O finlandês Aki Kaurismäki é um diretor de estilo inconfundível. Frequentemente extraindo humor através de uma estratégia narrativa repleta de rigidez aparente, o cineasta cria universos com toques de absurdo e que, no entanto, enfocam dilemas e sofrimentos bastante reais.
Responsável por obras como O Homem sem Passado e O Porto, em The Other Side of Hope (Toivon tuolla puolen) ele conta duas histórias que eventualmente se conectam: a do refugiado sírio Khaled (Sherwan Haji), que chega à Finlândia escondido no depósito de carvão de um navio, e do caixeiro-viajante Wikström (Saraki Kuosmanen), que decide vender todo seu estoque, abandonar a esposa alcóolatra, apostar tudo no pôquer e usar o dinheiro ganho para abrir um restaurante decadente que já vem equipado com três funcionários.
Ainda que ambientado nos dias de hoje e refletindo questões contemporâneas (Khaled está em busca da irmã desde que o restante de sua família foi morta em Alepo), O Outro Lado da Esperança conta com um design de produção que constantemente parece situá-lo na década de 50, desde as roupas e o carro de Wikström até as músicas ouvidas durante a projeção. Mas se isto permite que Kaurismäki confira certa nostalgia à narrativa, serve também para levar seus elementos mais pesados a assumir uma densidade maior – como, por exemplo, a perseguição que Khaled sofre por parte de neonazistas. Por outro lado, o cineasta não exagera no drama: todos os funcionários do governo responsáveis pelo processo de imigração, por exemplo, são cordiais e justos – o que não quer dizer que o filme fantasie o resultado alcançado pela burocracia.
Já o humor atravessa o filme de ponta a ponta, constantemente surgindo da formalidade com que os personagens dizem as coisas mais absurdas (“Vou me mudar para o México para beber sake e dançar hula-hula”). Há, também, uma boa quantidade de gags visuais, como a que envolve um homem limpando uma vidraça que não existe, mas estas são incluídas pelo diretor de forma orgânica, surpreendendo o espectador precisamente por virem em cenas que jamais soam como se quisessem provocar o riso.
O segundo longa do dia, também integrante da mostra competitiva, foi o documentário alemão Beuys, sobre o artista plástico Joseph Beuys, que se tornou o primeiro de seu país a ganhar uma exposição solo no Guggenheim, em Nova York. Aliás, confesso minha completa ignorância a respeito do sujeito, que, além de esculturas, executava também performances em público, quando aparecia sempre com o chapéu que se tornara sua marca registrada.
Infelizmente, se antes eu não sabia nada a respeito de Beuys, após assistir a este documentário a situação não mudou muito. Montado a partir de imagens de arquivos (registros em filmes, aparições na TV, fotos) e de algumas poucas entrevistas com pessoas que conviveram com o artista, o longa evita o lugar-comum das narrações em off, o que é ótimo, mas não encontra uma outra forma de organizar seu material de maneira minimamente clara. Sem exibir qualquer estrutura lógica ou cronológica aparente, o documentário vai e volta no tempo, muda de assunto constantemente (retomando alguns posteriormente) e tem um sério problema de ritmo, o que, além de tudo, promove um tédio crescente. Pelo pouco que aprendi sobre Beuys durante os cerca de 100 minutos de projeção, posso dizer que ele merecia um filme melhor.
Por falar em filme melhor, há um escondido em algum lugar de Rifle, coprodução entre Brasil e Alemanha dirigida pelo brasileiro Davi Pretto e ambientada nos pampas gaúchos. É ali que mora o jovem Dione (Dione Ávila de Oliveira), que quase não diz nada e, quando diz, é com uma voz mansa mais apropriada a um adolescente do que a um adulto. Morando nas terras de uma família que possui uma pequena propriedade, ele ajuda o dono a cuidar do local enquanto mantém um namorico com a filha deste. Porém, quando grandes plantadores de soja começam a comprar todas as fazendas por ali, Dione vê seu cotidiano ameaçado e, armado com um velho rifle, passa a caminhar pela região atirando em carros que cruzam a estrada.
A linguagem pausada, meditativa, lenta, empregada pelo cineasta é, em sua essência, a correta: é importante que sintamos a cadência da vida do protagonista e dos demais habitantes locais. No entanto, Pretto vai (muito) além e, no processo, confunde o contemplativo com a mais pura autoindulgência. Aliás, é curioso que ontem, ao falar sobre Pendular, eu tenha abordado o impulso artístico de se expressar mesmo quando não se tem nada a dizer – e em vários pontos de Rifle, a sensação é exatamente esta: a de que o diretor está tateando no escuro em busca de um significado.
O frustrante é que o longa tem sua parcela de bons momentos: já o plano inicial, que traz Dione apagando uma mensagem riscada no tronco de uma árvore, é sugestiva e promissora. Infelizmente, por mais que o roteiro sugira algo no passado do rapaz (mesmo não se interessando muito em explorar este algo), Dione é simplesmente desinteressante – e o pouco que descobrimos a seu respeito é apenas tolo. Por outro lado, ele é cercado por figuras bem mais intrigantes, do seu patrão ao lendário Mariano, que possui um modo curioso de se expressar (“Eu não sou de raça morredeira”, ele diz, em sua curta aparição).
