Seja bem-vindx!
Acessar - Registrar

Festival de Cannes 2016 - Dias 10 e 11 Festivais e Mostras

Mais tarde publicarei os resultados da premiação em Cannes, mas, antes, tenho que publicar os textos sobre os filmes que vi nos últimos dois dias do festival (algo que faço com o habitual agradecimento ao apoio da LATAM Airlines Brasil).

The Last Face, de Sean Penn

Sean Penn é um excelente diretor. Responsável por dois filmes excelentes (Na Natureza Selvagem e Acerto Final) e um que considero uma pequena obra-prima (A Promessa), ele é um cineasta com bom olhar para o desenvolvimento de personagens e seus conflitos, além de, como ator, se concentrar particularmente em seu elenco. Aliás, este é um dos problemas de The Last Face, seu novo trabalho: retornar continuamente aos dramas pessoais de seu casal principal quando deveria manter o foco no contexto trágico em que vivem.

Escrito por Erin Dignan, o longa dá um tropeço grave já em seus primeiros segundos, quase não conseguindo se recuperar: inclui um letreiro que, depois de explicar a situação básica dos conflitos no Sudão do Sul e na Libéria (o que faz sentido), emenda uma cafonice pavorosa ao dizer que falará da “brutalidade de um amor impossível entre um homem e uma mulher” – no caso, os médicos Wren (Charlize Theron) e Miguel (Javier Bardem), envolvidos com uma organização similar ao Médico Sem Fronteiras (ela, como integrante da diretoria; ele, atuando diretamente com os refugiados). Tornando-se próximos quando ela viaja para uma das bases do grupo, eles se apaix...

Aí. Bem aí. Este é o problema: quem se importa com os problemas românticos de um casal de brancos privilegiados quando milhares e milhares de crianças negras estão sendo massacradas em guerras civis brutais? Não é fácil sentir pena das agruras emocionais da protagonista quando acabamos de ver uma mãe desesperada tentando colocar seu bebê num helicóptero que está partindo, abrindo mão de ficar com o filho por saber que ele provavelmente será executado se permanecer ali e terá seu seu coração devorado por guerrilheiros que acreditam que isto os tornará invisíveis durante os combates.

O curioso é que Penn sabe que as questões não se comparam, já que exibe um cuidado imenso ao retratar o verdadeiro genocídio que ocorre naqueles países, jamais poupando o espectador por reconhecer o valor do choque no processo de conscientização humanitária. Assim, The Last Face não só é tenso em suas sequências de violência (incluindo uma cena incrivelmente tensa envolvendo pai e filho) como tenta atingir um forte grau de realismo – e, por esta razão, não é uma daquelas produções hollywoodianas nas quais as crianças estão sempre imunes a qualquer desastre.

Já o romance... ah, o romance. Embaraçoso em vários de seus diálogos (“It’s not grabbing, it’s loving.”), ele se revela ainda mais problemático graças à performance de Charlize Theron, que oferece uma performance monótona que a traz sempre sussurrando em tom sofrido e com os olhos constantemente marejados. Em contrapartida, é interessante notar a dicotomia básica da protagonista, que dedica a vida à ajuda humanitária aos refugiados, mas não consegue trabalhar in loco por sentir medo da violência e por ter dificuldade para lidar com a brutalidade que testemunha. Enquanto isso, Javier Bardem confere dignidade e coragem a Miguel, saindo-se bem melhor no equilíbrio entre os elementos pessoais e profissionais do personagem – e aprecio especialmente o riso que ele dá ao voltar para seu hotel, no conforto de uma capital europeia, e abrir o chuveiro, sugerindo não só o prazer de poder tomar um banho decente como o reconhecimento do absurdo contido no fato de o chuveiro quente ser um “luxo” que os refugiados não têm.

