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Festival de Cannes 2016 - Dia 08 Festivais e Mostras

Antes de falar sobre os cinco filmes vistos hoje, agradeço, como sempre, à LATAM Airlines Brasil pelo apoio logístico oferecido para esta cobertura. 

Bora lá:

A Garota Desconhecida (La fille inconnue), de Luc e Jean-Pierre Dardenne

A origem de documentarista dos irmãos Luc e Jean-Pierre Dardenne é inconfundível: responsáveis por longas admiráveis como O Filho, A Criança e Dois Dias, Uma Noite, os cineastas belgas têm uma linguagem narrativa claramente calcada no realismo, descartando histórias de gênero e o uso de trilhas não-diegéticas e favorecendo longas tomadas que acompanham seus personagens em situações naturalistas que, quando muito, são construídas através de sequências de elipses.

Hábeis em extrair drama de indivíduos comuns, os diretores aqui seguem a jovem médica Jenny (Adèle Haenel), que, atendendo em uma pequena clínica localizada em uma região humilde da cidade, certa noite ouve a campainha do consultório tocar e decide não responder. Quando descobre, no dia seguinte, que a moça que tentara chamar sua atenção acabara morrendo de forma violenta pouco depois, Jenny se torna obcecada em descobrir sua identidade, já que ela não trazia qualquer documento.

Esta investigação particular, porém, é apenas uma desculpa para que os diretores façam aquilo em que são mestres: observem o comportamento das pessoas que cruzam a tela. Para os Dardenne, o ato de medir a temperatura de um paciente é o suficiente para revelar algo sobre a personalidade da médica e, assim, quando esta sorri levemente ao receber uma boa notícia sobre o exame de um paciente ou oferece o braço como apoio para uma senhora em seu consultório, percebemos seu profissionalismo e seu carinho por aqueles que a procuram.

Como é fácil concluir, este tipo de abordagem narrativa exige performances minimalistas por parte do elenco, já que, dentro da lógica visual dos cineastas, gestos pequenos já são capazes de provocar impacto – algo que Haenel compreende bem, evocando muito mais através de seus olhares do que de expressões faciais e corporações que chamem a atenção para si mesmas (e, desta maneira, a atriz entra no rol de grandes interpretações arrancadas pelos belgas e que incluem Mario Cotillard, Cécile De France, Arta Dobroshi – o que houve com ela, aliás? -, Déborah François e Émilie Dequenne, além, claro, de Olivier Gourmet e Jérémie Renier, regulares nas produções dos irmãos).

E, mesmo com todas estas virtudes habituais, A Garota Desconhecida falha em repetir o impacto de vários dos longas anteriores dos Dardenne, já que parece retraçar caminhos já percorridos por estes. Sim, provavelmente é injusto compará-los a si mesmos, mas quando artistas expressivos como estes avançam na carreira, é normal que esperemos que continuem a se desafiar – e, aqui, eles parecem ter se acomodado um pouco demais.

 

Inversion (Varoonegi) de Behnam Behzadi.

Niloofar (Sahar Dolatshahi) é uma iraniana que, beirando os 30 anos de idade, ainda não se casou nem teve filhos. Vivendo com a mãe idosa, ela se vê responsável por cuidar desta, que, com o nível crescente da poluição em Teerã, enfrenta graves problemas respiratórios. Assim, quando os médicos insistem para que a frágil senhora vá morar em uma cidade menor e com melhor qualidade do ar, os irmãos mais velhos de Niloofar não pensam duas vezes antes de decidir que esta deverá se mudar com a mãe, deixando para trás a confecção da qual é sócia e o romance, ainda em fase inicial, com um velho conhecido da adolescência.

Como mensagem, Inversion é relevante, claro: o machismo em sociedades teocráticas (aliás, fora destas também) é preponderante, o que é inacreditável em pleno século 21 – e apontar isto, especialmente numa sociedade como o Irã (que, ainda assim, é liberal se comparado à Arábia Saudita), é digno de nota. O lamentável é que, como filme, o trabalho do cineasta Behnam Behzadi é frouxo, tentando evocar o desconforto e o sentimento de injustiça experimentados por Niloofar não através de elementos visuais, mas apenas através dos diálogos, resultando num falatório que acaba soando como pregação.

Esteticamente pouco elaborado e repetitivo a ponto de levar o espectador a torcer para que a protagonista vá embora a fim de encerrar aquilo, o longa acaba por sabotar suas intenções nobres, o que é decepcionante.

 

After the Storm (Umi yori mo mada fukaku), de Hirokazu Kore-eda

Breve e objetivo: Kore-eda não é um dos cineastas mais consistentes; se aqui faz algo sensacional como Pais e Filhos, ali faz uma besteirinha como Nossa Irmã Mais Nova. Pois em After the Storm, ele une suas melhores qualidades, realizando um filme capaz de se entregar a passagens que se assumem tolas, mas que, aos poucos, se somam em uma narrativa densa e madura.

