguesia diante da “ameaça comunista” (que já era ridículo na década de 60 e soa como pura estupidez em 2016) até a tentativa dos fascistas de se apresentarem apenas como um regime liberal a fim de evitarem a caracterização de “golpe”. Aliás, quando Rocha inclui um registro de um encontro de vários expoentes do Cinema Novo e logo depois corta para os rostos de várias pessoas comuns, a mensagem política é clara: aqueles eram reflexo destes e estes eram a motivação daqueles.
Com as pontas amarradas em uma rima elegante que traz uma montagem com vários personagens de diversos longas correndo em diversas cenas, este excelente documentário parece estar ressaltando para o espectador como o país e seu Cinema seguem disparados mesmo diante de todos os problemas, pois não podemos parar jamais. Afinal, como alguém diz durante o filme, “se você perde a democracia e a liberdade, perde a capacidade de fazer poesia”.
E sem poesia a vida perde a cor.
Personal Shopper, de Olivier Assayas
No excelente Acima das Nuvens, longa anterior do diretor francês Olivier Assayas, Kristen Stewart interpretava a assistente pessoal de uma atriz vivida por Juliette Binoche e com a qual discutia questões pessoais e artísticas de maneira interessante e intrigante – até que, num toque de realismo fantástico, determinado incidente surpreendia Binoche e o espectador, provocando interpretações e reflexões ainda maiores. Pois em Personal Shopper, Assayas claramente tenta reproduzir um pouco do sucesso daquele filme, conseguindo repetir apenas o elemento fantástico e a ótima performance de Stewart, já que o restante é uma bobagem tola e vazia.
Escrito pelo realizador, o roteiro segue Maureen, que trabalha como assistente de uma celebridade, sendo encarregada de fazer suas compras pessoais de roupas e joias. Ainda enlutada pelo falecimento súbito de seu irmão gêmeo, a garota, que se diz médium embora não acredite em vida após a morte, insiste em morar em Paris a fim de esperar algum sinal do espírito do rapaz. Para isso, ela passa algumas noites em uma casa que pertencia a ele, onde se depara com o espectro de uma mulher. Para completar, acompanhamos também a cunhada de Maureen e as interações entre esta e uma pessoa anônima que lhe envia repetidas mensagens de texto, aluga quartos em seu nome e acaba cometendo um crime que pode colocá-la sob suspeita.
Se ao ler o parágrafo acima você teve a impressão de que Personal Shopper concebe uma trama elaborada, repleta de incidentes, se enganou: na maior parte do tempo, o filme enfoca a personagem-título enquanto escolhe roupas, anda de moto pela cidade, assiste a vídeos sobre artistas que acreditavam em espíritos, conversa com o namorado pelo Skype e diz frases como “Ela vomitou o ectoplasma, que flutuou por algum tempo até sumir”. Ah, sim: e troca mensagens e mais mensagens pelo celular.
Aliás, um título bem mais apropriado para este projeto seria Persistent Texter, já que Maureen, ao receber as SMS de um estranho, logo passa a respondê-las, intrigada, ainda que elas não tragam absolutamente nada de interessante – e eu, em seu lugar, logo responderia “Pessoa, você é chata demais. Block.”. Ainda assim, entendo que Assayas procure usar o recurso quase como um substituto dos pensamentos em off, mas não há como contornar o fato de que filmar a tela de um celular por longas passagens e algo pouco cinematográfico (mesmo que ele mantenha Stewart trocando de ambientes para evitar um tédio ainda maior).
E este é só um dos muitos pecados do roteiro, já que o tal crime, que supostamente deveria provocar grande impacto, é logo deixado de lado numa revelação óbvia e anticlimática, devolvendo o público à punição de ter que ficar seguindo Maureen em seu cotidiano chatíssimo.
