Quem me acompanha há algum tempo sabe que sou obrigado a viajar muito a trabalho para ministrar cursos ou cobrir festivais. Este excesso de viagens já deixou de ser agradável há alguns anos – e tenho pavor crescente de quartos de hotel. Assim, quando surge algum convite para uma viagem adicional, penso muito antes de aceitar; é preciso que seja ou uma oferta irrecusável ao melhor estilo Corleone ou, no mínimo, alguma que prometa uma experiência agradável.
Eu já conhecia o festival Olhar de Cinema depois de ter sido parte do júri do evento, há alguns anos e, assim, quando me convidaram para acompanhá-lo novamente, fiquei tentado. Porém, eu estaria acabando de voltar de viagem depois de cobrir Cannes e, logo em seguida, teria que ir ao Rio para um curso, o que me levou a hesitar bastante.
Mas não consegui resistir. O fato é que o Olhar de Cinema representa um dos eventos mais agradáveis do calendário de festivais e mostras do país. De certo modo, eu considero sua atmosfera similar àquela de outro festival que amo de paixão, o Ebertfest, no qual o interesse pelo Cinema suplanta qualquer lógica comercial ou de competição. Além disso, ao contrário da maior parte dos eventos do tipo, o Olhar de Cinema permite que o crítico que o acompanha respire, concebendo uma programação que se equilibra tão bem entre os inéditos e as retrospectivas que o puro prazer cinéfilo não é exaurido pela constante necessidade de publicar, publicar, publicar.
E se mencionei sua programação, é preciso também elogiar a equipe de curadores composta por gente brilhante como Aaron Cutler e Eduardo Valente – e um dos prazeres adicionais desta edição tem sido acompanhar as apresentações feitas por Cutler antes das sessões dos longas de F.W. Murnau, que são sempre informativas e bem-humoradas. Fugindo das escolhas convencionais, mas sem tentar adotar um conceito de “vanguarda” que tantos curadores interpretam como sendo simplesmente “masturbação na tela”, o Olhar de Cinema tem coragem de se arriscar, mas sem perder de vista o interesse do espectador, o que exige um equilíbrio considerável.
Assim, ao lado de um filipino enlouquecido como Alipato: A Brevíssima Vida de um Malandro, há clássicos como A Última Gargalhada e Aurora (em cópias restauradas lindíssimas), resgates importantíssimos como Conversas no Maranhão, dramas com narrativas mais tradicionais (mas não menos eficientes) como Newton, exercícios de gênero como o brasileiro Homem Livre e documentários sobre temas tão variados quanto a imaginação infantil e a exploração de trabalhadores indianos. Além disso, como cada obra é exibida duas vezes, há tempo suficiente para que algum achado desperte atenção, gere boca a boca e possa ser conferido – como aconteceu com o documentário Máquinas, sobre o qual ouvi várias pessoas falando e me impactou profundamente.
Outra vantagem – e, sim, é uma vantagem – é a escala reduzida do evento. (Ok, “reduzida”; afinal, há mais de cem filmes sendo exibidos.) Concentrando-se basicamente em dois shoppings situados quase na mesma quadra, o evento não obriga o público a perder tempo se deslocando entre cinemas nem – no caso dos críticos, que encaixam o maior número possível de sessões – leva a dias inteiros com péssima alimentação. É possível recuperar o fôlego e, digamos, “cheirar café” entre longas para resetar o “paladar” (mas isto também pode ser interpretado literalmente, já que cafeína é sempre um componente fundamental em festivais).
Para completar, a seleção de documentários – meu gênero favorito - é notável, oferecendo elementos para discussão mesmo quando o filme em si não consegue atingir seus objetivos completamente. Tomemos, como exemplo, os brasileiros Entre Nós, o Estranho e Garatujas, Badamecos e Outros Monstros, o italiano Vangelo e o norte-americano Parque Tonsler: nenhum dos quatro se revela uma grande obra, mas todos chamam a atenção por buscarem desenvolver seus temas sem recorrer a abordagens padrões como a velha estrutura das cabeças falantes (depoimentos em closes) e das narrações em off didáticas; em vez disso, buscam formas que, justamente por se arriscarem, nem sempre alcançam o melhor resultado.