Divididos pelo reconhecimento de que jamais farão diferença no grande esquema das coisas, mas alteram radicalmente a vida daqueles que ajudam, Wren e Miguel são muito mais eficazes dramaticamente quando se debatem sobre dilemas como este do que quando sofrem por amor. E capazes de alterar o mundo ou não, ao menos representam bem tantos médicos que dedicam suas vidas no mínimo à tentativa de melhorar a sociedade, contrapondo-se a tantos outros que parecem mais interessados em defender seus interesses corporativos do que em honrar o juramento que prestaram ao se formar naquela que, quando exercida com humanidade, é a mais bela das profissões.

 

A Longa Noite de Francisco Sanctis, de Francisco Marquez e Andrea Testa

A lógica de uma ditadura é perversa ao alterar a maneira como as pessoas pensam no próximo. Ter empatia em um regime de exceção é submeter-se ao risco de ser punido e, assim, a cada impulso de manter-se “isento” o indivíduo perde um pouco de sua própria essência.

Sua compreensão acerca desta questão é o único elemento que merece aplausos em A Longa Noite de Francisco Sanctis, produção argentina dirigida por Francisco Márquez e Andrea Testa. Ambientado em 1978, o filme acompanha um contador, o Francisco do título (Diego Velázquez), que certo dia é contatado por uma antiga conhecida que o informa sobre duas pessoas prestes a serem “desaparecidas” pelo regime militar. Agora atormentado pela responsabilidade de tomar alguma providência para alertá-las, o sujeito perambula pelas ruas da cidade enquanto tenta se decidir quanto ao que fazer.

Se a decisão parece óbvia para o espectador, não é tão simples para Francisco, que, casado e pai de duas crianças, preocupa-se mais com sua futura promoção do que com questões políticas, ainda que na juventude tenha escrito um poema sobre a causa revolucionária. E ele deveria arriscar tudo para ajudar dois estranhos?

Infelizmente, se o filme poderia funcionar como dilema ético ou mesmo como estudo de personagem, a abordagem da dupla de diretores carece de foco, frequentemente se limitando a seguir o protagonista enquanto este caminha por longos trechos – e quando tenta fazer algo, suas ações são claramente ineficazes e nada convincentes, já que ele parece inteligente demais para achar que procurar o filho militante de uma conhecida seria uma opção viável.

A impressão final é a de que os cineastas tinham, no máximo, material para um média-metragem, estendendo-o ao máximo para chegar aos 78 minutos de projeção que, mesmo parcos, parecem durar muito mais do que toda a noite de andanças do aborrecido personagem-título.

 

Dog Eat Dog, de Paul Schrader

Os três criminosos que centralizam Dog Eat Dog se acham capazes de tudo, mas são profundamente estúpidos – um nível de estupidez que já os enviou para a prisão duas vezes, deixando-os próximos de atingir a marca determinada pela lei dos “three strikes”, que condena à prisão perpétua qualquer um condenado três vezes pela justiça norte-americana. Decididos a evitar este destino, eles se envolvem num “último golpe” planejado pelo sombrio Grecco o Grego (o diretor Paul Schrader, estreando como ator aos 70 anos de idade), mas, claro, nada sai como o previsto.

Se há algo que admiro profundamente é a capacidade de um artista de se reinventar e, principalmente, de fazer questão de se desafiar constantemente – e assim como aplaudi Scorsese e Wenders abraçando o 3D aos 70 anos (e bem) e George Miller usando um frame rate reduzido para impulsionar as sequências de ação de Mad Max, não só me vejo compelido a aplaudir Schrader por se arriscar como ator, mas também por seu experimentalismo ao conduzir este Dog Eat Dog. O resultado pode ser apenas mediano, mas o risco é fantástico.

Baseado em um livro de Edward Bunker (o Mr. Blue de Cães de Aluguel), o roteiro de Matthew Wilder se interessa menos pelos planos de seus personagens do que por suas personalidades. Não à toa, Schrader concebe uma linguagem visual que não busca a narrativa objetiva, exterior, mas a subjetiva, que transforma aquele universo de acordo com as percepções do trio principal. Assim, é claro que a primeira cena envolvendo Mad Dog (Willem Dafoe) surge em cores sem qualquer naturalismo, carregando impossivelmente no rosa e no azul: completamente dopado, o sujeito não vê uma sala ao seu redor, mas uma experiência – e, assim, experimentamos com ele.

