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FALA COMIGO Brasil em Cena

Doze anos separam a criação do roteiro de Fala comigo do lançamento do filme em circuito comercial. O primeiro longa dirigido pelo carioca Felipe Sholl estreia nesta quinta em vinte e uma salas do Brasil. Vencedor do prêmio de Melhor Longa de Ficção do Festival do Rio, Fala comigo também garantiu o prêmio de Melhor Atriz para Karine Teles.

Na semana de estreia do longa, o diretor falou com o Cinema em Cena sobre a espera para produzir Fala comigo, seu processo criativo, influências e sobre a situação política atual no Brasil. “Embora não seja diretamente político, o filme trata de subversão, de uma família tradicional se desintegrando. E, no final das contas, tudo o que a gente faz é política”, afirma o diretor.

Você escreveu esse roteiro há mais de dez anos. Como foi a jornada para que Fala comigo se tornasse o seu primeiro longa?

Esse roteiro foi a primeira coisa que eu fiz em cinema. Foi meu trabalho de conclusão de curso, na Escola de Cinema Darcy Ribeiro, no Rio. A primeira versão dele ficou pronta em 2005. Na época que estudei lá, a minha intenção era ser roteirista, não diretor. Só que, assim que eu saí da Darcy Ribeiro, eu submeti esse roteiro no Laboratório SESC Rio de Roteiro de Cinema e, nesse laboratório, dois dos consultores me disseram que ele era muito pessoal e que eu deveria dirigir, não deveria ser outra pessoa. E, nesse processo, eu fui me dando conta de que eu queria dirigir, mas eu nunca tinha estudado direção. Então, guardei o roteiro, em vez de oferecer para outro diretor, e fui estudar direção. Fiz meus curtas, primeiro o, de 2007, que foi aceito no Festival de Berlim, e um curta chamado Gisela, em 2010. Nesse meio tempo, entre a conclusão do curso de roteiro e o início da minha carreira de diretor, apareceram vários trabalhos de roteiro e grande parte da minha formação como diretor veio de trabalhar com outros diretores, como Sandra Kogut, Tata Amaral, e outros. Aprendi muito com eles. Depois de 2010, quando fiz meu segundo curta, achei que estava pronto para dirigir um longa, chamei o Daniel van Hoogstraten, meu sócio, para produzir o filme, e começamos a pensar em captação. Naquela época, havia menos editais disponíveis, então levamos cinco anos para captação. Filmamos no final de 2015, com um orçamento muito pequeno – de menos de 1 milhão de reais. A estreia mundial do filme aconteceu no Festival do Rio, de 2016.

Todo o filme foi produzido em locação. Essa foi uma opção por causa do baixo orçamento?

A locação, sem dúvida, ajuda a viabilizar o projeto, mas mesmo que tivéssemos mais dinheiro, eu teria filmar em locação, por opção mesmo. Locação significa mais perrengue, porque a gente tem que lidar com vizinhos, com trânsito, com o pássaro do vizinho que grita no momento mais inconveniente possível, mas tem uma vida que a locação real traz. O apartamento da Clarice (Denise Fraga), por exemplo, era um imóvel que tinha sido usado por uma família. Então, tem esse valor de produção que são as marcas do tempo. Você pode criar isso em estúdio, mas a vida real traz isso de forma muito mais interessante.

Você se lembra de algum elemento do ambiente que interferiu no filme?

Em locação, o problema maior é sempre o som. O apartamento da Ângela (Karine Teles), por exemplo, a gente filmou na Urca, que é rota dos aviões do Santos Dumont e, em dois dias de filmagem, teve show do Los Hermanos na Marina da Glória, e a Urca fica no fundo da baía. O show ecoava no Pão de Açúcar e invadia todo o meu set. São complicações, mas tem também a riqueza do som real. A gente incorporou muitos acidentes sonoros que ficaram muito legais. Por exemplo: a cena em que Ângela sai do consultório e invade a casa, começa a andar pelo corredor e entra no quarto do Diogo, tinha uma obra na casa da vizinha que estava nos deixando enlouquecidos, já achando que não ia dar para usar o som, que teríamos que dublar tudo. Nessa cena, especificamente, as marteladas ficaram muito intensas. Mas o som das marteladas agregou uma tensão à cena que a gente achou muito interessante, tanto que nós usamos essas marteladas reais e colocamos mais marteladas para tornar a cena ainda mais tensa depois.

Nesse período tão longo entre a escrita do roteiro e a produção do filme, como foi a escolha do elenco, em especial do personagem Diogo (Tom Karabachian), que é um adolescente?

A Denise (Fraga) foi a primeira pessoa do elenco a entrar, porque eu já conhecia o trabalho dela, gostava muito, mas tive o estalo de convidá-la quando trabalhei como roteirista no longa Hoje, no qual ele faz a personagem principal. A Karine (Teles) já era minha amiga e foi a primeira pessoa que leu o personagem da Ângela, em 2006, mas ela tinha vinte e poucos anos e era muito nova para o personagem. Mas, como o filme demorou esse tempo, acabou dando certo de ela fazer, porque aí ela já tinha uma idade mais próxima. E o Tom foi outra situação: como nós tínhamos o orçamento muito apertado, não tínhamos um produtor de elenco em tempo integral no filme, então, eu e Daniel (produtor) fomos de ‘olheiros’ em várias escolas de teatro do Rio, assistindo apresentações de fim de ano, aulas e, numa dessas escolas, o Tablado, conhecemos o Tom. Gostamos dele, chamamos para fazer o teste. E era mesmo um desafio, porque eu precisava de um menino que tivesse cara de 17 anos, mas tinha que ser maior de idade, para facilitar a produção com aspectos práticos. Para mim, era fundamental encontrar um ator que tivesse química com a Karine, então fizemos o teste dos dois juntos, e só pudemos fazer essa experimentação com os atores já próximo de filmar porque, se eu tivesse feito sem data de filmagem confirmada, um ano de atraso, para um garoto de 18 anos, faz toda a diferença.

