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CORPO ELÉTRICO Brasil em Cena

Corpo Elétrico: o amor contra a “roteirocracia”  

Corpo Elétrico é o primeiro longa do diretor e roteirista Marcelo Caetano, mineiro de Belo Horizonte que mora há doze anos em São Paulo. Mas sua carreira espalha-se por muitos anos e várias das obras mais importantes do audiovisual brasileira deste século. Foi diretor assistente em Boi Neon, Tatuagem e Mãe só há uma, fez o casting de Aquarius e dirigiu três curtas.

Inspirado em um poema de Walt Whitman (“Eu canto o corpo elétrico”), o longa que estreia nesta semana nos cinemas brasileiros retrata Elias (Kelner Macêdo), um jovem paraibano que tenta equilibrar seu cotidiano entre o trabalho em uma confecção e a vida social. O convívio com os chefes e colegas da fábrica, os encontros amorosos com outros homens e as dificuldades da metrópole povoam o cotidiano de Elias e vão moldando sua visão da vida.

Corpo Elétrico, a partir dessa premissa, subverte a ideia clássica de roteiro. “A gente vive quase uma “roteirocracia”. As pessoas olham para o filme e já ficam buscando os três atos, cronometrando as viradas. Então, a gente pensou diferente”, explica Marcelo nesta entrevista exclusiva para o Cinema em Cena, em São Paulo.

Cinema em Cena: O roteiro de Corpo Elétrico é assinado por três pessoas. De quem foi a ideia original e como é que foi esse processo?

Marcelo Caetano: O argumento é meu, e parte de um desejo de falar desse personagem que chega a São Paulo para procurar uma vida bastante aberta de prazer, de amores, só que, para viver na cidade, ele tem que se sustentar, que trabalhar muito e acaba construindo a subjetividade dele muito vinculada ao trabalho, com uma dificuldade muito grande de se equilibrar nessas duas esferas, no trabalho e no prazer. Nesse primeiro momento, eu chamei para desenvolver o roteiro comigo o Hilton Lacerda, com quem eu tinha trabalhado no filme Tatuagem, no qual ele era diretor e eu, diretor assistente, e a gente desenvolveu um primeiro tratamento de roteiro. Depois de um ano, mais ou menos, comecei a mexer nesse roteiro sozinho e senti uma necessidade de encontrar um novo interlocutor, então chamei o Gabriel Domingues, que também fez a assistência de direção do filme, e a gente foi desenvolvendo muito mais um esqueleto, uma estrutura de cenas e de dispositivos cênicos que eu gostaria de colocar em questão. Tínhamos algumas regrinhas básicas: fazer um filme sobre amor em que o ciúme não fosse convidado a entrar na festa, onde as causas e consequências dessem lugar muito mais a uma analogia entre as cenas e onde os personagens gays estivessem no mundo convivendo com os heterossexuais. Essas regrinhas criaram a estrutura, e então convidamos os atores para construir junto conosco esse roteiro.

 

Cinema em Cena: É, portanto, mais um roteiro de situações que de diálogos?

Marcelo Caetano: Eu procuro não cristalizar no ensaio, existe uma abertura e eu tenho muito orgulho de falar que eu trabalho com o improviso, porque pode parecer que um trabalho assim tem menos direção, mas é o contrário: você está lidando com uma série de intempéries, de acasos e tudo mais. Você tem, de uma certa forma, de organizar a loucura, porque o improviso de vinte pessoas em cena, se você não organizar, vira uma loucura. Eu acredito muito na força do improviso, de se abrir para o acaso, de se abrir para o mundo e ser influenciado pelo que está acontecendo. Diálogos eu comecei a trabalhar com o Hilton Lacerda no roteiro e ele é um excelente criador de diálogos, mas quando eu e o Gabriel fomos desenvolver o roteiro, a gente começou a pesquisar um pouco as fábricas, os operários e as drags. A gente percebeu o quanto eles tinham de diferenças, e uma riqueza que a gente queria aproveitar.

Cinema em Cena: E essas particularidades não estavam nos diálogos originais?

