Depois de quatro dias dormindo menos de cinco horas por noite, me dei o direito de perder a primeira sessão do quinto dia, o drama alemão Helle Nächte. Do jeito que as coisas são, acabará vencendo o Urso de Ouro só para me sacanear. (Algo assim quase ocorreu no Festival de Cannes de 2015: perdi um único filme em sua primeira sessão, Dheepan, mas consegui vê-lo na reprise que sempre ocorre no domingo, antes da premiação. À noite, ele venceu a Palma de Ouro.)
Assim, o primeiro que vi foi a comedia The Party, escrita e dirigida por Sally Potter e que traz um elenco que, listado em ordem alfabética nos créditos, é composto apenas por nomes que poderiam encabeçá-lo sem qualquer constrangimento. Depois de uma breve introdução em que vemos uma porta se abrindo para revelar uma mulher apontando um revólver para a câmera, o título da obra – A Festa - surge já criando um contraste que será a base da narrativa ao acompanhar sete personagens que se reúnem para celebrar a nomeação de um deles para o cargo de Ministro da Saúde do governo britânico.
Ou melhor: ministra. Vivida por Kristin Scott Thomas, ela faz os últimos preparativos do jantar enquanto seu marido Bill (Timothy Spall), com uma expressão aturdida, bebe na sala ao lado, alheio ao mundo. Aos poucos, os convidados começam a chegar: April (Patricia Clarkson), velha amiga de Janet, e seu namorado Gottfried (Bruno Ganz); Martha (Cherry Jones), velha amiga de Bill, e sua parceira Jinny (Emily Morter), que está grávida de trigêmeos após fazer inseminação artificial; e Tom (Cillian Murphy), um banqueiro cuja esposa Marianne, assistente de Janet, se atrasará para o evento.
Embora ambientado praticamente em um único local, o longa adota uma linguagem que jamais permite que soe teatral ou rígido demais, sendo montado por Emilie Orsini e Anders Refn com uma agilidade que leva seus já econômicos 77 minutos a passarem de maneira surpreendentemente rápida. Além disso, a fotografia de Aleksei Rodionov é certeira em seu preto-e-branco, conferindo um peso emocional ao roteiro que o torna mais rico: se em sua essência The Party segue as convenções clássicas de uma comédia de costumes, visualmente ele constantemente remete a um drama intimista, com quadros fechados que nos aproximam dos personagens – uma combinação bastante eficaz.
Saltando entre um personagem e outro e expondo seus conflitos pessoais – que acabam impactando e influenciando os demais participantes da festa -, o roteiro parte de uma situação simples e a complica rapidamente através de revelações que tiram aquelas pessoas de suas zonas de conforto, obrigando-as a reavaliar, no espaço de pouco mais de uma hora, suas visões de mundo e acerca daqueles à sua volta. Isto, aliás, é o que mantém o longa sempre interessante: se Janet inicialmente soa fria e desperta certa antipatia, gradualmente percebemos elementos de sua personalidade (pessoal e política) que aumentam nossa admiração, ao passo que a agitação movida a cocaína de Tom, que o apresenta como um indivíduo instável e perigoso, oculta um homem cuja motivação é mais humana do que poderíamos supor.
É aí, por sinal, que a competência do elenco se estabelece instrumental: especialmente por ser movida pelos personagens e pelos diálogos, em vez de por ações e pelo que poderíamos chamar de “trama”, A Festa depende da capacidade destes intérpretes de colorir suas composições ao mesmo tempo em que definem traços básicos que levam o público a conhecê-los rapidamente. Não é à toa que logo antecipamos uma tirada cínica e ácida sempre que o filme corta para Patricia Clarkson, uma observação sonhadora e hilária quando vemos Bruno Ganz e assim por diante. Além disso, mesmo considerando a brevidade da projeção, a intensidade de atrizes como Cherry Jones e Emily Mortimer se encarregam de construir ligações emocionais que nos fazem importar com suas relações.
Trazendo revelações até o último segundo (literalmente), The Party é uma produção que, por baixo de sua natureza aparentemente descompromissada, oferece uma notável sofisticação.
