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Festival de Cannes 2017 - Dia #08 Festivais e Mostras

Dia 08

30) O elemento pessoal não é algo instantaneamente reprovável em um documentário; ao contrário, às vezes pode ser uma de suas maiores virtudes. Aliás, todo exemplar do gênero é infundido com a personalidade de seu realizador, cabendo a este fazer todo o esforço possível para atingir o maior grau de objetividade. Claro que há filmes cujo propósito principal é precisamente abordar histórias particulares, mas quando o tema é algo mais abrangente, a insistência de um realizador em se forçar como protagonista pode ser terrivelmente frustrante.

É o que ocorre em Demons in Paradise, que aborda o conflito no Sri Lanka entre os cingaleses (budistas) e a minoria formada pelos tâmeis (hinduístas): se durante parte considerável da história do país estes últimos foram privilegiados enquanto colonizados pelos britânicos (que jogavam as etnias umas contras as outras para enfraquecê-las), o período pós-independência resultou em conflitos sangrentos que culminaram, em 1983, com o início de uma guerra civil durante a qual os budistas massacraram os hinduístas.

Movido por suas lembranças da infância, quando teve que fugir ao lado de sua família por viver em uma região controlada pelos cingaleses que os detestavam, Ratnam retorna ao Sri Lanka para recuperar as histórias de horror do período, numa proposta claramente inspirada em The Act of Killing, de Joshua Oppenheimer. Porém, se naquele documentário excepcional tínhamos acesso aos depoimentos dos diretamente envolvidos no genocídio (especialmente dos assassinos), aqui Ratnam concentra tudo em torno de seus parentes – especialmente de seu tio, que, há muito refugiado no Canadá, retorna ao Sri Lanka para ser filmado pelo sobrinho enquanto percorre o antigo bairro perguntando se os ex-vizinhos se lembravam dele, numa longa sequência que provoca mais constrangimento do que horror ou tristeza.

Montado sem disciplina, já que obviamente falta ao documentarista a clareza necessária para saber o que deixar e o que cortar, Demons in Paradise é um projeto que poderia ter sido marcante, já que foi realizado por alguém que conhece o país e suas línguas, mas que, em vez disso, resultou num diário pessoal importante para seu autor, mas só.

 

31) A proposta de Good Time, dirigido pelos irmãos Joshua e Ben Safdie, é algo que fica claro já em seus créditos iniciais, que, grafados em neon, acompanhados por uma música eletrônica e trazendo informações sobre copyright sob o título, apontam uma abordagem estética que agregará elementos das décadas de 70 e 80 para contar a história de Connie Nikas (Robert Pattinson), um rapaz que, determinado a conseguir dinheiro para se mudar com o irmão Nick (Ben Safdie) para um lugar no qual este escape da brutalidade da avó, decide levá-lo em um assalto a banco que logo começa a dar errado.

Fotografado por Sean Price Williams com uma paleta cujas cores parecem ter sido filtradas por luzes fluorescentes que tiram sua vitalidade e diminuem consideravelmente o contraste, o filme tem uma estética calculadamente crua que reflete com propriedade o universo do protagonista, que, mesmo criminoso e capaz de violência, projeta um ar de inocência e doçura que, somado às decisões impulsivas e estúpidas que frequentemente toma, resulta num protagonista surpreendentemente complexo para uma obra que tem mais pretensões de funcionar como exercício de estilo do que como estudo de personagem.

Parte do mérito por isso cabe a Robert Pattinson, que, além de trazer suavidade a uma figura tão bruta, mantém as boas intenções de Connie sempre palpáveis sob seu desespero e suas explosões – e é curioso perceber como somos simultaneamente convencidos de que ele não faria mal às pessoas que cruzam seu caminho, mas também de que talvez fosse melhor não testar esta suposição. Igualmente instrumental para a eficácia da narrativa é a performance do co-diretor Ben Safdie, que, como Nick, convence o público da deficiência do jovem sem apelar para caricaturas (sua composição é tão boa, devo dizer, que me vi compelido a pesquisar se ele realmente tinha alguma limitação cognitiva). Aliás, Jennifer Jason Leigh alcança um efeito similar com sua personagem, que, com apenas poucos minutos de tela, deixa uma forte e triste impressão de uma mulher frágil psicológica e emocionalmente. Fechando o elenco principal, Barkhad Abdi, uma revelação em Capitão Phillips, aparece como prova viva das dificuldades enfrentadas por minorias para conseguir papéis relevantes no Cinema.