Além disso, há aspectos narrativos de Rifle que merecem créditos, desde sua bela fotografia de Glauco Firpo, que explora bem as locações, ao design de som de Marcos Lopes e Tiago Bello, que sugerem a atmosfera pacífica, quase idílica, da qual Dione não quer abrir mão (além disso, há instantes particularmente inspirados, como aquele em que o som do arame de uma cerca é absorvido pela trilha sonora e transformado em um pequeno tema.
Mas Dione não apenas é um protagonista desinteressante como também antipático – e seu hábito de atirar em inocentes não o torna mais atraente, por maior que seja o simbolismo que o filme tente atribuir a isso. Para completar, os extensos planos que o trazem caminhando lentamente são, como já dito, irritantemente autoindulgentes.
Não costumo ser o mais impaciente dos espectadores, mas há um limite para a quantidade de tempo que estou disposto a passar acompanhando um jovem psicopata (alegórico ou não) andando calado de um lado para outro.
Os pampas também foram o cenário do título que vi a seguir na Berlinale: a coprodução Brasil-Uruguai Mulher do Pai, estreia na direção da atriz Cristiane Oliveira e que se classifica ao mesmo tempo como estudo personagem e como exemplar do subgênero “coming-of-age” (obras que lidam com a transição para a idade adulta). O contexto do filme de Oliveira, porém, é bastante particular, já que se passa num vilarejo no sul do país e acompanha Nalu (Maria Galant), uma garota de 16 anos que mora com a avó e o pai cego num casebre fora do que poderia ser chamado de “zona urbana” (se é que isso se aplica ao local). Quando a avó morre de repente, a moça se vê sozinha com o pai, Ruben (Marat Descartes), pela primeira vez na vida – e a ausência daquela que funcionava como ponto de equilíbrio entre os dois logo traz resultados desconfortáveis.
O primeiro ato da produção, que nos apresenta ao cotidiano de Nalu e ao seu universo, não demora a demonstrar a habilidade da cineasta estreante, que faz um trabalho eficaz ao estabelecer a geografia local, as condições humildes da casa, da pequena cidade e da escola e a relação entre a protagonista, seus parentes, a melhor amiga e a professora Rosario (Verônica Perrotta), uma uruguaia que ensina Artes para os jovens do lugar. Além disso, o roteiro escrito por Oliveira e Michele Frantz planta com sucesso a origem do arco dramático que servirá de centro à narrativa: a frieza entre Nalu e Ruben e a aproximação gradual entre os dois.
O elenco, por sinal, desempenha com uma simplicidade enganosa a função de dar vida a personagens com vidas interiores tão ricas, jamais se entregando a histrionismos ou a muletas de interpretação para ilustrar a evolução daquelas pessoas. A novata Maria Galant, em particular, encarna Nalu com uma timidez que soa convincente justamente por só ser observada nos instantes nos quais suas inseguranças de adolescente são testadas, enquanto Descartes conduz Ruben de uma postura amargurada, sisuda e fisicamente rígida a um ponto no qual constatamos com clareza como permitiu que parte do peso que sempre carregou deixasse seus ombros. Para finalizar, a uruguaia Perrotta vive Rosario como uma mulher espontânea e generosa que, ao perceber a angústia de uma aluna, demonstra um interesse genuíno em auxiliá-la, envolvendo-se mais do que poderia antecipar.
Tocante sem se render a draminhas artificiais, Mulher do Pai tem confiança no mundo que criou e nas trajetórias dos personagens, o que traz força adicional a momentos como aquele no qual Ruben relembra o instante em que tocou o rosto da mãe pela primeira vez em anos e se surpreendeu ao notar como estava diferente do que se lembrava, já que a falta de visão preservara seu rosto jovial em sua memória. Do mesmo modo, uma infinidade de tristes significados podem ser deduzidos a partir de uma troca de diálogos que, de tão sutil, pode passar despercebida: ao ouvir que sua mãe, que mal conheceu, “fazia coisas bonitas”, Nalu responde casualmente “Eu fui acidente”, o que expõe a maneira como se enxerga e, principalmente, como julga que o pai a encara.
Com uma fotografia que não tenta chamar a atenção para si mesma ainda que seja competente ao evocar um tom frio que reflete a tristeza daqueles indivíduos, o filme por vezes exibe um preciosismo que só soa como tal em função de certa artificialidade, talvez fruto da inexperiência da diretora – e notem, por exemplo, o plano no qual Nalu e Ruben podem ser vistos de lados opostos de uma porta que os separa e verão como a jovem atriz se coloca cuidadosamente no ponto determinado por Oliveira, chegando a ajustar a posição para não estragar o simbolismo almejado. Por outro lado, é inegável, a beleza de construções como aquela que sugere que o ponto mais interessante da vila é a estação de trem - que, afinal, é o local de onde todos deixam o lugarejo (ou deixariam, já que outro personagem logo esclarece que os trens nem sequer param ali).
