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Festival de Cannes 2017 - Dia #05 Festivais e Mostras

Dia 05

Vamos aos filmes:

18) O conceito de “autoralidade” pode variar imensamente, referindo-se a preocupações temáticas do realizador, a preferências estéticas, a sensibilidades de humor particulares, a obsessões sociais/políticas ou a uma combinação de dois ou mais destes aspectos. Ou pode simplesmente se referir ao fato de que um diretor insiste em fazer basicamente o mesmo filme de novo e de novo e de novo, alterando pequenos elementos, mas criando uma obra que, em sua essência, é composta por títulos intercambiáveis.

Para mim, Noah Baumbach se encaixa nesta última categoria. Em maior ou menor grau, seus trabalhos tendem a se concentrar em personagens excêntricos (geralmente com ambições artísticas) e em suas relações familiares e profissionais, empregando um senso de humor inofensivo e exalando um ar de pretensão intelectual, como se estivessem dizendo algo relevante sobre a condição humana quando, de fato, parecem ser exatamente o que são: histórias criadas por um realizador que há muito tempo vive numa bolha de privilégios e não consegue mais imaginar algo plausível fora desta – e ao ler o subtítulo em parênteses de The Meyerowitz Stories (New and Selected), confesso ter soltado um “ai, ai” mental que logo se confirmaria apropriado.

Girando em torno da família-título, o roteiro acompanha Danny (Adam Sandler), filho mais velho de Harold (Dustin Hoffman), um escultor que, depois de décadas de carreira, vive naquele limbo entre a respeitabilidade e a falta de reconhecimento. Recém-divorciado e prestes a enviar sua única filha, Eliza (Grace van Patten), para a faculdade, Danny muda temporariamente para a casa que o pai divide com a quarta esposa, Maureen (Emma Thompson), uma alcoólatra que parece ter estacionado na década de 60. Eternamente frustrado por reconhecer que o favorito do pai é seu meio-irmão Matthew (Ben Stiller), um bem-sucedido contador, o sujeito divide este sentimento de relativo abandono com a irmã Jean (Elizabeth Marvel), cujos modos rígidos indicam um isolamento emocional forjado ao longo dos anos.

Para ilustrar os efeitos da dinâmica nada saudável daquela família sobre seus integrantes, Baumbach opta pelo óbvio: em um momento ou outro, os três homens da família parecem adoecer (Danny tem um problema no quadril; Harold sofre os efeitos de uma pancada na cabeça, Matthew enfrenta uma alergia recorrente).  Da mesma maneira, o roteiro não adota qualquer sutileza para ressaltar a preferência do patriarca pelo caçula – e, ao longo da projeção, várias vezes vemos Danny reagir de forma dolorida ao testemunhar mais um ato de favoritismo do pai, seja ao usar o nome de Matthew como senha do computador ou para batizar uma escultura. Já em outras passagens, tudo é exposto verbalmente, já que o personagem de Hoffman parece incapaz de fechar a boca por um só segundo, só não se tornando insuportável graças ao talento de seu intérprete, que consegue se equilibrar entre a chatice e a vulnerabilidade.

Mas a grande surpresa de The Meyerowitz Stories é (e não acredito que escreverei isso) Adam Sandler, já que, assim como Paul Thomas Anderson em Embriagado de Amor, Baumbach explora a persona que o sujeito estabeleceu ao longo de sua carreira para criar uma figura ao mesmo tempo típica do ator (um homem cheio de raiva reprimida que vez por outra a deixa escapar) e também diferente (o lado infantiloide, de criança-num-corpo-de-adulto, felizmente não se encontra presente). Com isso, Sandler surge como o integrante mais vulnerável da família, demonstrando um estoicismo que desperta a simpatia do espectador. Enquanto isso, Ben Stiller, outro intérprete especialista em indivíduos explosivos, complementa bem a dinâmica com Sandler, ao passo que Elizabeth Marvel, como Jane, surge como a voz da razão entre os irmãos apenas por ser a mais introvertida.

