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Festival de Cannes 2017 - Dia #07 Festivais e Mostras

Dia 07

 

26) Misako é uma redatora de audiodescrição para versões de filmes voltadas para deficientes visuais. Seu novo projeto é o trabalho de um diretor veterano sobre perda e que tem um estilo complicado para converter em palavras. Enquanto testa várias versões de seu roteiro, Misako (Ayame Misaki) conhece Masaya (Masatoshi Nagase), um dos participantes do grupo que está ajudando a avaliar o resultado e que, fotógrafo famoso, está sendo obrigado a se adaptar ao fato de estar perdendo a visão.

Escrito e dirigido por Naomi Kawase, Radiance é, como podemos constatar apenas pela descrição acima, uma obra relativamente óbvia em suas ideias (um fotógrafo cego? Que se envolve com uma audiodescritora? O que vem a seguir: um chef que perde o paladar?). Esta obviedade reflete-se também nas demais subtrama, já que Kawase inclui um drama pessoal extremo na juventude da protagonista (seu pai simplesmente desapareceu certo dia), outro em seu presente (sua mãe está perdendo a memória e a identidade pro Alzheimer) e ainda os amarra aos de seu par romântico. Para piorar, a realizadora não vê problema em usar no longa afirmações tolas como “os deficientes visuais têm grande poder de imaginação”, numa tentativa artificial de enfiar lirismo em todos os aspectos do roteiro.

E, no entanto, apesar de todos estes problemas, Radiance é uma experiência bela e, sim, com certo grau de poesia – e boa parte do mérito cabe à direção de fotografia de Dodo Arata, que adota uma paleta quente e romântica, usando também flares e outros efeitos de refração da luz (como ao passar por um prisma, por exemplo) para reforçar a beleza que cerca os personagens. Além disso, a excelente trilha de Ibrahim Maalouf confere uma atmosfera de melancolia à história, jamais soando excessiva, como se tentasse forçar o público a sentir.

Fortalecido por duas atuações centrais que controlam bem o tom da performance, valorizando a dor dos personagens sem depender de histrionismos, Radiance certamente não é o melhor trabalho de sua ótima diretora, mas sem dúvida alguma reflete seu olhar sensível e sua compaixão por seus personagens.

 

 

27) Apenas por estar em movimento e por trazer o tempo inscrito no que retrata (afinal, não somos nós quem decidimos a duração de cada plano), a imagem cinematográfica possui um imenso potencial narrativo inato: basta vermos algo na tela para imediatamente começarmos a projetar ali histórias e significados diversos. Esta é uma característica que diferencia o Cinema de uma fotografia estática, por exemplo, que podemos apreciar por seus aspectos puramente estéticos sem necessariamente tentarmos situá-la no centro de uma narrativa maior.

Pois é esta distinção que o iraniano Abbas Kiarostami, morto no ano passado, busca explorar neste seu derradeiro trabalho, 24 Frames, partindo de pinturas clássicas e de fotografias que ele mesmo tirou para expandir o contexto no qual se inserem. Para isto, o cineasta tentou imaginar os exatos quatro minutos e trinta segundas que precederam ou sucederam o instante capturado pelas duas dúzias de imagens que compõem esta antologia.

Frequentemente produzindo uma atmosfera lúdica resultante da manipulação digital das imagens iniciais e do composite empregado para inserir elementos novos (e em movimento) nas fotografias, Kiarostami explora também a dimensão sonora da narrativa ao levar o público a criar expectativas a partir de ruídos e músicas adicionado a cada curta – e, assim, um tiro ou uma buzina ouvidos fora de campo já passam a influenciar os objetos presentes nos planos que acompanhamos na tela. Além disso – e embora esta não seja sua preocupação primordial -, o diretor constrói alguma espécie de arco para cada segmento, mesmo que o desfecho destes seja simplesmente um pombo que deixa o frame ou um carro que estaciona diante de uma janela.