Marcelo Caetano: Não estavam na premeditação, nessa relação hierárquica do roteiro ser mais importante que a mise-en-scène. A gente vive um momento de quase uma “roteirocracia”, né? São manuais de roteiro, são cursos de roteiro. As pessoas olham para o filme já buscando o conflito, os três atos, ficam cronometrando as viradas. Então, a gente pensou diferente: “vamos brincar com isso, vamos dar um tapa na cara de tudo isso e vamos pegar uma mise-en-scène que seja fresca, espontânea, imprevisível”, e aí a gente constrói uma série de cenas, a gente encadeia para uma lógica muito mais de aproximações, de distâncias e analogias e vai jogando os atores para eles viverem esses dispositivos. A gente toma nota, filma, faz um processo bastante rico de documentação dos ensaios, para que, no set, quando a gente perceber que a coisa está abaixando, a gente ativa os atores dentro daquela memória que eles tiveram do ensaio.

 

Cinema em Cena: Você já tinha vivenciado uma experiência parecida?

Marcelo Caetano: É um processo que muito curiosamente tem a ver com o que eu vivi em Boi Néon, com o modo pelo qual, de uma certa forma, o Gabriel Mascaro (diretor) e a Fátima Toledo (preparadora de elenco) levantavam as cenas. Tem a ver com o processo da Ana Muylaert também, já que ela trabalha de uma forma similar, mas deve muito ao trabalho do Maurice Pialat, que é um diretor francês que eu gosto muito, especialmente de um filme chamado “Aos nossos amores”, e que influenciou um muito o cinema francês contemporâneo, de Kechiche, Dardenne etc., que é de buscar muito esse vocabulário corporal dos atores em experiência.

Cinema em Cena: Uma cena de Aquarius (Kleber Mendonça Filho) lembra essa construção. Nela, a personagem da Sônia Braga está em um baile com outras mulheres e o diálogo sugere um improviso. Você trabalhou em “Aquarius”. Existe alguma relação?

Marcelo Caetano: Eu acho que o Kleber tem um talento para buscar a naturalidade a partir dos diálogos que ele constrói. Eu fiz o casting de Aquarius, então eu trabalhei lá no início. Os diálogos já existiam nos testes que eu fiz com as atrizes. Pode ser que a gente chegue à mesma impressão de realidade e naturalidade, mas por vias muito diferente. O roteiro do Kleber é muito detalhado, muito bonito e bem escrito. Os diálogos são brilhantes, é o talento dele. Eu não tenho esse talento (risos), eu tenho um outro talento. Eu exploro uma outra via para chegar a essa naturalidade.

 

Cinema em Cena: Essa construção/desconstrução do roteiro se reflete na montagem?

Marcelo Caetano: Não. Por trabalhar dessa forma, eu monto durante a filmagem. Coloquei o montador para morar na minha casa! Ele montou a ilha dele lá. Eu fazia as horas de set, chegava em casa e ficava mais quatro horas ali com ele, montando as cenas. A gente ia entendendo o que estava conseguindo. Eu trabalho com a espontaneidade, com o acaso, tendo muitas vezes que recriar a cenas. Por exemplo, o roteiro tinha um show musical no final do filme. Mas, quando a gente viu a performance da Marcia Pantera na boate, batendo o cabelo, a gente não precisava mais desse show. Então, pensamos em outra coisa. Discutimos e chegamos à ideia daquele casamento. Foi uma ideia que eu tive de madrugada, dormindo. “Vamos casar esses evangélicos” (risos). É mais ou menos como eu funciono. Por isso, depois que a gente termina de filmar, a montagem é um processo muito rápido e muito simples.

Cinema em Cena: Essa forma diferente de fazer cinema é intencional?

Marcelo Caetano: Sim, porque eu já vivi muito o “fazer tradicional de cinema”, como assistente de direção, como roteirista e tudo mais. E, para mim, se eu estou propondo novas formas de amar, se eu estou propondo novas formas de encenação e de estrutura dramatúrgica, tem também novas formas de fazer. É um processo de invenção.

 

Cinema em Cena: Fazer todo o filme em locação foi uma opção artística ou de custo?

Marcelo Caetano: Eu não gosto da ideia de estúdio, de construção de cenário, de intervenção. Então a gente nunca pensou em ter, construir uma fábrica. Buscamos uma fábrica, na qual a gente tivesse a receptividade, onde a gente pudesse falar qual era o nosso filme. Porque eu já fiz muito filme no qual a gente vai filmar no quartel e mente o roteiro do filme. Vai filmar em uma fazenda e mente o que a gente está fazendo. Eu queria achar uma pessoa que me recebesse, que recebesse o filme. Então, encontramos essa fábrica no Bom Retiro, cujo dono é uma pessoa engajada, e ele nos possibilitou fazer laboratório, botou os funcionários para conversar com os atores, explicar como operavam as máquinas. Para mim, viver os espaços é fundamental.