Sem jamais conceder um descanso para o público, Good Time tem um claro parentesco com obras como Depois de Horas, mantendo-nos juntos ao protagonista durante um relativamente curto – mas intenso – espaço de tempo, já que atira todo tipo de obstáculo no caminho de Connie, que também faz sua parte para piorá-los ao tomar sempre as piores decisões possíveis. A partir de certo ponto, aliás, a situação do rapaz passa a beirar o cômico, despertando risos nervosos (intencionais) da plateia diante da constatação de que os realizadores não permitirão um momento sequer de alívio – e se o longa tem algum problema, este não é o tédio.

Com um desfecho melancólico, mas também esperançoso (na medida em que aqueles indivíduos podem ter alguma esperança), Good Time não é o tipo de trabalho que normalmente esperaríamos ver na mostra competitiva de Cannes, mas isto diz mais sobre nossas preconcepções acerca do que um festival como este deveria oferecer do que sobre o filme em si.

 

32) Há uma lei na França que prevê, no caso de internação involuntária de alguém por motivos psiquiátricos, um prazo de doze dias para que esta seja avaliada por um juiz, que poderá ou não estendê-la pelo tempo necessário. Interessado nos procedimentos relacionados a estas decisões, o documentarista Raymond Depardon conseguiu a permissão do judiciário francês, dos médicos, dos pacientes e dos familiares destes para acompanhar algumas das audiências, utilizando-as para produzir este ótimo 12 jours.

Basicamente limitando seus pouco mais de 80 minutos de projeção às audiências de cerca de uma dezena de indivíduos, o longa acaba tendo, como personagens principais, os quatro juízes (dois homens e duas mulheres) que se revezam nos encontros, demonstrando uma compaixão admirável ao lidarem com “réus” (na falta de um termo melhor) que frequentemente se mostram incapazes de responder diretamente às perguntas feitas, entregando-se a monólogos sobre forças conspiratórias e vozes que saem de cadeiras elétricas. (É claro que podemos nos perguntar se os magistrados se comportam da mesma maneira quando não há câmeras registrando as conversas, mas esta é uma outra discussão.)

Mas o que fica tristemente claro, no processo, é que essencialmente aquela legislação específica parece ter sido criada apenas para conferir aura de legalidade a algo que pode ser descrito como uma condenação sem julgamento, já que – e isto não é spoiler, já que não estamos falando de um suspense – nenhuma das pessoas retratadas pelo documentário ganham a liberdade, mesmo não tendo passado formalmente pelas cortes e pela deliberação de um júri. Sim, na maior parte dos casos, podemos perceber – como leigos, ressalto – que os homens e mulheres que se sentam diante dos juízes não soam como indivíduos que gostaríamos de encontrar na rua, mas isto também revela muito sobre o preconceito inspirado pela palavra “insanidade”. O que, de novo, é uma questão que mereceria seu próprio filme.

 

33) O mexicano Michel Franco é um dos cineastas mais consistentes de sua geração. Responsável pelos excelentes Depois de Lucia e Chronic, ele volta a criar, em Las hijas de Abril, uma obra cuja força dramática é construída de maneira sutil e gradual, surpreendendo o espectador ao atingir um clímax que, como outros de sua filmografia, provoca um considerável impacto emocional.

Escrito pelo próprio diretor, o roteiro nos apresenta inicialmente às irmãs Clara (Joanna Larequi) e Valéria (Ana Valeria Becerril), que moram sozinhas em uma casa diante da praia em Puerto Vallarta. Grávida do namorado Mateo (Enrique Arrizon), adolescente como ela, Valéria esconde o fato de sua mãe, Abril (Emma Suárez), que vive na Cidade do México. Certo dia, porém, Abril volta a morar com as filhas ao ser informada pela mais velha sobre a gravidez da caçula – e sua gentileza e preocupação com ambas aos poucos vai de um cuidado de mãe a algo que sugere uma instabilidade subjacente capaz de levá-la a ações difíceis de compreender.

Esta, contudo, é simplesmente a descrição da trama, não a essência do longa, que faz o possível para desenvolver ao máximos as três mulheres – e, em maior ou menor grau, cada uma delas se torna o centro de um dos atos do filme: se começamos com Clara e sua preocupação com a irmã, o extenso segundo ato se dedica a Abril e suas atitudes, ao passo que Valéria encerra a projeção. Esta decisão de Franco é inteligente não só por evitar um maniqueísmo que nos levasse a uma identificação maior com esta ou aquela personagem, mas também ao usar nossos conhecimentos prévios como trampolim para que absorvamos melhor as “reviravoltas” da trama.

