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Festival de Cannes 2017 - Dia #10 Festivais e Mostras

41) A cineasta Lynne Ramsay é dona de um senso de estilo apurado. Isto, porém, não seria necessariamente um elogio, já que diretores bem menos talentosos do que ela também poderiam ser descritos de forma similar – o que a diferencia destes é sua capacidade de compreender que “estilo” não é algo que precisa necessariamente envolver elegância ou prazer estéticos (embora ela frequentemente também os envolva), sendo poderoso, porém, ao estabelecer atmosfera, ao criar simbolismos complexos ou ao fornecer com inteligência informações sobre os personagens e seu mundo.

Vejamos, por exemplo, seu recente You Were Really Never Here: protagonizado por um Joaquin Phoenix absolutamente brilhante, o filme emprega certas convenções de gênero com o objetivo de fixar determinadas expectativas no público, ancorando-nos na narrativa, mas imediatamente se recusa a segui-las da maneira esperada, fugindo de padrões de desenvolvimento e desfecho que tendem a acompanhá-las e levando o espectador a experimentar frustrações que, longe de enfraquecerem a obra, nos aproximam ainda mais de seu personagem. Assim, se logo percebemos que iremos acompanhar um tipo frequente no Cinema - o assassino profissional -, não demoramos a constatar como este se diferencia de seus pares mais comuns: em vez da competência projetada de forma clichê por figurinos elegantes, como paletós e óculos escuros, Joe é um homem com aparência desleixada e suja, optando por moletons e casacos amarrotados e exibindo também uma barba desgrenhada e semigrisalha que, somada aos cabelos longos, constrói um visual que normalmente não associaríamos a um matador tão requisitado.

Ah, sim: e mesmo tendo facilmente passado dos 40 anos, Joe vive com a mãe.

O fato é que, ao longo dos 95 minutos de projeção, podemos até não descobrir exatamente quem aquele homem é, mas passamos a saber o suficiente para compreendermos por que ele é como é. E, claro, não demoramos a notar seu talento para a violência: “Ouvi dizer que você é bastante... brutal em seus métodos”, diz um cliente, em tom de sondagem, ao contratá-lo para salvar a filha de 11 anos que foi sequestrada por traficantes de mulheres. “Posso ser”, responde Joe depois de uma pausa, como se por um momento estivesse surpreso ao perceber que isto poderia ser visto como virtude em vez de apenas como um modo particular de lidar temporariamente com seus demônios internos.

São hesitações como estas, por sinal, que ilustram a riqueza da composição de Phoenix, um intérprete que frequentemente transforma a passividade aparente de seus personagens em uma sugestão de personalidades atormentadas que poderiam explodir a qualquer momento (como fez em Ela, O Mestre e Era uma Vez em Nova York, por exemplo). Exibindo um ar distraído e ausente que revela um homem menos triste do que vazio, o ator encarna Joe como um indivíduo que se converteu ao longo das décadas em um amálgama de traumas e resultantes distúrbios de personalidade; um sujeito irreparavelmente quebrado que só não se mata porque, por alguma razão misteriosa, se condicionou a seguir mesmo incapaz de identificar qualquer motivo para insistir em fazê-lo – e o segredo de sua relação com a mãe idosa reside em grande parte no conforto que esta lhe oferece não através de carinho, mas do fato de dividir com ele um passado doloroso e não insistir em discuti-lo. Um amor construído em torno de um silêncio que reconhece as próprias causas.

Enquanto isso, Lynne Ramsay cria uma lógica particular (como faz de forma recorrente em sua carreira, incluindo seu longa anterior, Precisamos Falar Sobre o Kevin) através do uso preciso de cores no design de produção e na fotografia – e aqui ela logo oferece um “mapa” para o espectador ao exibir Joe em uma loja, escolhendo ferramentas para seu próximo trabalho, e flertando com um martelo cuja base oferece como opções o amarelo, o azul, o verde e o vermelho. Se o azul, por exemplo, aparece de maneira recorrente nas roupas do protagonista, seu quarto (incluindo o lençol de sua cama) se divide entre esta cor e o amarelo, que é representado também em alguns dos instantes mais dolorosos vividos pelo sujeito, como num rápido flashback de seu tempo como soldado e nas paredes do quarto em que a jovem Nina (Ekaterina Samsonov) é mantida. Já o vermelho, como poderíamos esperar, se mostra marcante em momentos de violência e morte, ao passo que o verde, citado por Joe como sua cor favorita, assume gradualmente uma conotação de esperança de calma ou paz.

Empregando uma trilha dissonante, desafinada e incômoda para levar o público a experimentar o tumulto interno de seu anti-herói (um belo trabalho do compositor Jonny Greenwood), You Were Never Really Here é um filme que também evoca a personalidade de Joe ao retratar a violência de forma brutal e forte, mas também distanciada – e em certo momento, acompanhamos as ações do matador através das imagens captadas por uma câmera de segurança que o convertem em um quase anônimo enquanto percorre vários ambientes espalhando morte.

No entanto, como já mencionado, esta é uma obra que sabe o momento ideal de seguir padrões de gênero, usando-os não como atalho preguiçoso, mas como forma de envolver com eficiência o público. Assim, não precisamos de muitos detalhes para compreendermos como a garotinha Nina encarna um potencial de mudança para Joe não por representar “inocência”, mas por dividir com ele cicatrizes deixadas por anos de abuso físico e emocional. Por outro lado, o ótimo roteiro da própria Ramsay (baseado em livro de Jonathan Ames) se recusa a oferecer catarses artificiais que habitualmente esperaríamos de uma história envolvendo vingança – e a maneira como a trama lida com seu vilão principal, interpretado por Alessandro Nivola, é particularmente interessante.

Criando uma ótima rima visual através de instantes pontuais nos quais vemos Joe observando e sendo observado por alguém apenas para, no plano seguinte, o lugar no qual se encontrava aparecer desocupado, You Were Really Never Here é um estudo de um personagem que oferece vasto material para discussão por ser, em essência, um imenso vácuo emocional.

 

E com isto concluo a cobertura da 70a. edição do Festival de Cannes. Ao longo de dez dias, foram 41 filmes comentados, quase 22 mil palavras escritas, algumas dezenas de tweets e outros tantos vídeos no Instagram Stories. Espero que tenham apreciado e que considerem colaborar para que o Cinema em Cena possa continuar a fazer esse tipo de cobertura especial – para saber mais informações sobre como colaborar, é só clicar aqui.

Ah, sim – e não menos importante, seguem abaixo os grandes vencedores do júri oficial da mostra Competitiva (os links levam aos textos nos quais os filmes foram comentados):

 

Melhor Roteiro: The Killing of a Sacred Deer (Yorgos Lanthimos) e You Were Really Never Here (Lynne Ramsay)

Melhor Atriz: Diane Krüger, por In the Fade

Melhor Ator: Joaquin Phoenix, por You Were Really Never Here

Melhor Direção: Sofia Coppola, por The Beguiled

Prêmio do Júri: Loveless (Andrei Zvyagintsev)

Grande Prêmio do Júri: 120 Batimentos por Minuto (Robin Campillo)

Prêmio de 70o. Aniversário (conferido a cada 5 anos): Nicole Kidman

Palma de Ouro: The Square (Ruben Östlund)

 

Um grande abraço e bons filmes!

27 de Maio de 2017

 

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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