Ainda assim, o roteiro é raso demais para que consigamos nos importar de fato com aquelas pessoas – e Baumbach não ajuda ao repetir os mesmos recursos para criar um humor que vai se tornando óbvio e, portanto, menos eficaz com o passar do tempo (como ao insistir em cortar cenas durante gritos de algum personagem ou ao conceber os vídeos feitos pela filha de Danny como softcores com aspirações feministas que soam ainda mais implausíveis por serem imediatamente compartilhados com sua família). Para piorar, o longa tem o mau gosto absurdo de tentar fazer graça com o trauma de infância de uma personagem abusada por um amigo da família e que, ao vê-lo já adulta, sai correndo numa cena que se crê engraçada quando é apenas estúpida.

Obviamente desesperado para ter algum peso dramático, The Meyerowitz Stories é desses filmes que não ofendem nem se destacam, não se arriscam e nem apelam apenas para o clichê, e que pode até ser bonitinho enquanto está sendo projetado, mas é esquecido menos de meia hora depois de chegar ao fim.

 

19) Em julho de 2009, o economista carioca Gabriel Buchmann estava prestes a completar uma viagem de um ano à Ásia e à África e retornar ao Brasil. Depois de visitar quase 30 países com o objetivo de se preparar para um estudo envolvendo políticas públicas voltadas para nações pobres, o estudante decidiu subir até o pico de uma montanha no Maláui como última etapa de sua jornada – e dezessete dias depois de dispensar o guia no meio do percurso e desaparecer, foi encontrado morto por dois moradores locais. Agora, seus últimos 70 dias de vida são recriados pelo diretor Fellipe Barbosa, que foi seu amigo de juventude e já havia comandado duas excelentes obras: o documentário Laura e a ficção Casa Grande (além de colaborar com o roteiro do igualmente soberbo Sangue Azul).

Estruturado como um extenso flashback que acompanha o protagonista (João Pedro Zappa) e sua namorada Cristina (Caroline Abras) durante passagens específicas deste período final de sua vida, Gabriel e a Montanha não é exatamente uma ficcionalização da jornada do personagem-título, já que combina aspectos documentais à narrativa: além de realmente ser rodado nos locais pelos quais o jovem passou, o filme utiliza, em seu elenco, algumas das pessoas reais que com ele conviveram, trazendo também depoimentos que, ouvidos em off, conferem um toque ainda mais pessoal e íntimo à obra.

Assim, Barbosa não vê problema em incluir um plano no qual uma criança que participa da cena olha diretamente para a câmera, por exemplo, já que, de forma indireta, ele mesmo se assume como parte do processo – e, de maneira similar, várias fotos tiradas pelo verdadeiro Gabriel pontuam a projeção, embaçando ainda mais a fronteira entre a realidade e a ficção. Neste sentido, é importante também reconhecer os esforços feitos pelos realizadores para pintar um retrato amplo das culturas e da população nativas, fugindo de estereótipos e de retratos simplistas e refletindo, com isso, os esforços do próprio Gabriel em suas viagens.

Interpretado com sensibilidade por João Pedro Zappa (que eu já havia elogiado ao escrever sobre Boa Sorte), o protagonista é um jovem repleto de empatia e que, justamente por demonstrar respeito e interesse pelas pessoas que encontra, fugindo de qualquer experiência como mero turista, logo conquista o carinho destas, chegando a dividir a cama como hóspede improvisado de indivíduos que pouco antes eram meros desconhecidos. No entanto, o diretor não comete o erro de beatificar o amigo-convertido-em-personagem, que também acaba se apresentando como um sujeito que às vezes se comporta de forma egoísta e mesmo machista com a namorada – e a impaciência demonstrada por esta na ótima performance de Caroline Abras deixa claro como a dinâmica do casal podia se mostrar complicada (o que, consequentemente, a torna mais real). Além disso, Gabriel pontualmente exibe uma arrogância irritante, o que se contrapõe à gentileza com a qual trata os novos amigos e as crianças que conhece.