O dinamismo que o realizador emprega ao lidar com as cores de Dog Eat Dog, aliás, é um espetáculo à parte, construindo sequências em preto-e-branco e outras com cores supersaturadas que se beneficiam do design de produção extremo que se reflete também nos figurinos. A energia que o projeto exala, vale apontar, deve-se em parte a outra decisão que diz muito sobre Paul Schrader: contratar jovens estreantes em suas funções-chave, do diretor de fotografia Alexander Dynan ao montador Ben Rodriguez Jr. (e mesmo a designer de produção Grace Yun e a figurinista Olga Mill não trazem muitos créditos no currículo).

Infelizmente, Dog Eat Dog funciona melhor como conceito do que como realidade – e talvez seu maior equívoco seja na abordagem cômica dos atos de violência que retrata. Sim, há cineastas que conseguem extrair humor do choque (olá, Tarantino), mas Schrader não é um deles. Com isso, ver Mad Dog esfaqueando uma mulher repetidas vezes ou disparando contra a cabeça de uma adolescente apavorada deixa de ser simplesmente uma demonstração da natureza impulsiva e descontrolada do personagem, tornando-se um sinal da falta de julgamento do próprio diretor. Já em outros instantes, a proposta do diretor soa apenas confusa: quando um assassino escancara suas fragilidades para outro, devemos rir de sua vulnerabilidade emocional? Celebrá-la? Lamentá-la?

Já o elenco se entrega totalmente à visão do realizador, seja esta problemática ou não: Dafoe encarna Mad Dog como uma bomba-relógio, Christopher Matthew Cook transforma Diesel numa combinação curiosa de força bruta e sensibilidade e Nicolas Cage... bom, aqui regula seus cageísmos no nível 11 criado pelo Spinal Tap, culminando numa imitação de Humphrey Bogart que já se firma como uma das coisas mais estranhas e divertidas de sua carreira.

Beirando o surrealismo em um flashback que traz os três amigos brincando com mostarda e ketchup num quarto de hotel, Dog Eat Dog não é um bom filme, mas, paradoxalmente, é um indicativo perfeito da genialidade de seu diretor.

 

The Salesman (Forushande), de Asghar Farhadi

O Cinema do iraniano Asghar Farhadi é um dos mais humanos da atualidade – algo que qualquer um que viu Beautiful City, Fireworks Wednesday, À Procura de Elly, A Separação e O Passado pode confirmar. Seus filmes frequentemente giram em torno de pessoas comuns que se envolvem em pequenos desentendimentos que acabam se complicando de forma inesperada, levando o espectador a se enxergar naquelas situações e naqueles personagens.

Mas não só as situações que provocam esta identificação no público, mas também pequenos gestos e comportamentos: alguém que passa na padaria antes de ir para casa, um outro que se distrai no meio de uma conversa ou um terceiro que perde o fôlego ao subir uma escadaria. Aqui, estas pessoas estão ligadas a uma montagem da peça A Morte do Caixeiro Viajante, de Arthur Miller, e que traz o ator e professor de Literatura Emad (Shahab Hosseini) no papel de Willy Lomax e contracenando com sua jovem esposa Rana (Taraneh Alidoosti). Quando o prédio no qual o casal mora começa a dar sinais de fragilidade na estrutura, eles são obrigados a se mudar rapidamente, aceitando o apartamento de um colega de elenco que antes tinha sido ocupado por uma prostituta – e, certa noite, um dos clientes desta acaba agredindo Rana e lançando seu marido numa busca obsessiva pela identidade do sujeito.

Como é costume na obra de Farhadi, a trama principal de The Salesman é apenas um fio condutor da narrativa, que segue diversas tangentes enquanto comenta elementos da sociedade e da cultura iranianas e as questões particulares (mas universais) dos personagens. Assim, embora a peça de Miller seja apenas um recurso que dá estrutura à narrativa (à medida que a história avança, vemos pontos cada vez mais adiantados do espetáculo), o cineasta acaba empregando-a para comentar de passagem a censura religiosa no Irã ao enfocar alguém sendo incumbido de debater com os censores para evitar cortes no espetáculo. Por outro lado, se há algum centro temático no longa, este reside na natureza predadora dos homens (gênero, não espécie) e que é abordado de forma recorrente durante a projeção.