Curiosamente, Personal Shopper é um filme bem melhor quando Assayas brinca de diretor de filme de terror – algo que faz com competência surpreendente: as sequências envolvendo espíritos são assustadoras (e, para mim, ele cria o fantasma mais apavorante desde A Espinha do Diabo), a investigação da heroína pelo casarão escurecido é tensa e o momento no qual a moça recebe uma sequência de mensagens acumuladas indicando a aproximação de uma ameaça é angustiante.
Fora isso, porém, o longa aparenta estar em busca de uma história para contar – e esta ausência de propósito é algo que nem mesmo a entrega de Kristen Stewart ao papel pode contornar, o que é um desperdício de seu talento cada vez maior.
Apprentice, de Junfeng Boo
“Carrasco também é gente!” – esta parece ser a mensagem do longa cingapuriano Apprentice.
Dirigido e roteirizado pelo estreante Junfeng Boo, o filme se propõe, ao menos no papel, discutir a questão da pena de morte e suas implicações morais. Para isso, segue o jovem Aiman (Firdaus Rahman), que deixa o exército para se tornar agente penitenciário em uma prisão de segurança máxima. Inicialmente escalado para monitorar presidiários com penas mais leves, ele aos poucos se revela fascinado com o carrasco que ali trabalha há 30 anos e que, logo descobrimos, foi o responsável pela execução de seu pai.
Não que isto faça alguma diferença – e se faz, é apenas para que o protagonista expresse sua determinação em se afastar de suas origens violentas. Já sua obsessão com o carrasco jamais é esclarecida: ele ressente o papel que este desempenhou? Seu fascínio pelos enforcamentos é só uma curiosidade mórbida? Há algum motivo não revelado para suas ações? Apprentice se recusa a responder qualquer destas perguntas.
Para piorar, não há qualquer interesse em debater elementos complexos do tema principal; ao contrário, o roteiro constantemente foge de qualquer controvérsia, chegando mesmo a criar uma fantasia de que, se executado de forma incorreta, os sentenciados evacuam e urinam nas roupas – uma imbecilidade imensa, já que isto aconteceria de toda maneira.
Mas o propósito aparente destes engodos é sugerir que um bom carrasco é, no fundo, um sujeito humano que transforma a experiência em algo minimamente sofrido para suas vítimas – e se por um lado não é necessário (ou correto) pintar todo algoz como um monstro unidimensional, tampouco é correto fingir que suas ações são inócuas apenas porque este conversa com o prisioneiro como um ser humano.
Covarde até o último segundo, o diretor amarra seu trabalho com um desfecho que se esconde sob a desculpa da ambiguidade quando, de fato, quer apenas evitar que julguemos seu filme.
Um objetivo no qual também falhou terrivelmente.
Hell or Hight Water, de David Mackenzie
Serei honesto: são duas e dez da manhã e tenho que acordar daqui a cinco horas. Então, curto e grosso: Hell or High Water é um exercício de gênero que acompanha dois irmãos (Chris Pine e Ben Foster) que começam a assaltar vários bancos em rápida sucessão no oeste do Texas, passando a ser perseguidos pelo xerife Marcus (Jeff Bridges) e seu parceiro Alberto (Gil Birmingham).
Como é fácil antecipar, Foster faz o irmão impulsivo e violento; Pine, o inteligente e com pudores morais; e Bridges, o tipo veterano exausto e divertido (mas se o ator continuar neste processo de tornar sua dicção cada vez mais enrolada, daqui a pouco só poderá interpretar vítimas de derrame).
Eficiente por fazer com que nos importemos com todos os personagens, o longa usa sua trama para construir uma alegoria sobre a miséria e a falta de perspectivas de boa parte das pequenas comunidades norte-americanas graças à crise de 2008, remetendo de forma óbvia ao “romantismo” dos ladrões de banco da década de 30 que, de alguma forma, pareciam estar apenas retribuindo a destruição promovida pelas instituições financeiras.
Dono de uma carreira irregular, o diretor britânico David Mackenzie aqui acerta ao criar uma narrativa descompromissada, mas competente. Que siga neste caminho.