O filme foca na comunicação, que se tornou bem diferente da época em que a história foi escrita. Você adaptou o roteiro nesse período de doze anos?

Eu mexi muito no roteiro nesse período, o processo de escrita, na verdade, nunca parou. Fiz várias versões. Mudou muita coisa. Para além do mundo, eu também mudei muito. Quando eu escrevi a primeira versão, eu tinha 23 anos e estava muito próximo do personagem Diogo. Quando eu filmei, aos 33, eu já estava mais próximo dos pais (Clarice e Marcos) do que do Diogo. Nas primeiras versões, por exemplo, a Clarice era um personagem mais vilanizado, não tinha tanta profundidade. Depois, eu fui entendendo melhor essa mulher. Eu sempre tive essa ideia do Diogo ligar para as pacientes da mãe e se masturbar, que é a premissa do filme, o que naquela época já era anacrônico: um garoto de 17 anos ligar no telefone, porque a internet já era a principal forma de comunicação para essa geração. Mas a ideia sempre foi mostrar um cara meio anacrônico, meio fora do tempo. O fetiche dele é sonoro, não é visual, e nós já estávamos ligados na internet, como hoje, de uma forma muito mais visual, menos profunda. E o filme mostra as tentativas de pessoas de buscar um contato mais profundo.

O vínculo do personagem principal com a irmã parece o traço mais forte de afeto naquela família. Já que o filme é tão pessoal, tem algo de autobiográfico nisso?

É um filme muito pessoal, e essa ideia de ser autobiográfico é uma dúvida comum. Não é autobiográfico. O filme se passa no meu universo, que é a classe média carioca. Nenhum personagem é alguém específico, mas todos são “pedaços” de pessoas desse meu universo. Essa relação entre os irmãos não é real, mas é baseada em várias relações que eu tive, que eu conheço. Inclusive, há uma referência à leitura do livro “O apanhador no campo de centeio”, em uma cena na qual os dois estão deitados, a câmera enquadrando de cima. Haveria uma sequência na qual Diogo entrega o livro para a irmã, como se estivesse passando o bastão da rebeldia para ela, mas acabamos cortando essa sequência.

Você começou a carreira como roteirista e depois estudou direção. Quem são seus diretores de referência?

O meu diretor preferido de todos os tempos é o John Cassavetes, e acho que ele está mais presente no meu “como fazer”. Quando eu quis me tornar diretor, a principal coisa na minha cabeça era dirigir atores e eu ainda acho que a direção de atores é a principal tarefa do diretor, e o Cassavetes era isso, um ator que virou diretor. Os filmes dele são muito baseados no trabalho dos atores, assim como os meus. Por exemplo, antes de decidir onde fica a câmera, eu faço o ensaio com o ator, para ver a dinâmica da cena, e aí eu posiciono a câmera, não contrário. Não defino a movimentação do ator de acordo com o quadro que eu quero. Não sei se o Cassavetes está presente no resultado final, mas está muito presente nesse como fazer, no meu processo.

Isso significa que você tem uma ingerência menor em aspectos como a fotografia, a direção de arte, por exemplo?

Tanto o Leo Bittencourt, diretor de fotografia, quanto o Cedric Aveline, diretor de arte, trabalharam muito próximos a mim, a gente conversou muito, inclusive porque era meu primeiro filme. Durante as filmagens, fiquei sempre muito aberto às sugestões deles. Na cena em que os irmãos estão no telhado, por exemplo, a ideia inicial era ter um plano fechado, na conversa deles e, depois, um plano bem aberto, para mostrar os horizontes do Diogo se abrindo. Mas o Cedric questionou: por que eles não saem correndo? E foi uma coisa que fez a cena crescer muito.

Quando você recebeu o prêmio de Melhor Filme de Ficção, no Festival do Rio, você se posicionou contra o governo Temer. Qual a sua posição, agora?

Esse filme não é exatamente político, mas eu sempre apresentei a história como subversiva. Ele fala sobre uma família tradicional se desintegrando, sobre um universo no qual a única possibilidade de uma relação profunda é daquele casal improvável. No final das contas, isso é um discurso político. Mas é impossível não falar do momento político atual. Na época do Festival do Rio, nós tínhamos o Temer na presidência, sem a perspectiva de sair, e agora nós temos a possibilidade que ele caia e entre outra pessoa, pior ainda. Fui contra o golpe e, naquele momento, eu temia que a situação piorasse muito, e nós estamos vendo o que está acontecendo. Acho que nós só vamos ter estabilidade neste país quando tivermos um presidente eleito diretamente pelo povo. Eu gostaria muito que pudéssemos ter eleições diretas antecipadas mas, para isso, nós dependeríamos de um mínimo de grandeza desse Congresso Nacional, e eu duvido que isso aconteça.

 

 

Sobre o autor:

Alessandra Alves é jornalista com múltiplos interesses. Além do amor pelo cinema, pela música e pela literatura, também atua no jornalismo esportivo e na comunicação corporativa. Paulistana, corintiana, feminista e inimiga de fascistas, assina a coluna "Brasil em Cena", de entrevistas e reportagens sobre o cinema brasileiro contemporâneo.
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