Protagonizado por Hiroshi Abe (cujos 1,90 m de altura são empregados para torná-lo paradoxalmente mais vulnerável), este drama é centrado num escritor decadente que agora trabalha em uma agência de detetives sob a desculpa de estar realizando uma “pesquisa” para seu próximo livro – que, claro, está sendo escrito há quase uma década. Angustiado por descobrir que a ex-esposa (Yôko Maki) está namorando, ele tenta conseguir dinheiro para pagar a pensão e garantir suas visitas ao filho, mas fracassa constantemente em função de seu vício por apostas. Enquanto isso, sua mãe idosa (Kirin Kiki) não para de se preocupar com a situação dos filhos, sonhando também em um dia poder mudar para um apartamento melhor.

Alternando com talento entre a pungência da performance de Abe e o bom humor daquela oferecida pela fantástica Kirin Kiki (colaboradora habitual de Kore-eda e que ano passado se destacou em Cannes ao aparecer em Sabor da Vida), After the Storm nos leva a sentir a dor de seus personagens e, de quebra, promove uma linda reflexão acerca das expectativas que criamos para nós mesmos e que, raramente alcançadas em sua plenitude, se transmutam em frustração e desencanto.

 

A Tartaruga Vermelha (La tortue rouge), de Michael Dudok de Wit

A Tartaruga Vermelha, único longa de animação exibido nas mostras oficiais do Festiva de Cannes de 2016, é uma pequena obra-prima que reconhece a capacidade que o Cinema tem de explorar temas e histórias complexas apenas através das imagens. Escrita por Pascale Ferran e pelo animador Michael Dudok de Wit, que aqui estreia como diretor de longas-metragens, este filme magistral é uma fábula que usa a trajetória particular de um personagem para fazer um delicado ensaio sobre a transitoriedade da vida e do peso desproporcional que muitas vezes conferimos ao que não é essencial.

Coproduzida pelo lendário estúdio Ghibli de Hayao Miyazaki, a animação já tem início enfocando o protagonista - cujo nome jamais é revelado (eu o chamarei de Homem) – se debatendo em alto-mar durante uma tempestade. Levado pelas ondas até uma ilha despovoada, ele constrói uma jangada de bambu para tentar retornar à civilização, sendo frustrado em suas repetidas tentativas por uma imensa tartaruga vermelha que insiste em destruir a balsa. Enraivecido diante das ações do animal, o sujeito se vinga num impulso raivoso, atacando-o e aparentemente provocando sua morte – e o “aparentemente” se deve ao fato de a tartaruga se transformar misteriosamente em uma garota de longos cabelos ruivos (que chamarei de Mulher).

Sem se preocupar em explicitar quem é o Homem e como naufragou ou em esclarece a natureza mágica da Mulher, A Tartaruga Vermelha simplesmente aceita como fato a situação do primeiro e a magia da segunda, partindo destes para o que realmente lhe interessa: uma investigação sobre nossa necessidade de contato e amor e sobre como esta determina a percepção que temos do mundo, do tempo e da vida. Se a princípio o Homem age com autêntico desespero para deixar a ilha, o encontro de uma companheira apazigua esta urgência ao preencher um espaço essencial em sua realidade – e não é coincidência que esta parceira esteja associada à cor que naturalmente associamos a paixões intensas, ao desejo e ao amor.

Descartando totalmente os diálogos (ouvimos apenas gritos e ocasionais “Ei!”), o filme comunica um mundo através de seu design de produção e da qualidade irretocável de sua animação: a sequência que traz o personagem principal vasculhando a ilha, por exemplo, é um espetáculo de cores, cenários e movimentos, sendo complementados perfeitamente pelo igualmente brilhante design sonoro, que usa os ruídos como um elemento estrutural essencial da narrativa.

Da mesma forma, a economia do diretor ao ilustrar a aproximação sentimental do casal é de uma elegância ímpar, usando para isso apenas as pegadas deixadas por eles na areia e que aos poucos convergem rumo a um abraço. Enquanto isso, a passagem do tempo é apresentada ao espectador não apenas da introdução de novos personagens ou mudanças na aparência dos personagens, mas também através de transições inspiradas como aquela que substitui o Homem deitado na praia por um plano geral da ilha, cuja topografia faz uma rima com a da posição do corpo do náufrago. Para completar, a magnífica trilha composta por Laurent Perez, digna de indicação a todos os prêmios da área, evoca todo tipo de sentimento, da solidão à catarse.