Vejamos Entre Nós, o Estranho, por exemplo: propondo-se a investigar a cultura dos descendentes ucranianos que compõem boa parte da população da pequena comunidade de Prudentópolis, no Paraná, o filme se insere no cotidiano daquelas pessoas de uma maneira aparentemente pouco intrusiva, acompanhando seu dia a dia, seus rituais religiosos e suas relações familiares com o objetivo de pintar um retrato multifacetado para o público sem necessariamente guiar nosso olhar de maneira excessiva – e mesmo os depoimentos pontuais surgem descolados das imagens: ouvimos a voz dos “personagens”, mas os vemos em situações não obrigatoriamente associadas ao que é dito naquele instante. Em seus melhores momentos, aliás, o longa remete à sensibilidade do mestre Frederick Wiseman, embora seu recorte seja limitado demais para operar como algo mais do que um estudo cultural específico – o que não é um defeito, mas uma escolha narrativa. Por outro lado, ao menos o paranaense Guto Pasko oferece um contexto para seu estudo, já que isto é algo que faz uma falta terrível a Parque Tonsler. Dirigido por Kevin Jerome Everson, o filme consiste de longos planos que se limitam a exibir os rostos de pessoas responsáveis pelo funcionamento de uma zona eleitoral de uma pequena cidade nos Estados Unidos durante um dia de votação. Aliás, perdão: “limita-se” é um verbo injusto, já que há algo de fascinante naqueles rostos que vão do bom ao mau humor, da agitação ao tédio profundo, enquanto orientam cidadãos interessados em registrar suas escolhas. E há, claro, um elemento fundamental: todos são negros. No entanto – e por um motivo inexplicável -, o cineasta exclui da projeção uma informação importantíssima que, contudo, faz questão de incluir na sinopse da produção distribuída para a imprensa: a de que o projeto foi rodado no dia da eleição que resultou na vitória de Donald Trump e que inevitavelmente (re)contextualiza todo aquele esforço (sou capaz de apostar, por exemplo, que Clinton obteve mais votos naquela seção). Com isso, Parque Tonsler não deixa de ser um pequeno exercício de empatia, já que é impossível não nos afeiçoarmos de alguma forma por aqueles indivíduos, mas uma empatia que vem do close, não da ação.
Mas se já é possível perceber a diversidade estilística apenas a partir destes dois filmes, isto se expande quando incluímos Vangelo, que o italiano Pippo Delbono usa como uma reflexão existencial e política a partir de seus graves problemas de saúde e da situação desesperançada dos refugiados em seu país – algo que ele amarra ao usar a obsessão de sua falecida mãe pela Bíblia com suas próprias raízes de diretor teatral, passando a usar os refugiados que conhece como versões sem pátria dos apóstolos (Delbono, por sua vez, ocasionalmente assume o posto de Cristo). Trata-se de uma obra lírica, mas também frouxa; ambiciosa, mas tecnicamente frágil; que aspira ao universal, mas volta-se demais para seu próprio realizador para alcançar este propósito. Enquanto isso, o brasileiro Garatujas, Badamecos e Outros Monstros encontra seu lirismo não nos diretores João Castelo Branco e Elizabeth Moreschi, mas no universo infantil, seguindo um grupo de pequenos alunos de uma escola municipal em suas brincadeiras e esforços imaginativos, frequentemente usando seus desenhos e pinturas como ilustração para suas narrações sem foco (as crianças têm 5 anos; não poderia ser diferente), mas divertidas e também assustadoras (e os cineastas evocam a natureza inquietante da imaginação vívida dos personagens através de câmeras subjetivas ocasionais e, principalmente, de intervenções feitas no desenho de som para incluir sussurros e afins). Bem-sucedido ao levar o público a reviver um pouco sua própria infância – ou, no mínimo, a admirar a inocência tocante desta -, o filme superestima o interesse despertado pelo processo de criação das pinturas que o ilustram, tornando-se um pouco repetitivo, o que o prejudica um pouco.
E já que mencionei uma produção brasileira, devo elogiar o ótimo Homem Livre, de Alvaro Furloni, que se apresenta como uma eficaz combinação de estudo de personagem, de discussão acerca de culpa (sentida e atribuída) e de exercício de gênero, funcionando como um terror psicológico ao acompanhar um ex-popstar que, depois de matar a namorada em um acesso de raiva, é libertado após cumprir anos de prisão, sendo abrigado por um pastor evangélico que, sob a verniz da compaixão, revela o interesse de usá-lo também para atrair a atenção para sua igreja e conseguir financiar a construção de um grande templo. Conseguindo criar uma atmosfera pesada, densa, que oscila entre o pesadelo e o que soa ocasionalmente como realismo fantástico, Homem Livre não se preocupa (felizmente) em tentar escancarar o que é real ou imaginado por seu protagonista, já que, para este, a diferença é irrelevante; o que importa é como o que vê(?) e ouve(?) o afetam. Mantendo o público preso ao seu denso tom – mérito da fotografia, da montagem e do roteiro -, o longa é comprometido apenas pela irregularidade de seu elenco, o que é uma pena, já que isto acaba por enfraquecer passagens que deveriam ser bem mais impactantes caso acreditássemos realmente na sinceridade dos atores. Mas quem reclama da falta de cinema de gênero no Brasil certamente perceberá, no trabalho de Furloni, que nossos cineastas são perfeitamente capazes de produzi-lo quando isto serve aos seus propósitos narrativos.
