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REPORTAGEM - Cansada de ser “faxineira do governo”, Carmen resiste Brasil em Cena

“Você vai ficar aqui? Você sabe que não funciona assim...”. O diálogo parece saído do longa Era o Hotel Cambridge, onde atua como uma das protagonistas, mas Carmen Silva está apenas vivendo mais um dia como líder do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC). O jovem negro de cabelos trançados explica rapidamente que vai regularizar sua situação, e ela insiste. “Precisa, não pode chegar e ir ficando”, o que praticamente reproduz uma situação exposta no filme, na qual um imigrante sírio recebe um parente recém-chegado do país de origem.

O antigo Hotel Cambridge, no Centro de São Paulo, abriga 174 famílias, desde 2012. Falido em 2004, ficou abandonado até 2010, quando foi desapropriado pela Prefeitura. “Quando nós tomamos a decisão de ocupar, este ou qualquer outro imóvel, é porque toda a negociação já se esgotou e as nossas necessidades não foram atendidas. A ocupação é o último recurso”, explica “Dona” Carmen, como é chamada pelos moradores do Cambridge.

Nascida na Bahia, mãe de oito filhos, Carmen chegou a São Paulo em 1995. “Fui vítima de violência doméstica, resolvi dar um basta naquela situação e vim para São Paulo. Como todo nordestino, todo migrante, fazendo êxodo urbano, vim em busca de oportunidades, de uma casa”, conta a líder comunitária. “E me deparei com uma cidade de pedra, não só pelo concreto, mas pela característica das pessoas. Nessa correria desenfreada, ninguém se cumprimenta, ninguém tem o dom da escuta. ”

Nos primeiros dois anos, Carmen arranjou-se em São Paulo entre casas de amigos ou albergues públicos. Nessa época, conheceu uma colega empenhada na luta por moradia. “Era o tempo dos mutirões, mas eu não acreditava nisso, achava que não ia dar em nada. Eu olhava essa situação sob uma perspectiva capitalista, nem sabia que um cidadão tem o direito básico da moradia. Estava tão acostumada a servir, em uma espécie de escravidão branca, que ignorava meus próprios direitos”, lembra Carmen.

Além do umbigo

Para contentar a colega, que insistia em levá-la ao movimento, Carmen foi. “Comecei a me interessar pelas palestras, a conhecer melhor a situação, e vi que o problema não estava só no meu umbigo. Existiam várias outras pessoas com os mesmos problemas. ” Percebi que não basta chegar a São Paulo e fazer planos para si mesmo. É preciso fazer parte da cidade. E como fazer parte de um local que não é seu? Conhecendo como a cidade funciona. Quando você entende a cidade, você faz parte dela. ”

Foi nesse momento – metade dos anos 1990 – que começou a se consolidar a iniciativa de ocupar o Centro. “Nós começamos a questionar: por que o trabalhador tinha que morar nos bairros periféricos, às vezes passando mais de três horas na condução? E isso com o Centro vazio! E totalmente urbanizado”, empolga-se a líder do MSTC. “O Centro, nessa altura, era só transitório: as pessoas trabalhavam, iam embora, tanto que a população tinha medo de andar à noite no Centro. Quando as pessoas passaram a ocupar a região, ficou claro que era viável morar e trabalhar aqui. ”

Em novembro de 1997, Carmen conseguiu sua primeira residência, na capital paulista, por meio da ocupação de um edifício do INSS, na avenida Nove de Julho. “Aí, minha vida deu uma guinada, porque passei a ter um endereço. A ditadura vai mudando. Nas ditaduras de 1930, depois em 1964, era obrigatório andar com uma carteira assinada. A nossa ditadura branca, hoje, é a ditadura do endereço. Sem endereço, você não pode ter emprego, conta em banco, nada. ”

Cambridge: o edifício e o filme

Instalada na ocupação, Carmen conseguiu trazer os filhos para São Paulo, e continuou militando na causa da moradia. “Sempre separei meu trabalho da minha atividade no movimento. Trabalhei durante vinte anos em uma empresa de seguros, na qual cheguei a ser gerente comercial. Saí recentemente, para montar um escritório próprio. Hoje, tenho condições de pagar meu próprio aluguel, por isso não preciso ficar em um local ocupado. Sempre foi difícil manter o trabalho e a militância, mas é uma questão de planejamento”, explica.

O antigo Hotel Cambridge entrou na história em um momento em que o MSTC estava procurando imóvel para abrigar famílias que haviam sido despejadas de outra ocupação. “Tem hora que a gente precisa trabalhar como corretor do Governo, faxineira do Governo. O hotel já estava falido e viemos atrás do proprietário porque tínhamos uma demanda antiga”, lembra Carmen.

O Cambridge estava em condição de ser desapropriado, pelas dívidas que acumulava, e isso aconteceu em 2010. “Só que a nossa demanda não foi atendida: mandaram as pessoas para além de Itaquera, na Zona Leste, um local sem estrutura alguma, como sempre acontece. Em 2012, nós resolvemos ocupar porque sabíamos que movimentos não éticos estavam se mobilizando para tomar conta e que o poder público não tinha interesse de tornar o edifício uma habitação de interesse social (HIS). Ele ia ser oferecido para o mercado imobiliário. ”

Em 2014, quando a diretoria Eliane Caffé procurou Carmen, com o projeto do filme, o foco era diferente. “Ela veio em busca dos refugiados. Nós, brasileiros, somos refugiados dentro do nosso próprio país, passamos todas as necessidades sendo brasileiros. Imagina quem chega de fora... Como se estabelece? Como aluga uma casa? Não consegue. Vem parar dentro das ocupações.”

Como lembra Carmen, Era o Hotel Cambridge não foi o primeiro filme feito em ocupações do movimento, mas os outros eram ‘de fora para dentro’. “Faziam a filmagem e iam embora, não era a nossa história. ” Desta vez, foi diferente. Foram quase dois anos de preparação para o filme, em um convívio diário, multiplicado pela presença das oficinas que se formaram com os moradores, para realizar o longa.

Para Carmen, o filme representou uma troca de aprendizado essencial para o movimento. “Por exemplo: nós tínhamos receio com a mídia. A mídia convencional sempre nos rotulou como vândalos, bandidos. E o filme levou para fora a nossa alma”, afirma Carmen. Em dado momento do filme, o personagem de José Dumont pergunta: “Quem ocupa? ” Carmen responde. “Nós, o povo que está aí, dentro desses quadrados. É um povo que teve a coragem de denunciar um sistema que não tem políticas efetivas. ”

E continua: a experiência com o filme também abriu a mente dos participantes do movimento, mostrando que não era possível manter-se no individualismo. “Quem se individualiza morre. Então, esses vários coletivos que se formaram para realizar o filme mostraram como a soma de esforços faz com que uma iniciativa dê certo.

Sobre o autor:

Alessandra Alves é jornalista com múltiplos interesses. Além do amor pelo cinema, pela música e pela literatura, também atua no jornalismo esportivo e na comunicação corporativa. Paulistana, corintiana, feminista e inimiga de fascistas, assina a coluna "Brasil em Cena", de entrevistas e reportagens sobre o cinema brasileiro contemporâneo.
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