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Festival de Cannes 2016 - Dia 07 Festivais e Mostras

Lembrando que minha cobertura do festival de Cannes recebeu o apoio logístico da LATAM Airlines Brasil (se estiver gostando, conta lá pra eles no Twitter!), partamos para o trabalho.

Em primeiro lugar, a crítica do brasileiro Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, pode ser lida aqui.

Já os demais filmes do dia foram:

Julieta, de Pedro Almodóvar

Quando inspirado a se desafiar, o cineasta Pedro Almodóvar é capaz de criar experiências únicas como A Pele que Habito, Volver, Má Educação e Fale com Ela (para ficar apenas em sua produção do século 21); já quando no “piloto automático”, ele se contenta em tentar despistar a fragilidade das histórias mais preguiçosas através de seu apuro estético, criando atrocidades como Os Amantes Passageiros e Abraços Partidos ou tolices esquecíveis como este seu recente Julieta.

Baseado em alguns contos da escritora canadense Alice Munro, o roteiro do próprio Almodóvar é falho a ponto de construir a história a partir de uma pergunta que, se recebe alguma resposta, esta é um ridículo “porque sim” – e este é um tropeço menor se comparado à ideia de estruturar a narrativa em torno da redação de uma carta na qual a protagonista relata para a filha uma penca de fatos que esta já conhece e que, portanto, tem seu propósito expositivo escancarado. Os fatos, diga-se de passagem, são essencialmente desinteressantes: Julieta (Adriana Ugarte na juventude; Emma Suárez na meia-idade) se envolve com o pescador Xoan (Daniel Grao), tem uma filha com este (Priscilla Delgado na adolescência; Blanca Parés quando adulta), e... algumas coisas acontecem. Nada de fabuloso – ainda que o filme tente fazer parecer que sim ao insistir num clima de suspense ressaltado por uma trilha de Alberto Iglesias claramente inspirada na de Um Corpo que Cai.

Visualmente, como já seria de se esperar, Julieta é eficiente: já abrindo a projeção num plano-detalhe de um vestido intensamente vermelho, Almodóvar logo monta a lógica de suas cores, trazendo a personagem-título envolvida de azul até conhecer o amado, que a “infecta” com suas roupas vermelhas (e que passam a dominar o design de produção, pintando carros, roupas, paredes, unhas e o escambau) – e as homenagens ao clássico de Hitchcock continuam não só neste esquema visual, mas também ao trazer Ava (Inma Cuesta), melhor amiga de Xoan, usando os mesmos amarelos que Barbara Bel Geddes, melhor amiga do personagem de James Stewart, usava em Um Corpo que Cai.

Mas as comparações com aquele clássico param por aí, já que a trama deste longa abusa de clichês que incomodariam numa telenovela: personagens se encontram acidentalmente no meio da rua em momentos-chave (com direito a closes que as trazem dizendo “Bea!”, “Julieta!”); o pobre “mocinho” é casado com uma mulher que se encontra em coma há cinco anos; amantes de coração partido entram em estado catatônico e precisam ser banhadas; e – o mais insuportável – a estratégia recorrente do roteiro para preencher lacunas e avançar a história são diálogos que começam com frases como “Você precisa saber de algo...”; “Nunca te contei isso, mas é hora...”; “Naquele dia, sem que você soubesse...” e por aí afora. Além disso, a recorrência de mães, esposas e amantes gravemente doentes poderia ser até interpretada como uma rima temática, mas soa mesmo como pura convenção melodramática.

Fortalecido (na medida do possível) pelas boas atuações de Ugarte e Suárez (além de uma pequena e divertida participação de Rossy de Palma), Julieta simplesmente espera que aceitemos mudanças bruscas na personalidade de seus personagens (como aquela que subitamente se torna fanática religiosa), atira revelações aleatoriamente ao longo da projeção, esquecendo-as em seguida (como certo romance lésbico) e empurra “resoluções” artificiais que tampouco convencem.

Caso tivesse sido dirigido por alguém chamado José da Silva, Julieta seria visto como uma besteira descartável; como tem “grife”, porém, é colocado numa passarela que seria melhor ocupada por obras realmente dignas do espaço.

 

Ma’Rosa, de Brillante Mendoza

Ao fim de Ma’Rosa, novo trabalho do cineasta filipino Brillante Mendoza, eu continuava a não ter a menor ideia de quem era de fato a personagem-título ou dos motivos que a levam a batizar o filme. E considerando que eu a havia acompanhado por quase duas horas, isto não é um bom sinal.

Casada com um viciado em drogas e mãe de quatro filhos, Rosa (Jaclyn Jose) é uma mulher que se esforça para manter a família, cuidando da pequena loja situada na parte dianteira de sua minúscula casa e usando o espaço para ganhar uns trocados a mais vendendo os mesmos narcóticos usados pelo marido. Quando alguém a denuncia para a polícia, no entanto, o casal é preso e mantido na delegacia até que consigam levantar uma imensa soma a ser paga como suborno para os agentes.

Depois de um primeiro ato promissor que nos apresenta à dura e miserável realidade daqueles indivíduos, Ma’Rosa vai perdendo sua força aos poucos em função da autoindulgência habitual de Mendoza, que já rendeu resultados excepcionais (Serbis) e apenas medianos (Taklub) e que aqui parece mera repetição.