Em certo momento, por exemplo, o protagonista pega um taxi coletivo e a mulher que está ao seu lado, incomodada, pede para trocar de lugar e passar para a frente do carro – e, em vez de se sentir ofendido, o sujeito pondera que ela provavelmente já passou por alguma situação constrangedora graças ao comportamento de algum homem no passado. Da mesma forma, depois da agressão, Rana treme ao ver qualquer estranho se aproximar, reforçando a ponderação do marido, que, por sua vez, mergulha num comportamento que beira o irracional e que a assusta ainda mais.

Até aí, The Salesman faz jus à carreira de Asghar Farhadi: é envolvente, fluido, complexo e sensível. Infelizmente, ao chegar ao terceiro ato, o diretor se entrega a algo que seus filmes sempre evitaram: o maniqueísmo. Seu propósito é nobre e adulto: apontar que reduzir o agressor de Rana a um estereótipo monstruoso é uma visão tola e que, pior, pode fazer com que acreditemos que apenas indivíduos naturalmente cruéis são capazes de agir destrutivamente. O problema - e, aqui, tentarei ser o mais genérico possível quanto à trama para evitar spoilers – é que Farhadi exagera ao suavizar o responsável pelo ataque para que enxerguemos sua humanidade, tornando-o adorado demais pela família, excessivamente vulnerável diante de Emad e, o mais grave, frágil demais para que acreditemos que seria capaz de provocar tantos ferimentos em Rana. Tornando tudo pior, o que ocorre depois do confronto em si beira o melodramático – outra coisa que o iraniano evitava com talento.

Mas um Asghar Farhadi menor ainda é um Asghar Farhadi. É o que basta.

 

Dia 11

 

Elle, de Paul Verhoeven

Elle, novo longa de Paul Verhoeven, é um filme curioso: seguindo as convenções de um thriller, gira em torno de Michelle (Isabelle Huppert), uma mulher sob ameaça que olha para todos que a cercam com a desconfiança de que podem estar prestes a atacá-la. E, no entanto, por mais que ela seja uma vítima inquestionável de violência, ao longo da projeção temos a sensação de que representa um perigo maior para seus adversários do que o contrário.

Baseado em um livro de Philippe Djian e roteirizado por David Birke, o longa já tem início com os gritos da protagonista ao ser atacada e estuprada em sua casa – um crime repugnante que Verhoeven retrata sem qualquer fetichismo (infelizmente, recorrente em histórias do tipo). No entanto, depois que o agressor parte, Michelle assume uma postura surpreendente: em vez de chamar a polícia ou mesmo algum amigo, ela apenas arruma a bagunça causada pelo bandido, cata os cacos de vidro espalhados pelo chão, toma um banho e vai trabalhar. Assim, de imediato já percebemos que há muitos elementos que desconhecemos sobre a personagem, o que posiciona a narrativa não só como um mistério acerca da identidade do estuprador, mas como uma investigação acerca da personalidade de sua vítima.

Sócia de uma produtora bem-sucedida de games, Michelle adota atitudes que a transformam quase num daqueles vilões de telenovela que acabam sendo assassinados, parecendo fazer questão de fazer inimigos: humilha o filho em público (ele realmente é um imbecil), ofende a nora, tem um caso com o marido da melhor amiga, provoca a mãe e o noivo (gigolô) desta e seduz o vizinho casado. Ao mesmo tempo, ela é vivida por Isabelle Huppert com tanto charme e bom humor que, de certa maneira, as gravidades de seus atos são relativizadas pelo espectador, que vê até com simpatia alguns deles.

A performance de Huppert, aliás, é uma lição de sutileza: reconhecendo que as ações de sua personagem falam por si mesmas, a atriz jamais busca ressaltá-las, agindo como se fossem simplesmente inevitáveis. Ao mesmo tempo, às vezes basta um olhar de lado ou um sorriso quase imperceptível para que percebamos o calculismo por trás de determinadas decisões que pareciam inofensivas, como convidar a namorada do ex-marido para um jantar ou tocar o braço do vizinho.