Outro título participante da mostra competitiva que conferi foi o japonês Mr. Long, um filme cujo impacto emocional, confesso, me pegou completamente de surpresa. Escrito e dirigido pelo japonês SABU, o longa gira em torno do assassino-título (Chen Chang), que, depois de falhar ao tentar matar um pequeno mafioso, quase é morto e, em fuga, vai parar numa vizinhança miserável em uma pequena cidade, onde conhece o adorável garotinho Jun (Run-yin Bai). Depois de preparar algumas refeições para o menino, que vive com a mãe Lily (Yi Ti Yao), uma ex-prostituta viciada em drogas, Long atrai a atenção de alguns moradores locais, que, encantados com sua comida, montam um carrinho para que ele possa vendê-la ao lado de um templo da região.
Com uma abordagem narrativa contemplativa que reflete o temperamento introspectivo do protagonista, Mr. Long transforma o silêncio constante do sujeito em uma fonte de mistério: não só nos perguntamos o que ele está sentindo em relação ao que vive, mas imaginamos o que o levou a se tornar um matador, já que parece (e “parece” é a palavra-chave, pois não podemos ter certeza) perfeitamente feliz na cozinha. Além disso, como veio de Taiwan para o Japão e não sabe falar a língua do país, ele mal compreende o que seus novos amigos dizem, o que o isola ainda mais (além de reforçar sua ligação com Jun, que fala mandarim).
Aliás, o tom adotado por SABU é de uma complexidade que pode enganar a princípio: se os novos vizinhos de Long assumem uma função quase que de bufões, jamais passando qualquer impressão de naturalismo, as performances do trio principal (Long, Jun e Lily) são calcadas no minimalismo absoluto, num contraste que beneficia enormemente a obra. E se esta peca pontualmente ao apresentar uma cronologia pouco clara (quanto tempo a moça leva para se livrar das drogas?) ou ao introduzir um longo flashback que parece se intrometer na projeção, estes erros são mais do que compensados pelas funções que estes elementos exercem: seja lá quanto tempo dure, o processo de Lily é importante para forjar a ligação entre esta e Long, ao passo que o flashback é instrumental para que conheçamos a trajetória da garota e de seu filho.
E como eu disse no princípio, o fato é que Mr. Long provoca uma forte reação no espectador: o incidente mais trágico do filme, por exemplo, provoca um impacto colossal justamente em função da leveza que o antecedeu – e a mesma lógica se aplica às súbitas explosões de violência que contrastam com a calmaria que as cerca.
Já as lágrimas que vêm ao final são um resultado de todos estes elementos, incluindo seus contrastes e, claro, a excepcional dinâmica do elenco.
Agora peguem todos estes elogios, invertam e o apliquem ao chinês The Taste of Betel Nut (Bing Lang Xue), que tolerei enquanto pude, deixando o cinema depois de 70 dos 84 minutos de projeção por saber, desde os primeiros dez minutos, como os dez últimos seriam. E a previsibilidade ainda assim é o menor de seus problemas. Quero que este filme, o HD que hospeda sua versão digital e o equipamento utilizado para criá-lo sejam destruídos num incêndio.
Menos frustrante, mas tampouco muito melhor é o francês Sage femme, cujo elenco é encabeçado por duas formidáveis Catherines: Frot e Deneuve. Vivida pela primeira, Claire é a parteira do título, que, certo dia, recebe uma ligação da personagem interpretada pela segunda: Béatrice, que foi a amante por quem seu falecido pai abandonou sua mãe. Inicialmente relutante em se encontrar a mulher com quem conviveu durante parte da adolescência e que subitamente deixou sua vida, Claire aos poucos passa a aceitá-la em seu cotidiano por querer ajudá-la em seu tratamento contra um câncer, o que serve de motivação dramática para o restante da história.
Dirigido e escrito por Martin Provost, o filme é um estudo de personagem construído em torno dos contrastes entre as personalidades das duas mulheres: se Claire é disciplinada e racional, Béatrice vive de impulsos e autoindulgências. A partir daí, a narrativa segue seu caminho óbvio: Claire se torna gradualmente mais espontânea e vai (re)encontrando a alegria de viver, blábláblá, etc. e tal.
Sim, as duas atrizes (e também o sempre bom Olivier Gourmet, cujo personagem se interessa romanticamente pela protagonista) fazem o ótimo trabalho que esperamos delas, mas Sage femme, em si, não soma muito às sua carreiras.