E, assim, é uma pena que subitamente Mulher do Pai decida introduzir um subtema que, em vez de enriquecer a narrativa, desaba sobre esta com um peso que quase provoca o desmoronamento de todo o resto, iniciando com uma conversa entreouvida por alguém que respira pesadamente e tornando-se rapidamente incômoda a ponto de comprometer o envolvimento do espectador.
Possivelmente imaginada como uma forma de ressaltar a carência daquelas pessoas e o desejo crescente de uma conexão, o tal subtema soa apenas arbitrário e desconfortável, o que, associado ao desfecho que apela para uma solução fácil e artificial, impede que esta estreia de Cristiane Oliveira provoque o impacto que as habilidades reveladas da diretora inicialmente sugeriam.
O quinto longa do dia foi o documentário Maman Colonelle, produção congolesa que acompanha a coronel Honorine Munyole, encarregada do departamento de defesa de crianças e mulheres que sofreram maus tratos e/ou abuso sexual. Quando a projeção tem início, a oficial está encerrando um ciclo de trabalho na cidade de Bukavu, no Congo, após ser transferida para Kisangani, onde constata que as instalações a partir das quais irá operar se encontram em estado lamentável.
Se a intenção do longa é nobre, a execução é pavorosa: parecendo mais um daqueles episódios sensacionalistas de programas policiais, o diretor Dieudo Hamadi acompanha a protagonista em várias de suas incursões, levando a duas consequências graves: a exploração das crianças que já haviam passado por tanta violência (seus rostos não são cobertos nas imagens) e uma clara alteração no comportamento da coronel, que assume uma pose obviamente moldada para as câmeras, o que transforma cada uma de suas saídas em campo em uma oportunidade de fama e espetáculo. Não duvido da sinceridade da sra. Honorine ao se envolver neste projeto; o resultado, porém, deixa claro que foi um erro de julgamento.
Para encerrar de forma coerente um dia que, de modo geral, foi cinematograficamente desastroso, assisti a outra seleção inexplicável da mostra competitiva: o espanhol El bar. Dirigido por Alex de la Iglesia, o filme se passa no local-título, onde todos os personagens se encontram quando subitamente um dos clientes leva um tiro na cabeça ao tentar deixá-lo, sendo acompanhado em seu destino por outro homem que busca ajudá-lo. Aterrorizados, os demais debatem o que fazer a seguir, já que a rua diante do estabelecimento parece abandonada, a TV não está noticiando o ocorrido e, para piorar, os dois corpos são removidos sem que ninguém perceba.
Promissor ao menos em seus créditos iniciais, que criam um clima de tensão e mistério com as inquietantes imagens de micro-organismos se reproduzindo, El bar mantém a expectativa em seu bom primeiro plano, que nos apresenta a alguns dos personagens numa coreografia sem cortes, e também graças à fotografia de Ángel Amorós, que, através da correção de cores, satura os tons mais quentes e retira a força dos demais, criando uma estilização que combina com os (estereó)tipos encarnados pelo elenco.
Sem nem tentar sugerir qualquer realismo, El bar é uma daquelas produções que intrigam com sua premissa, mas perdem força assim que as respostas vão sendo reveladas – e aquelas oferecidas aqui são tão decepcionantes que, quando um dos personagens desvenda o que está ocorrendo, a primeira reação que tive foi a de acreditar que ele não estava falando sério. Mas estava. Para piorar, isto ocorre logo no princípio do segundo ato, condenando-nos a mais 80 minutos de idiotices.
Ainda mais estúpido, no entanto, é o esforço que o roteiro pontualmente faz para tentar abraçar alguma discussão séria e apresentar-se como alegoria, como ao trazer Nacho (Mario Casas) protestando por ser vítima de desconfiança apenas por ter barba ou ao enfocar Israel (Jaime Ordóñez) afirmando que os outros pretendem sacrificá-lo apenas por ser o mais pobre de todos. (Como se não fosse o suficiente, o projeto logo ignora o esboço de comentário social, transformando o mendigo no vilão que persegue o casal de classe média.) Aliás, o próprio conceito de um grupo que, preso em algum ambiente, se entrega a conflitos internos é batidíssimo, sendo empregado por El bar apenas para gerar cenas e mais cenas nas quais todos gritam com todos.
Já as menções aos relativamente recentes atentados terroristas em Paris e Moscou são indício de puro mau gosto por parte do diretor, que ainda expõe uma faceta misógina ao frequentemente levar os personagens masculinos a chamar as mulheres do elenco (são apenas três) de “putas” e ao encontrar um pretexto tolo para tirar a roupa da bela protagonista, Blanca Suárez (uma versão espanhola de Anne Hathaway que até se sai bem com o papel mal desenvolvido que vive).
Irritante e tolo, El bar é um filme que não sabe a diferença entre terror e histeria ou entre humor e escatologia. E é o espectador quem paga por isso.
14 de Fevereiro de 2017
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