Enquanto isso, Verhoeven exibe um domínio notável sobre o tom da narrativa, deixando o espectador desconfortável mesmo que este não saiba exatamente o motivo. Em alguns pontos, a sugestão é visual (como o sangue que lentamente mancha a espuma na banheira); em outras, sonoras (como a força da ventania que empurra as janelas da casa de Michelle) – e o cineasta chega mesmo a se divertir com certas convenções (como ao trazer um gato saltando sobre a anti-heroína). Além disso, é curioso constatar como, num jantar aparentemente amigável, a protagonista usa um vestido de um vermelho intenso, fazendo par com um único convidado que também veste a cor por razões próprias).

Fazendo eco à personagem de Sharon Stone em Instinto Selvagem (que Verhoeven dirigiu há quase 25 anos), Michelle é uma mulher de desejos fortes e que não tenta podar seus impulsos. Aliás, gradualmente notamos como há até mesmo um componente de masoquismo em sua reação ao estupro, que parece excitá-la de alguma maneira.

(E aqui é preciso observar que todos os responsáveis por Elle são homens e que, portanto, há uma questão problemática envolvendo – aí, sim – certos fetiches masculinos acerca do estupro e que o longa obviamente tenta contornar ao apontar de forma aparentemente crítica a forma com que a violência contra a mulher é explorada pela Arte – no caso, os games produzidos por Michelle.)

Ambíguo até o último segundo, Elle é um filme de gênero com ambições de estudo psicológico. E se falha neste último, é muito bem sucedido no primeiro.

 

Sweet Dreams (Fai bei sogni), de Marco Bellocchio

“Tenha bons sonhos”, diz a mãe do pequeno Massimo ao colocá-lo para dormir, certa noite. Confortado por aquele carinho e pela presença daquela que o ama e protege, o garoto adormece tranquilo.

Ao acordar algumas horas depois, já se descobre órfão, embora não saiba ainda que a mãe cometeu suicídio. Anos mais tarde, ele já virou um correspondente de guerra, ganhou o rosto do ótimo ator Valerio Mastandrea e agora limpa o velho apartamento no qual morou durante a infância e que herdou após a morte do pai. Não demora muito para que notemos seus olhos tristes e as marcas deixadas pela perda precoce da mãe.

Dirigido pelo veterano italiano Marco Bellocchio, Tenha Bons Sonhos (tradução literal do título original) é um filme que reflete a nostalgia e a compreensão do cineasta de 77 anos sobre a efemeridade da vida e as cicatrizes que vamos colecionando ao longo dos anos. Econômico ao ilustrar o transtorno bipolar da mãe do protagonista (Barbara Ronchi, comovente) através da simples contraposição da dança com o filho na primeira cena da projeção e sua postura prostrada minutos depois, Bellocchio também desenvolve com cuidado a relação entre Massimo e o pai, que, naturalmente mais distante e frio, se afasta de vez após a morte da esposa.

Refletindo em sua perigosa profissão um desejo possivelmente inconsciente de suicídio, Massimo parece incapaz de se desvencilhar das imagens de sua infância e da incompreensão acerca do que houve na noite que alterou irremediavelmente sua vida, chegando a soar como pura negação sua insistência em acreditar que se tratou de um ataque cardíaco fulminante. Da mesma maneira, é interessante notar como, durante certo período, ele encontra no futebol uma válvula de escape – e o processo que leva a este encontro é retratado de forma tão orgânica pelo filme que se torna fácil perceber por que o esporte acaba desempenhando papel tão essencial na vida de tantos (mesmo que, como eu, você não tenha uma proximidade particular com este).