Aliás, alguém precisa ensinar ao cineasta urgentemente o conceito de “elipse”. Fico aqui de dedos cruzados esperando.

 

Voir du pays (The Stopover), de Delphine e Muriel Coulin

Esta produção francesa escrita e dirigida pelas irmãs irmãs Delphine e Muriel Coulin se passam em um hotel de luxo que hospeda por três dias um grupo de soldados que, com suas passagens pelo Afeganistão encerradas, estão ali para “descomprimir” antes de retornarem para casa. Seguindo a personagem de Ariane Labed, que foi ferida durante uma emboscada, Voir du pays acompanha as interações da moça com os companheiros e, especialmente, com a também soldado Marine (Soko), sua amiga de infância.

E aí está o problema: ao longo do filme, a militar interpretada por Soko (que também estava muito bem em A Dançarina, que já comentei durante a cobertura do festival) se revela muito mais interessante do que a protagonista: com sua expressão sempre fechada, modos defensivos e uma raiva que mal consegue conter, Marine obviamente precisa muito mais daquela “descompressão” do que a companheira Aurore, o que provoca frustração sempre que somos forçados a abandoná-la para seguir a outra.

Para completar, o roteiro cria um grupo de soldados tão limitado em suas características e experiências que nem o papel de microcosmos conseguem exercer. No final das contas, a única coisa que o longa diz é que a guerra é algo ruim e que desumaniza todos que se envolvem com ela. Mas isso já sabíamos.

 

Captain Fantastic, de Matt Ross

Bodevan, Kielyr, Vespyr, Rellian, Zaja e Nai. Estes são os nomes dos seis filhos de Ben (Viggo Mortensen), que os inventou para que fossem únicos em todo o planeta. Esta, porém, é a menor de suas peculiaridades, já que o sujeito cria sua família no meio de uma floresta, treinando as crianças para que cacem, plantem e colham seus alimentos, já que não quer vê-los crescendo sob uma sociedade consumista.

Mas Ben não tem interesse em ver as crianças se transformando em animais preocupado apenas com a sobrevivência e, assim, supervisiona seus estudos de maneira ambiciosa: todos falam seis línguas, são estimulados a ler os clássicos e têm seu pensamento crítico constantemente estimulado. Ao comentar que se sente incomodada com o “Lolita” de Nabokov, por exemplo, a filha adolescente do protagonista é estimulada a explicar o que a deixa tão desconfortável – e quando começa a descrever a trama, é interrompida pelo pai para que analise a narrativa em vez de apenas resumi-la.

Assim, Captain Fantastic constantemente surpreende e diverte o espectador ao trazer aqueles jovens discutindo Física Quântica em um momento apenas para, no seguinte, surgirem camuflados enquanto caçam um cervo usando apenas um facão. Por outro lado, há um vazio entre eles: a esposa de Ben e mãe das crianças cometeu suicídio após uma longa luta contra a depressão e seu corpo está prestes a ser enterrado por seus pais, que se negam a honrar seu desejo, como budista, de ser cremada – o que leva sua família a iniciar uma longa viagem para impedir que isto aconteça.

Girando em torno da dinâmica daquela família tão peculiar, o filme escrito e dirigido por Matt Ross basicamente depende do interesse do espectador pelos personagens para que funcione – e é extremamente bem-sucedido neste aspecto. Por mais que a ideia de um homem criar os filhos à margem da sociedade, no meio de uma floresta, possa inicialmente soar irresponsável, torna-se difícil condenar o trabalho de Ben como pai ao observarmos o carinho e o respeito com que trata os filhos, respondendo sem hesitar a todas as perguntas que estes lhe fazem e incentivando-os a pensar sobre tudo que vivem, leem e sentem (adjetivos genéricos como “interessante” são proibidos entre eles).

Engraçado e tocante na mesma medida, Captain Fantastic emprega seus personagens para discutir ideias política e socialmente complexas, às vezes fazendo pequenas observações (como no instante em que as crianças se chocam ao perceber como todos parecem gordos no mundo “real”), às vezes adotando pontos de vista mais estranhos (por que seria mais justo celebrar o “Dia de Noam Chomsky” do que o Natal?), às vezes partindo para a controvérsia proposital (para despistar um policial, eles se passam por fundamentalistas cristãos por saberem que isto praticamente os isentará de questionamentos). Aliás, o longa se recusa a simplificar qualquer questão, o que pode ser constatado em seu tratamento do avô vivido por Frank Langella, que, mesmo sendo o grande antagonista da história, não é visto de forma unidimensional, como um vilão.

Inteligente ao criar um arco dramático que confere ainda mais estrutura à narrativa e que envolve a percepção de Ben sobre os efeitos de sua abordagem educacional sobre os filhos, o filme aos poucos leva o público a se apaixonar por aquela família – o que em grande parte deve-se às performances de Mortensen, um ator capaz de evocar uma intensidade única, e de seus seis jovens companheiros de cena, que estabelecem as personalidades de cada um dos filhos e forjam uma intimidade inquestionável entre estes.

Com isso, quando ouvimos uma versão encantadora de “Sweet Child of Mine” executada por aquelas pessoas, o desejo é de permanecer ali, acompanhando suas jornadas e sem ter que deixá-los para trás ao fim da projeção.

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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