Já a animação, como não poderia deixar de ser em qualquer projeto que carregue o nome “Ghibli”, impressiona pelos detalhes: em certo instante, por exemplo, a Mulher começa a desenhar uma tartaruga na areia e, depois de fazer alguns traços, apaga-os e reinicia a ilustração ao perceber ter errado. São cuidados como estes que provocam nosso mergulho num filme animado: o desequilíbrio momentâneo de um personagem ao se levantar rapidamente, o impulso que toma para saltar sobre um buraco, a hesitação ao iniciar uma corrida – e é impossível não ficar embevecido diante da fluidez com que os longos cabelos da Mulher se movimentam sob a água, reagindo à correnteza e ao deslocamento seus membros.

Encantando o espectador com sua história de amor e emocionando-o com a trajetória temporal de seus amantes, A Tartaruga Vermelha é um filme que provoca lágrimas com sua doçura e com o profundo afeto que evoca.

 

É Apenas o Fim do Mundo (Juste la fin du monde), de Xavier Dolan

Na metade da projeção de É Apenas o Fim do Mundo, previ corretamente que seria vaiado ao final - não por ser um filme ruim, mas por não ser fácil de ver e nem tentar sê-lo. Dirigido sem quaisquer concessões ao espectador, esta nova obra do canadense Xavier Dolan reconhece o amor entre seus personagens, mas também que estes não conseguem deixar de machucar uns aos outros, tendendo a interpretar da pior maneira o que ouvem.

É compreensível, portanto, que o dramaturgo Louis (Gaspard Ulliel) tenha se mantido afastado de sua família por 12 anos, limitando-se a enviar cartões em datas comemorativas. Porém, quando o encontramos pela primeira vez, ele está justamente retornando para casa com o objetivo de revelar aos parentes que está morrendo, o que servirá de base para o resto da narrativa, que focará suas conversas com a mãe (Nathalie Baye), com seu irmão mais velho Antoine (Vincent Cassel), com sua cunhada Catherine (Marion Cotillard) e com sua irmã caçula Suzanne (Léa Seydoux). Enquanto cria coragem para dar a notícia, Louis testemunha/protagoniza/causa revelações, brigas e confissões que passam a disparar memórias específicas de sua juventude.

Sem esconder sua origem teatral, que fica exposta na quantidade de diálogos e na ambientação limitada, o roteiro adaptado pelo próprio Dolan a partir da peça de Jean-Luc Lagarce naturalmente reconhece que sua força reside em seus personagens, que, por isso, são encarnados pelos rostos emblemáticos de intérpretes talentosos: Vicent Cassel concentra-se na raiva acumulada de Antoine, cujo sentimento de inferioridade e inadequação é extravasado através de gestos de hostilidade; Mario Cotillard é hábil ao ilustrar como a intimidação constante que Catherine sofre por parte do marido a transformou numa mulher insegurança que mal consegue se expressar; Léa Seydoux retrata a ansiedade de Suzanne para impressionar o irmão famoso que mal conhece; e Nathalie Baye faz da Mãe uma figura surpreendente que, por baixo dos modos expansivos e histriônico, revela uma percepção aguçada acerca da dinâmica psicológica entre os filhos. Já Gaspard Ulliel faz uma escolha apropriada ao permitir que Louis sirva quase como uma esfinge na qual seus parentes projetam as próprias percepções, limitando-se na maior parte do tempo a escutá-los com uma expressão que oscila entre lamento contido e a certeza de ter agido bem ao partir.

No entanto, mesmo que não disfarce a origem nos palcos, o longa ganha, a partir da direção inteligente de Dolan, uma linguagem profundamente cinematográfica que certamente provoca ideias e reações ausentes no original ao adotar uma montagem fluida que constrói uma tensão formidável durante conversas superficialmente inócuas ao acelerar o ritmo dos cortes enquanto os closes predominantes ajudam a criar uma atmosfera claustrofóbica e angustiante. Da mesma maneira, Dolan permite que o espectador testemunhe o tempo subjetivo presente em encontros de olhares – e quando Louis e Catherine conversam no sofá enquanto Antoine e Suzanne discutem ao lado, o cineasta parece testar os limites de sua capacidade de contrapor o espaço objetivo, da briga entre irmãos, e o subjetivo, contido na troca de olhares entre o protagonista e a cunhada e que parece durar uma eternidade. Já em outros instantes, a montagem vai no caminho oposto e pontua o mergulho de Louis nas memórias disparadas por cheiros e objetos que o cercam e que piscam na tela em flashes que recuperam amores e traumas passados.

Admirável como Cinema, É Apenas o Fim do Mundo cumpre muitíssimo bem sua proposta; que esta incomode justamente por ser eficiente demais é terrivelmente injusto.

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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