Por falar em carreiras, há pouco mais de cinco anos, quando escrevi sobre o trabalho de estreia de Júlia Murat, o lindo Histórias que Só Existem Quando Lembradas, encerrei o texto dizendo que aquela era uma jovem artista a ser observada. Pois se seu segundo longa demorou todo este tempo para surgir, ao menos não me desmentiu: Murat é um talento inquestionável.
Co-escrito ao lado de Matias Mariani, Pendular é uma obra complexa, madura, tematicamente rica e que convida o espectador a interpretá-la, não fazendo quaisquer concessões que comprometam sua proposta de estudar, com paciência e de forma contemplativa (uma palavra que usei também para descrever seu primeiro filme), a relação entre o casal de artistas (Raquel Karro e Rodrigo Bolzan) que, morando num loft no qual criam suas obras (Ela é dançarina; Ele, escultor), divide o espaço com uma fita crepe laranja para que cada um tenha sua área de trabalho – e não demora muito para que Ele comece a ultrapassar a fronteira com suas obras gigantescas.
Dedicando-se a estudar o processo criativo do casal e, indiretamente, também a análise que sua Arte motiva - em seu círculo de amigos há um crítico (Márcio Vito) -, Pendular se concentra especialmente nEla, que, além da pressão que se impõe para criar seu novo espetáculo, ainda deve lidar com o desejo do parceiro de ter um filho. Aberta a explorar o espaço ao seu redor e tudo que nele se encontra para se estimular como criadora, Ela cria uma coreografia improvisada com duas cadeiras (um momento mágico do longa, quando vemos pela primeira vez o resultado de sua lógica como artista) e, ao retomar a parceria com um antigo colega (Neto Machado), passa a conceber movimentos que jogam com o equilíbrio alcançado apenas através do corpo do outro, às vezes servindo de apoio para e às vezes se atirando sobre o companheiro de dança, num jogo de colaboração e “confronto” que reflete sua própria relação com o namorado.
Esta dicotomia encontra eco também no hábito que Ele tem de jogar videogames através da Internet com um adolescente (suponho que seja um adolescente, pois só ouvimos sua voz), que em algumas ocasiões têm uma lógica colaborativa e, em outras, de luta (e há também um instante no qual o garoto apenas assiste ao amigo que joga à distância enquanto o auxilia com dicas). Não é à toa, aliás, que logo no início da projeção Ele ensina a Ela um “jogo” que criou na infância, usando o vidro embaçado do box do chuveiro para tentar desenhar três círculos ao mesmo tempo, com os dedos, sem deixar que as figuras se toquem - objetivo no qual Ele sempre falha, o que é revelador: assim como seus círculos sempre invadem os espaços uns dos outros, Ele invade o dEla.
Além disso, é instigante notar como Pendular retrata a tensão constante entre a Arte e o artista, cujo impulso natural de se expressar por vezes acaba sendo um fim em si mesmo, não tendo outra razão ou lógica a não ser a de comunicar sua própria necessidade de existir. Portanto, quando o escultor confessa para o amigo crítico que “não tem a mais pálida ideia do que está fazendo”, o que está em discussão é o próprio conceito de Arte – e não é preciso um esforço muito grande de imaginação, por exemplo, para antecipar a reação contrariada de alguns espectadores diante das várias cenas de sexo do filme e que, particularmente, considero como extensões naturais das danças que o longa enfoca. Em ambos os casos, Murat emprega o entrelaçar dos corpos como um elemento narrativo para traduzir sentimentos e embates, demonstrando o prazer que os envolvidos extraem um do outro e que num caso é estético e, no outro, sensorial.
Seja como for, no entanto, o que Pendular demonstra bem é que a obra nasce mesmo que o próprio artista não tenha plena consciência de onde ela veio (assim como a dançarina segue um cabo de aço a partir de seu ponto final para tentar descobrir sua origem). Em certo momento, por exemplo, depois de um instante de tensão com o namorado, Ela surge chorando e, de repente, se levanta e inicia uma coreografia com o parceiro de dança que, usando uma camisa da mesma cor daquela que o escultor usara, possivelmente o representa. Com isso, o que era dor se transforma em Arte que, então, se transforma em emoção ao atingir o espectador.
E é então que eu, como crítico, experimento esta emoção e a levo para uma etapa final ao transformá-la em palavras.
13 de Fevereiro de 2017
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