Se meu encantamento por Pokot, novo trabalho da veterana Agnieszka Holland, já havia se tornado considerável durante sua projeção, este sentimento só aumentou quando, ao final da sessão, algumas (poucas) vaias soaram na grande sala do Berlinale Palast. Considerando a qualidade técnica da produção e de sua performance central, nada justificaria esta reação a não ser o fato de o filme ter tocado na ferida de certos espectadores ao se apresentar como um libelo apaixonado pela defesa dos animais e do meio-ambiente – e qualquer coisa que sugira algum ativismo contra grandes interesses inevitavelmente provocará a hostilidade de certos setores do público.
Aliás, estou sendo pouco preciso: o que a diretora polonesa faz aqui não é “sugerir ativismo”, mas pregar o valor das revoluções diante do poder estabelecido. Para isso, ela usa Janina Duszejko (Agnieszka Mandat-Grabka), uma engenheira civil aposentada que agora vive em uma cabana isolada e passa os dias com seus dois cães em meio às paisagens bucólicas que a cercam. Infelizmente, a região em que mora é também um paraíso para caçadores, que, além de muitos, também mantêm posições influentes na cidadezinha local, ocupando os postos de prefeito, chefe de polícia e mesmo padre. É então que alguns destes indivíduos começam a aparecer mortos, exibindo marcas misteriosas que apontam para ataques de animais.
Evocando com competência uma boa atmosfera de suspense, Holland pontua o longa com planos que se detêm nas lindas locações e em sua fauna – e não demora muito até que os diversos animais vistos durante a projeção comecem a assumir um ar sinistro. Para este sentimento contribui também a excelente trilha de Antoni Lazarkiewicz, que intercala temas que salientam a tensão e outros que são puramente melancólicos, como se comentassem o horror da destruição de todas aquelas belas criaturas e de seu habitat – uma beleza refletida no design de som, que transforma a experiência em uma imersão sensorial através dos ruídos constantes como os do vento, dos pássaros ou o estalar da madeira das árvores à distância.
No entanto, o aspecto narrativo mais eficiente de Pokot é sua estratégia de frequentemente levar o espectador a enxergar tudo a partir do ponto de vista da própria natureza – e quando há uma caçada, por exemplo, vemos não os homens com suas espingardas, mas o terror e o desespero assustado dos animais em fuga (ou apenas seus gritos de dor à distância). Com isso, torna-se fácil a identificação com a postura repleta de compaixão da protagonista, que é imaginada por Agnieszka Mandat-Grabka como uma mulher de olhar gentil que sofre profundamente diante do autêntico holocausto (como descreve um personagem) que vitima tantas espécies. Assim, é fácil compreender como a heroína por vezes parece sentir estar vivendo em um mundo dominado por loucos – uma sensação que Agnieska Holland evoca visualmente através dos planos-detalhe que enfocam a boca de personagens dizendo absurdos de crueldade ou em cenas como aquela em que um padre usa o púlpito para basicamente justificar a caça e a tortura de animais, quando os planos holandeses, os cortes rápidos e as grandes angulares conferem um tom angustiante ao que vemos.
Eficiente ao nos apresentar ao cotidiano do vilarejo, aos seus habitantes e aos seus costumes, Pokot é beneficiado por um roteiro impecável em sua construção, já que cada elemento, por mais trivial que seja, eventualmente desempenha um papel específico em sua carpintaria.
Mas é mesmo em sua coragem ao sugerir que certas batalhas só podem ser vencidas através do combate ativo e que o protesto passivo, por mais civilizado que seja, nem sempre é o mais eficaz – e embora não possa dizer que concordo com tal postura, certamente compreendo o sentimento por trás desta.
Já meu sentimento com relação a Viceroy’s House não é difícil de adivinhar: basta contar o número de “afffffffs” que escrevi em meu caderno de anotações durante a projeção deste longa na mostra competitiva da Berlinale. Dirigido por Gurinder Chadha (Driblando o Destino), que chega a usar um elemento de sua história pessoal para despertar simpatia nos letreiros finais, o filme se passa em 1947, quando os britânicos se preparavam para devolver o governo da Índia ao seu povo – algo que é usado quase que como pano de fundo para um romance novelesco, cafona e risível.