Evocando uma tensão crescente subjacente à viagem do rapaz e que é fruto do fato de sabermos que cada nova etapa de sua jornada o aproxima ainda mais da morte, Gabriel e a Montanha é um filme comovente e trágico, mas que também consegue celebrar a curta vida do brasileiro. Sim, ele foi, por negligência ou teimosia, responsável pelo próprio fim precoce (e várias vezes pensei no Christopher McCandless cuja história é contada em Na Natureza Selvagem), mas isto só torna a tragédia ainda maior.

E ao ver a imagem do verdadeiro Gabriel nos segundos finais da projeção, acabei sentindo uma fisgada que sugere não só a eficácia desta obra, mas a dor experimentada por aqueles que o conheceram.

 

20) O contrário ocorre, infelizmente, em Carré 35, um trabalho cuja importância pessoal para seu diretor é patente, mas que jamais toca de fato o espectador. Incomodado por jamais ter visto uma foto ou mesmo ouvido falar muito sobre sua irmã mais velha, que morreu aos três anos de idade e antes de ele nascer, o ator francês Éric Caravaca estreia na direção de documentários ao decidir descobrir mais sobre ela, investigando imagens dos arquivos da família e entrevistando os próprios pais, o irmão e qualquer um que possa oferecer alguma informação sobre a menina.

Trata-se de uma premissa com potencial dramático óbvio e que poderia ter rendido um curta-metragem poderoso. Infelizmente, ao tentar expandir o material para pouco mais de uma hora de duração, Caravaca cria uma experiência repetitiva e que, para preencher o tempo, adiciona longos interlúdios com narrações supostamente carregadas de lirismo, mas que são apenas dispensáveis.

 

21) Outro que cria uma narrativa repetitiva e problemática é o japonês Kiyoshi Kurosawa, cujo Before We Vanish consegue a proeza de transformar uma trama envolvendo invasão alienígena, conspiração governamental e várias sequências de luta e tiroteio em um tédio sem fim.

Dando inicio à narrativa de forma promissora, Kurosawa acompanha uma garota que, depois de testemunhar o massacre de sua família, caminha sorridente, como num transe, no meio de uma movimentada rodovia, provocando o capotamento de um caminhão. A seguir, conhecemos o casal formado por Narumi (Masami Nagasawa) e Shinji (Riûhei Matsuda), que se encontra em crise – isto é, até que Shinji, depois de desaparecer por alguns dias, retorna com a personalidade completamente alterada. Completando a história, o jornalista Sakurai (Hiroki Hasegawa) conhece uma terceira pessoa afetada pelo fenômeno, logo descobrindo que o trio foi “infectado” por alienígenas que planejam invadir a Terra e, para isso, roubam os “conceitos” de várias vítimas, deixando-as incuravelmente afetadas.

Esta, por sinal, é a ideia mais interessante apresentada por Before We Vanish: a de que, ao retirar determinados conceitos (ou seja: o significado de palavras específicas) da mente de alguém, os aliens eliminam a capacidade que o indivíduo teria de “viver” qualquer sentimento relacionado a ele – e, assim, ao tirar da irmã de Narumi a compreensão de “família”, a garota se torna instantaneamente refratária ao contato com os parentes (da mesma forma, ao perder a definição de “trabalho”, o patrão da protagonista passa a brincar compulsivamente no escritório). É decepcionante, portanto, que o máximo que Kurosawa consegue fazer com isso é criar cena após cena em que vemos os vilões tomando palavras diversas dos humanos.

Como se não fosse o suficiente, o diretor, ao tentar saltar de um gênero para outro durante a projeção, é bem-sucedido somente em levá-los a sabotar uns aos outros: o impacto das cenas mais violentas é diminuído pelas passagens “cômicas” (que têm direito até mesmo a temas musicais engraçadinhos), o aspecto romântico é sacrificado pela frieza dos personagens e os componentes de ficção científica são abandonados em prol de confrontos desinteressantes envolvendo metralhadoras e drones.

Ou talvez alguém tenha tomado de Kurosawa o conceito de “coesão”.