É natural, aliás, que as performances do trio de atrizes sejam instrumentais para a eficácia do longa: Ana Valeria Becerril, por exemplo, ilustra belissimamente o arco de Valéria, que vai de adolescente inconsequente a jovem mãe exausta, chegando enfim a um ponto de força interna insuspeita. Joanna Larequi, por sua vez, deixa patente a submissão psicológica de Clara à mãe, assumindo uma postura quase infantil sempre que esta se encontra em cena, aceitando as críticas e determinações de Abril com uma triste expressão de resignação. Para finalizar, a veterana Emma Suárez assume o papel mais complicado do projeto, já que as ações de sua personagem poderiam facilmente soar inverossímeis em vez de apenas surpreendentes – e a carência que a atriz incute quase como subtexto em composição é o segredo que a torna tão poderosa. (Já Enrique Arrizon, como Mateo, é corretamente passivo em suas reações.)

Demonstrando a dominação de uma mulher sobre as filhas e o genro por reconhecer como estes são jovens demais para saber como reagir, Las hijas de Abril é um estudo de personagens (e o plural é proposital) que pode até frustrar o espectador, mas graças à personalidade enlouquecedora da mulher mencionada no título.

 

34) Durante 34 anos, Teresa (Paulina García) trabalhou como empregada doméstica para a mesma família argentina. Viu o filho único de seus patrões se tornar um adulto, registrou seu crescimento no batente da porta de seu quarto e jamais retornou ao seu Chile natal. E agora, com o casamento do rapaz, ela foi informada de que seus serviços não serão mais necessários, recebendo a opção de ir trabalhar na casa dos sogros do jovem – que fica em outra cidade. Resignada, ela inicia a viagem até que, depois que ônibus estraga, fica temporariamente presa em um vilarejo, conhecendo o caixeiro viajante El Gringo (Claudio Rissi).

Durando breves 78 minutos e contando uma história simples de maneira impecável em sua sensibilidade, La novia del desierto é o filme de personagem por excelência, investindo cada cena, cada plano, na tarefa de tentar compreender quem é aquela mulher, o que a move e o que sonho – se é que sonha. Interpretada pela chilena Paulina García (tão brilhante em Las analfabetas), Teresa tem os olhos tristes e um rosto que se recusa a dar qualquer sinal do que passa em sua mente, indicando décadas de treinamento para anular-se ao morar, trabalhar e, consequentemente, dedicar 24 horas de sua vida, sete dias por semana, aos interesses de seus empregadores. Assim, quando a vemos se permitir uma lágrima enquanto se prepara para dormir em seu pequeno quarto ou um sorriso quando ouve uma gracinha do Gringo, o espectador se vê surpreso com uma reação que em qualquer pessoa seria trivial, mas que em Teresa é impactante como a explosão de uma bomba.

Contrapondo-se à tristeza de García, Claudio Risse transforma o Gringo em uma figura expansiva, sempre pronta a gargalhar e cujos elogios à beleza de Teresa soam – e isto é importantíssimo – sempre sinceros em vez de galanteios baratos e automáticos feitos por um homem disposto a tentar transar com qualquer mulher que surja em seu caminho. Quando o Gringo olha para a protagonista, acreditamos em seu encantamento e também em sua doçura.

Dirigido pelas estreantes Cecilia Atán e Valeria Pivato, o longa traz a protagonista essencialmente em todos os seus planos, mantendo a câmera próxima à atriz na maior parte do tempo – e quando se afasta, normalmente tem a intenção de ressaltar sua pequenez diante do ambiente (e da vida) ou a distância que mantém de outros personagens. Enquanto isso, a trilha composta por Leo Sujatovich é minimalista a ponto de ser quase inexistente, consistindo de poucas notas de piano melancólicas em um ou outro instante.

La novia del desierto é, em suma, uma obra que transpira compaixão, demonstrando carinho e respeito pelos indivíduos que retrata por saber que, para uma pessoa cuja vida inteira cabe numa bolsa de mão, um encontro romântico em um banheiro sujo de um restaurante miserável pode representar um dos momentos mais felizes de sua existência.

26 de Maio de 2017

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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