Mas 24 Frames pode ser apreciado também como uma fotografia estática, já que seus pontos de partida são precisamente os recortes feitos pelo olhar de Kiarostami. Com isso, logo começamos a identificar escolhas recorrentes feitas pelo cineasta, como sua preferência por retratar paisagens desoladas e animais (normalmente, aves), bem como seu fraco por composições verticais e, na maioria das vezes, cuidadosamente simétricas. Além disso, talvez por trazer seu olhar de cineasta para seus retratos, o iraniano constantemente inclui frames dentro de frames, utilizando cercas, telas de computador, os limites de janelas e as armações destas para calcular as proporções por estas estabelecidas.

Já de um ponto de vista de experimentação narrativa, o filme enfrenta alguns empecilhos que se tornam inevitáveis em função da proposta: se Kiarostami busca explorar como aquelas imagens são meras iniciadoras de um processo que precisa do observador (com sua imaginação e seu referente) para se completar, este processo é sabotado já a partir do momento em que o próprio diretor preenche ele mesmo as lacunas. Além disso, talvez por ter produzido os curtas durante um período de três anos, há uma repetição de temas e soluções que acabam por tornar a experiência repetitiva, o que representa um outro desperdício de oportunidade.

Não que Kiarostami precisasse criar historinhas originais ou mesmo interessantes, já que este não é o objetivo aqui, mas ao negar ao público ao menos a imagem que origina cada segmento, a narrativa se torna desnecessariamente frouxa, já que sabemos que estamos vendo algo que “ocorreu” antes ou depois de... o quê?

Ainda assim, 24 Frames é um trabalho de despedida digno de seu realizador, já que é a prova inconteste de que, aos 76 anos e depois de 46 de carreira, Abbas Kiarostami permanecia inquieto e curioso com relação ao potencial da Arte que dominava tão bem.

 

 

28) Uma das virtudes da mostra Un Certain Regard do festival de Cannes reside em sua disposição contínua de oferecer uma vitrine internacional para novos realizadores e novas propostas. É claro que isto também tende a torná-la um dos elementos mais imprevisíveis do evento: em uma sessão, o espectador descobre um nome inédito e excitante; em outra, é mergulhado no mais profundo tédio enquanto um realizador pretensioso se masturba com nossa atenção por duas horas.

(Um leitor me perguntou no Twitter, mais cedo, como classifico algo como sendo “pretensioso” e respondi que, em resumo, a diferença básica entre “ambição” e “pretensão” é que a primeira mira alto, enquanto a segunda tem certeza de que acertou antes mesmo de atirar.)

Porém, uma das coisas que mais me incomodam em um cineasta não é necessariamente a pretensão, mas a preguiça e a falta de foco; é se propor a discutir algo e abandonar a ideia no meio do caminho, incompleta – e é isto que a diretora Annarita Zambrano faz em After the War, sua estreia em longas-metragens. Escrito pela própria cineasta ao lado de Dephine Agut, o roteiro tem início com um atentado que resulta na morte de um economista italiano que vinha defendendo a retirada de direitos trabalhistas da população e que leva o governo a exigir a extradição do antigo ativista Marco Lamberti (Giuseppe Battiston), criador do grupo que agora reivindica responsabilidade pelo assassinato. Exilado na França há décadas graças a uma decisão do ex-presidente francês François Mitterand de não deportar ex-guerrilheiros que tivessem passado a viver longe da militância, Marco subitamente vê aquela política ser revogada e passa a enfrentar a ameaça de ter que retornar à Itália. Receoso, ele foge com a filha adolescente Viola (Elisabetta Piccolomini), enquanto, em Roma, sua irmã Anna (Barbora Bobulova) enfrenta as repercussões por seu parentesco com alguém procurado.