 

22) Michael Haneke é um cineasta que tem um prazer especial em torturar seu público, seja ao se negar a seguir as expectativas que ele mesmo gera (como na cena do controle remoto em Violência Gratuita), ao criar sequências em que nos obriga a testemunhar a crueldade com a qual seus personagens são capazes de agir (A Fita Branca), ao criar um mistério e só oferecer uma pista importante nos créditos finais (Caché) ou ao retratar com dolorosa secura as indignidades da velhice (Amour). Aliás, eu poderia citar basicamente toda a filmografia do austríaco como exemplos de seu dom para o sadismo, mas ele me poupa deste trabalho ao criar um “melhores (piores?) momentos” em seu novo filme, Happy End (e é claro que o título é irônico).

Escrito pelo próprio diretor, o roteiro gira em torno dos membros da rica família Laurent, cujo patriarca, Georges (Jean-Louis Trintignant), perdeu o interesse em viver desde a morte de sua esposa e passou o controle dos negócios do clã para a filha Anne (Isabelle Huppert) – que, por sua vez, tenta incutir no filho Pierre (Franz Rogowski) a disciplina necessária para vir a substitui-la, mas sem sucesso. Enquanto isso, o irmão de Anne, o médico Thomas (Mathieu Kassovitz), é obrigado a assumir a guarda de Eve (Fantine Harduin), filha de seu primeiro casamento, desde que sua ex-esposa entrou em coma após o que parece ter sido uma tentativa de suicídio.

Habilidoso ao amarrar todas estas subtramas e ao apresentar os personagens e as relações entre estes, Haneke cria um universo povoado por figuras que, embora materialmente abastadas, parecem viver dominadas pela tristeza e pela insatisfação. Mas, mais do que isso, aqueles personagens são vitimados pela própria incapacidade de comunicação, algo que o cineasta ressalta com ironia ao frequentemente trazê-los trocando e-mails, conversando por janelas de chat em redes sociais ou enviando mensagens pelo celular – e o que Happy End salienta, com isso, é o contraste entre os meios cada vez mais abundantes de contato entre as pessoas e o fato de que, como resultado paradoxal, estas se tornam cada vez mais isoladas (e um dos melhores planos do longa é aquele em que, depois de lermos as mensagens intensamente eróticas enviadas e recebidas pela amante de Thomas, finalmente a vemos no escuro e encolhida sobre a cama, num canto do quarto).

Do mesmo modo, é estimulante testemunhar um veterano como Haneke adotando recursos contemporâneos de linguagem, como ao usar, como câmera subjetiva, uma tela de celular fazendo streaming ao vivo (com direito a comentários publicados sobre a imagem) ou ao criar um vídeo de youtuber. Em contrapartida, não há como negar que vários destes recursos (bem como o plano que traz o registro de uma câmera de segurança) soam reciclados de trabalhos anteriores do diretor (e, de novo, Caché vem imediatamente à mente), o que tira um pouco de seu frescor.

Seja como for, é impossível não reconhecer o controle que o realizador tem sobre a narrativa, seja ao investir em seus longos planos nos quais a câmera só se movimenta ancorada aos personagens, seja ao incluir elipses surpreendentes que subitamente revelam como incidentes importantes ocorreram sem que os víssemos (e que 99,9% dos diretores explorariam sem hesitar). Além disso, o humor de Haneke, mesmo que pontual, é eficaz pelo estranhamento que provoca, surgindo aqui, por exemplo, em uma cena na qual Pierre, cheio de energia e frustração, canta em um karaokê.

No entanto, nem mesmo a segurança técnica do cineasta consegue contornar o vazio de seu roteiro, que, ao se concentrar nos problemas de uma família europeia branca e rica, traz tramas que poderiam ter saído de uma novela de Manoel Carlos, pecando ainda por comentar de forma superficial e tola a situação dos imigrantes no continente.

Longe de ser um dos melhores esforços de Michael Haneke, Happy End ainda assim segue a linha autoral do cineasta, que aqui traz, como a maior perversão dos personagens, sua solidão autoimposta.

22 de Maio de 2017

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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