Mas os três melhores filmes que vi – ao menos, a um dia do fim do festival – vieram da Ásia: um das Filipinas, Alipato: A Brevíssima Vida de um Malandro e dois da Índia, o documentário Máquinas e o drama Newton. Dirigido por Khavn de la Cruz, Alipato é um trabalho ímpar; estou certo de que poderei ver filmes melhores ou piores do que ele em 2017, mas nenhum como ele. Focando em uma pequena gangue de crianças nas ruas da capital do país, em 2025, o longa cria uma distopia sufocante ao retratar o dia a dia daqueles jovens, que vivem em meio à sujeira, à miséria e ao abandono – e o que torna a narrativa tão forte é o fato de percebermos que aquela distopia é a realidade e que aqueles cenários de desolação são recortes de espaços reais, de locações. Da mesma maneira, não demora até que percebamos que os “atores” são jovens locais, amadores, vivendo versões extremadas de quem poderiam ser ou do que ainda podem se tornar. Mas talvez o que mais me surpreendeu foi a habilidade do filme de extrair humor aqui e ali sem, com isso, fazer pouco do sofrimento daquelas crianças ou diluir a tragédia representada por suas vidas. E se Homem Livre tinha toques de realismo fantástico, Alipato é a essência deste, sendo memorável por, no processo, expor como, “fantástico” ou não, há suficientemente realidade ali para nos doermos por seus abandonados personagens.
Sentimento similar é despertado pelo documentário Máquinas, de Rahul Jain. Rodado em uma das centenas de milhares de fábricas indianas que respondem por produtos enviados para o mundo inteiro, o filme expõe as condições de trabalho miseráveis às quais são submetidos os operários, que atuam inegavelmente como mão-de-obra escrava. Jain, contudo, não discursa, não prega e, na verdade, pouco se posiciona como elemento ativo ou com opinião, limitando-se a enfocar a atividade daqueles indivíduos ao longo do processo de produção, sendo capaz até mesmo de incluir alguns quadros esteticamente admiráveis sem, com isso, parecer estar maquiando ou explorando todo aquele horror – e, sim, “horror” é a palavra mais adequada, já que é impossível assistir ao longo plano de um adolescente tentando se manter acordado enquanto executa uma tarefa provavelmente pela décima hora consecutiva para ganhar dez reais ao fim do turno. Além disso, o diretor é honesto o bastante ao incluir no filme o questionamento feito pelos operários acerca de sua própria postura, que poderia ser interpretada como exploração da miséria alheia para fins artísticos e/ou jornalísticos. Para completar, Máquinas ainda entrega corda suficiente para que o dono da fábrica se enforque sozinho em um monólogo odioso que resume a lógica capitalista de um modo que beira a psicopatia. Para mim, este já é um dos melhores filmes do ano.
Coincidentemente, há um outro longa também exibido no Olhar do Cinema que ocupa posição similar, dividindo com Máquinas até mesmo sua nacionalidade. Dirigido e co-roteirizado por Amit Masurkar, Newton gira em torno de um sujeito que, voluntário para atuar como chefe de uma zona eleitoral durante as eleições no país, é enviado para um vilarejo remoto localizado no meio de uma área até há poucos meses cercada por milicianos, onde acaba entrando em conflito com o oficial militar responsável pela segurança da região. Porém, se esta descrição faz o filme soar como algo pesado ou dramático, a surpresa encontra-se na maneira como o cineasta consegue manter a seriedade do tema ao mesmo tempo em que acrescenta humor à narrativa. Além disso, os excelentes atores criam personagens complexos que jamais se rendem a classificações simplistas: há momentos nos quais o protagonista (Rajkummar Rao) age de forma irritante e há outros no quais o militar (o excepcional Pankaj Tripathy) nos leva a compreender algumas de suas ações mais questionáveis. No entanto, o mais admirável em Newton é sua capacidade de ilustrar como aquela eleição, na prática, não traz possibilidade alguma de representação realmente democrática para os cidadãos miseráveis ao mesmo tempo em que reforça a importância do processo em si. Uma obra linda.
Os curitibanos têm sorte de contar com um festival desta qualidade.
13 de Junho de 2017
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