Tendo início com a chegada do novo (e último) vice-rei britânico da Índia, Lord Mountbatten (Hugh Bonneville) e de sua esposa Edwina, o roteiro se propõe a retratar as dificuldades impostas pela divisão do país entre sikhs, hindus e muçulmanos – estes, uma minoria liderada por Muhammad Ali Jinnah (Denzil Smith), que luta pela fundação de uma nova nação que os abrigue: o Paquistão. Tentando costurar um acordo entre Jinnah, Jawaharlal Nehru (Tanveer Ghani) e Mahatma Gandhi (Neeraj Kabi), Lord Mountbatten aos poucos percebe que terá um banho de sangue nas mãos caso não aja rapidamente para completar o processo de independência da Índia.
Nascida no Quênia e criada na Inglaterra, a diretora Gurinder Chadha entrega seu distanciamento óbvio de seus antepassados indianos ao basicamente representá-los como um povo raivoso e autodestrutivo cujos piores impulsos precisam ser contidos pelos magnânimos britânicos que por três séculos se apossaram de seu país. Ah, esporadicamente ela até se lembra do papel opressivo e interesseiro dos invasores, claro, mas apenas o bastante para voltar a apresentá-los com simpatia: o vice-rei é encarnado por Hugh Bonneville (uma mistura de Colin Firth e Jim Broadbent) como um bonachão cheio das melhores intenções, sua esposa Edwina (uma Gillian Anderson terrivelmente afetada) surge como uma mulher obcecada com a inclusão dos indianos em tudo que faz e até mesmo o general Hastings Ismay (Michael Gambon), que assume o interesse dos ingleses pelo petróleo local, exibe uma expressão contrita aqui e ali.
E estes nem são os piores elementos da obra, que aposta numa ridícula e clichê história de amor proibido entre o hindu Jeet (Manish Dayal) e a muçulmana Aalia (Huma Qureshi), que já foi prometida pelo pai a outro homem. Com seus furtivos e sofridos encontros embalados pela trilha melodramática de A.R. Rahman, os amantes se veem divididos como seu país, o que, como não poderia deixar de ser, leva Aalia a dizer coisas como “Eu não sei o que fazer” e “Estou com medo” (ela repete esta última frase duas vezes numa mesma cena).
Já do ponto de vista político, Viceroy’s House não é menos maniqueísta, enxergando Nehru como um líder capaz de concessões, Gandhi como um santo que tudo sabe e Jinnah como um sujeito intolerante e calculista (e é claro que o rival romântico de Jeet é também muçulmano – e seu destino é prova não só do preconceito dos roteiristas, mas também de sua covardia).
Não se envergonhando por incluir cenas pavorosas como aquela em que Jeet e Aalia se procuram no meio da multidão, o longa só despista um pouco sua breguice graças à sua abordagem redutiva, manipuladora e com claros toques de islamofobia. Ou seja: não é apenas cinematograficamente ruim, mas também moralmente corrompido.
O quarto filme que vi neste quarto dia de Berlinale (eu sei que pulei o terceiro; voltarei a ele logo depois, pois quero discuti-lo por último) foi o alemão Die Tochter (Dark Blue Girl), dirigido e roteirizado por Mascha Schilinski. A trama é centrada na garotinha Luca (Helena Zengel), de oito anos de idade, filha de Jimmy (Karsten Antonio Mielke) e Hannah (Artemis Chalkidou), que se divorciaram quando ela tinha cinco. Extremamente próxima do pai, a menina se sente cada vez mais possessiva com relação a este – e quando a família viaja para arrumar a casa de férias que tinham numa ilha grega para vendê-la, Jimmy e Hannah voltam a se apaixonar, o que desperta terríveis crises de ciúmes em Luca.
Oscilando entre momentos de humor e outros mais dramáticos, o elenco envolve o espectador com eficiência, retratando bem os dilemas emocionais complexos que seus personagens passam a viver – e a pequena Zengel, em particular, exibe uma naturalidade admirável, carregando a narrativa. Por outro lado, as transições centradas na imagem de um coração pulsante jamais se justificam, dando a impressão de terem sido mero capricho da realizadora, que, apesar disso, merece fartos elogios pela segurança com que conduz uma obra que exige um tom delicado para funcionar.
Mas falemos de Uma Mulher Fantástica.
A transexualidade não é um tema que o Cinema – especialmente o mainstream - costuma tratar de maneira séria. Quando vemos nas telas personagens que seguem identificações de gênero um pouco diferentes das “tradicionais”, normalmente são tratados como caricaturas e/ou fontes de humor simplistas. De vez em quando, Hollywood gera um Transamerica, um Meninos Não Choram ou um O Beijo da Mulher-Aranha, mas o mais comum é que mesmo as melhores obras adotem a questão como uma muleta narrativa – e quando em 1992 uma produção britânica (cujo título não mencionarei para evitar spoilers) ganhou destaque mundial, a transexualidade de uma personagem foi tratada como uma mera “reviravolta”. E o pior: a atriz que a interpretava foi indicada ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante.