Remetendo à lógica narrativa de Alain Resnais em Meu Tio da América (eu ficaria surpreso caso esta referência não seja proposital), Bellocchio permite que compreendamos os impulsos destrutivos de Massimo em vários pontos de sua trajetória ao incluir, antes de certas atitudes tomadas pelo personagem, planos rápidos de um programa de tevê que via na infância e que aterrorizava sua mãe, transformando a figura do personagem sombrio que o estrelava numa explicação quase abstrata dos efeitos das perdas sofridas.

Montado com brilhantismo por Francesca Calvelli, que cria uma estrutura cronologicamente fluida, Tenha Bons Sonhos usa a recorrência dos flashbacks como um modo inteligente e eficaz de ilustrar, através da natureza inesperada de suas aparições, como nossas memórias frequentemente se mostram tão determinantes quando o que vivemos no presente, moldando nossas personalidades, alterando expectativas e – no pior dos casos – limitando nossa capacidade de sonhar com um futuro que compense um pouco as dores do passado.

 

Herança de Sangue (Blood Father), de Jean-François Richet

Herança de Sangue é um filme que deveria ter sido lançado diretamente em vídeo, não ganhado a distinção de encerrar o Festival de Cannes – e duvido que isto teria acontecido caso não tivesse, como protagonista, ninguém menos do que Mel Gibson.

Houve um tempo, claro, em que uma produção como esta seria protagonizada por Steven Seagal, Chuck Norris, Jean-Claude Van Damme ou Mark Dacascos – e, nos últimos anos, uma escolha natural seria Nicolas Cage. Que Gibson tenha caído tanto em sua carreira a ponto de seguir os passos dos integrantes deste grupo é lastimável.

Não que o longa não seja moderadamente divertido, pois é. Iniciando com uma sequência artificial que traz a jovem Lydia (Erin Moriarty) sendo obrigada por seu namorado criminoso Jonah (Diego Luna) a atirar em alguém, baleando-o em vez disso e fugindo desesperada, Herança de Sangue nos apresenta a John Link (Gibson), ex-alcóolatra e ex-presidiário que, sóbrio há dois anos, agora trabalha como tatuador no trailer que também lhe serve de residência. É quando Lydia – que é sua filha – pede auxílio e os dois, agora perseguidos pelos capangas de Jonah, são obrigados a fugir.

Quase redimido pela presença de seu astro, o filme se beneficia imensamente da intensidade que o ator traz para praticamente todos os seus papéis – e até mesmo ao acordar o sujeito demonstra uma vitalidade particular. Projetando um olhar que oscila entre a psicopatia e a tristeza, Gibson é um daqueles intérpretes cujos rostos vão se tornando mais e mais interessantes à medida que envelhecem, já que passam a projetar um mundo de experiência através de cada ruga (e é fascinante como ele consegue ter rugas até no nariz). Compondo Link como um sujeito instável que resmunga continuamente para si mesmo e parece apreciar a violência mesmo querendo abandoná-la, Mel Gibson torna Herança de Sangue “assistível” sempre que está em cena, o que é uma proeza. Em contrapartida, a jovem Erin Moriarty se apresenta como um vácuo de carisma, enquanto Diego Luna opta pela caricatura, jamais projetando a ameaça necessária. Fechando o elenco, os sempre geniais (e pouco conhecidos) Michael Parks e Dale Dickey fazem o que podem com suas pequenas participações, enquanto William H. Macy só não é completamente esquecido porque consegue arrancar alguns risos com sua quase ponta.

Parecendo encarar os vários preconceitos do protagonista como algo divertido (e Gibson já tem problemas demais neste sentido para não ter percebido isso), o filme é, em última análise, uma brincadeira com diversos longas exploitation da década de 70 e os filmes de ação barata da década de 80.

Assim como eram O Fim da Escuridão, Plano de Fuga e Os Mercenários 3, últimos três trabalhos do ator antes deste projeto. Pelo visto, ele empacou de vez na carreira, o que é um tremendo desperdício de seu talento.

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
PUBLICIDADE
PUBLICIDADE

Você também pode gostar de...

Festivais e Mostras
Festival de Berlim 2016 - Dia 07
Festivais e Mostras
Festival de Cannes 2023 - Dia #08
Festivais e Mostras
Festival de Berlim 2018 - Dia #06