Pois do que tratará o filme, então? Dos elementos políticos relacionados ao atentado? De uma discussão ética ou mesmo existencial sobre buscar a punição de atos cometidos há décadas e cujo autor já mudou radicalmente? Do jogo político envolvido de ambos os lados? Da dificuldade de Viola em lidar com a identidade de uma versão que jamais conheceu de seu pai? Do dilema da família de alguém odiado pela opinião pública?

Não, não, não, não e não. O que interessa mesmo a Depois da Guerra é pintar Marco como um covarde agressivo que se julga injustiçado, mas não consegue sequer articular por que acredita nisso. Interessa também retratar Viola como uma adolescente rebelde, impulsiva e irresponsável e enxergar Anna como um emblema de virtude e dignidade. Como se isso não bastasse, o roteiro ainda encontra a solução mais estúpida possível para os dilemas de seus personagens, apostando de forma inacreditavelmente equivocada em um acidente tolo e maniqueísta (um deus ex carro, digamos).

E se o filme não tem interesse em explorar os temas que ele mesmo apresenta, não sei por que eu deveria me importar com os resultados que porcamente alcança.

 

29) Escrito e dirigido pelo veterano cineasta francês Jacques Doillon, Rodin é um filme curioso: ao decidir contar parte da trajetória do escultor Auguste Rodin (Vincent Lindon), o longa opta por se concentrar não em sua formação, sua trajetória rumo ao reconhecimento ou mesmo em sua concepção de “O Pensador”, sua obra mais célebre, mas sim nos anos que dedicou a criar a estátua de Balzac e durante os quais manteve um relacionamento tempestuoso com Camille Claudel (Izïa Higelin).

Aliás, ao longo das duas horas de projeção, Doillon e o montador Frédéric Fichefet fazem elipses em momentos que muitos considerariam como essenciais, o que, de forma curiosa, acaba reforçando a montanha-russa representada pelo romance entre os dois escultores, já que em um instante os vemos felizes e apaixonados apenas para, no segundo seguinte, surgirem há meses sem se encontrar. Além disso, o filme se constrói principalmente em torno de longas trocas de diálogos, o que por vezes o faz soar teatral – especialmente por ser quase todo ambientado dentro do estúdio de Rodin.

Mas que estúdio: criado pela excelente designer de produção Katia Wyszkop, o espaço de trabalho do protagonista é um depósito de reproduções de corpos contorcidos e de pedaços soltos de membros que faziam parte de projetos maiores, tornando-se ainda mais convincente graças a detalhes como as manchas de tinta espirrada por todos os lados, da sujeira dominante e dos materiais espalhados pelas prateleiras. Enquanto isso, Lindon surge mais do que convincente como o personagem-título: quando o vemos caminhando em volta de uma escultura, por exemplo, seu olhar sugere um estudo meticuloso dos toques seguintes (que, por sinal, o vemos aplicando com agilidade), ao passo que são evidentes o seu desejo por Claudel e o seu dilema por insistir em manter-se leal à antiga companheira Rose Beuret (Séverine Caneele). Izïa Higelin, por sua vez, incorpora bem o ressentimento de Claudel diante do sexismos que prejudica sua carreira e mesmo aquele com que enxerga o amante por atribuir a este parte da responsabilidade por não ser levada a sério como artista independente.

Hábil ao retratar a maneira sensual com que Rodin toca tanto o corpo de sua(s) amada(s) quanto os objetos ao seu redor (como troncos de árvore, plantas e o mármore), o filme sugere que a atenção dispensada pelo escultor a todos estes elementos é a mesa; o que muda é apenas a intensidade do toque. Mas ainda mais fascinante é constatar como a insistência do artista plástico de palpar tudo que vê soa como um esforço para estimular sua memória tátil, como se ele quisesse criar um repositório de texturas e formas em sua mente e em suas mãos para utilizá-lo quando necessário.

E são elementos como este que tornam Rodin uma obra eficaz, ainda que irregular.

24 de Maio de 2017

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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