Mas o tempo passa e, aos trancos e barrancos, a sociedade vai evoluindo e se tornando mais receptiva à diversidade, o que se reflete também em sua cultura – o que nos traz ao magistral chileno Una mujer fantástica, que, mesmo reconhecendo a identidade de sua protagonista, Marina Vidal (interpretada de forma arrebatadora por Daniela Vega), não a define por esta. Sim, Marina enfrenta discriminação por não ter nascido com os genitais correspondentes à forma como se enxerga/sente, mas não é apenas em torno disso que o filme se constrói.
Os dez minutos iniciais da projeção, aliás, se concentram em ilustrar seu relacionamento com Orlando (Francisco Reyes), um homem bem mais velho com quem passou a morar recentemente – e logo fica patente como os dois estão apaixonados, felizes, têm química sexual e se respeitam profundamente. Certa noite, porém, Orlando sofre um derrame e as coisas se alteram radicalmente para sua jovem namorada, já que, de imediato, Marina é vista com suspeita pela equipe do hospital, como se fosse de alguma forma responsável pelo aneurisma rompido do companheiro.
Esta é, infelizmente, apenas a primeira das muitas indignidades sofridas pela moça a partir daí. De modo geral, contudo, Una mujer fantástica cerca Marina de pessoas que tendem a tratá-la com respeito, desde sua patroa até sua irmã e o cunhado – e é isto que o torna tão brilhante, já que nos leva a observar a infinidade de microagressividades que tendem a passar despercebidas por quem as enxerga de fora. Atitudes como manifestar desconforto apenas pela presença do(a) outro(a) ou mesmo uma tendência a julgá-lo(a) seguindo critérios diferentes, como a detetive que, fazendo de tudo para mostrar-se compreensiva e sem preconceitos, diz todas as coisas certas, usa os gêneros adequados ao conversar, mas não consegue evitar manifestar uma desconfiança subjacente ao que diz.
Da mesma maneira, Marina constantemente se vê diante de pessoas que se preocupam mais em declarar sua tolerância do que em praticá-la – pessoas como a ex-esposa de Orlando, Sonia (Aline Küppenheim), que, desculpando-se antecipadamente e afirmando que o comentário que fará não é fruto de preconceito, diz “não saber o que está vendo” ao olhar para a garota. (Que tal “um ser humano”?) Em outras palavras: Sonia é como todos aqueles que usam a expressão “não tenho preconceito, mas” e que frequentemente gritam para o mundo como “até têm amigos (assim ou assado)”, garantindo que o absurdo que expressarão a seguir (e sempre vem um absurdo associado a este tipo de comentário) será apenas uma observação inocente.
Não é à toa que Marina parece estar sempre de espírito armado ao conversar com novas pessoas, adotando os modos introspectivos como um escudo natural. Ao mesmo tempo, a atriz Daniela Vega é tão expressiva que, mesmo sem nada dizer, evoca simplesmente através do olhar como sua personagem registra as ofensas que ouve – e, em contrapartida, é comovente constatar sua sensibilidade ao fazer o possível e o impossível para respeitar o sofrimento de Sônia.
O mais admirável no trabalho do diretor Sebastián Lelio, porém, é o respeito que o próprio filme tem para com sua personagem-título. Quando alguém pergunta a Marina se esta já passou pelas cirurgias de redesignação sexual, por exemplo, recebe como resposta o que deveria ser óbvio: que aquela é uma questão particular e que a pergunta nem sequer deveria ter sido feita – algo que a obra honra ao jamais ceder à tentação de expor a genitália da protagonista (e de sua intérprete). Aliás, ao contrário: Una mujer fantástica traz um plano que ficará entre os mais belos de 2017 ao enfocar Marina nua, deitada na cama e com um espelho cobrindo seu sexo e refletindo seu rosto, numa representação simbólica do que realmente importa ao tentar defini-la.
Ciente de como é fácil revoltar-se e condenar atos preconceituosos ostensivos e brutais, este lindo filme e sua fabulosa atriz escancaram o tipo de intolerância venenosa e cotidiana que soam quase inocentes e nascem mais da ignorância do que da maldade e do ódio. E nossa capacidade de identificá-las (ou não) diz muito sobre nós mesmos e a extensão daquela que deveria ser nossa maior virtude: o exercício da empatia.
12 de Fevereiro de 2017
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