Cinema em Cena: Como foi a atuação da direção de arte, já que você não gosta muito de intervenção?

Marcelo Caetano: A direção de arte tem que ter um rol de coisas mais ou menos preparadas, e também uma capacidade de despegar e de reinventar muito grande. E a Maira Mesquita é assim. Por exemplo: ela via muita a nossa discussão sobre o mar e, em função disso, escolheu utilizar um tecido azul em determinada cena, de forma sutil. Uma característica dela que eu gosto muito é o fato de não pensar em termos de paleta de cores, de não ter essa direção de arte publicitária. É muito mais no sentido “como eu vou olhar para esse espaço e interferir? ” Outro exemplo, que mostra a capacidade dela de reinventar, foi a cena do casamento, que a gente mudou em cima da hora. Já estávamos na praia, filmando, quando essa ideia surgiu. Ela abriu o porta malas do carro dela, que é o típico carro de acumuladora, e de lá saíram pompom, coroa de flores, tecidos, e saiu o casamento que nós nem tínhamos planejado!

 

Cinema em Cena: Os personagens, cada um a seu modo, são pessoas que enfrentam opressões na grande cidade. São Paulo ainda é o “novo quilombo de Zumbi”?

Marcelo Caetano: Talvez essas pessoas, que são vistas como excluídas, são o constitutivo dessa cidade. Elas formam não só a base, mas o simbólico dessa cidade. Meu olhar para elas é nunca de reduzi-las à margem, a uma categoria, a uma identidade. Elas são uma transcendência disso enquanto sujeitos, enquanto pessoas que aspiram as potencialidades da liberdade do corpo. O meu olhar para elas é mais libertador do que categorizador. Mas eu tenho plena consciência também de que elas ocupam, para poupar a sociedade, essas margens. Só que a minha ideia de movimento é que elas possam sair das margens pra centralidade. Em várias cenas, são elas que ocupam o asfalto da rua, como no plano sequência logo no início do filme: as pessoas se deslocam pelo meio da rua, porque a lógica é essa mesma, de ocupar, de ser visto, de ser entendido como responsável por essa cidade.

 

Cinema em Cena Elias, o personagem principal, estranha o apego de um colega com sua família, mas, ao mesmo tempo, busca sempre situações de agregação. O que há por trás desse movimento?

Marcelo Caetano: Famílias alternativa.  Desde os meus primeiros curtas, como Bailão, que retrata um baile que tem no Centro de São Paulo, voltado para homossexuais com mais de 60 anos, sempre me interessou esse conceito de solidariedade, de com essas pessoas buscam grupos de apoio. E também estratégias de escapar da solidão. Porque a solidão é uma constante do personagem. A letargia, a melancolia são presentes nesse personagem mas, apesar do cansaço da fábrica, ele tenta resistir a isso.

Cinema em Cena: Elias sempre retorna para o personagem Arthur, que é mais velho, tem estabilidade financeira, um porto seguro. Tem a busca de um pai nessa relação?

Marcelo Caetano: A figura do amor, clássica. Eu não psicanaliso muito o personagem, não gosto muito dessa abordagem. Eu acho que tem um desejo alternativo entre eles, uma troca muito pouco hierarquizada. Porque o Arthur, de certa forma, vê no Elias uma série de potencialidades e também de aprendizados, só que a gente está acostumada a ver, nesse tipo de situação, uma relação de paternidade, justamente pela diferença de idade e de estabilidade financeira.

 

Cinema em Cena: Corpo Elétrico não está sendo divulgado explicitamente como filme de temática LGBT. Porque essa opção?

Marcelo Caetano: Eu acho que existe uma vontade muito grande de categorizá-lo como um filme LGBT, principalmente por parte da imprensa, que sempre precisa categorizar, classificar. Mas definir esse filme como LGBT é reduzi-lo, inclusive pelas situações e conflitos vividos pelos personagens heterossexuais. Tive muito orgulho em exibir esse filme em festivais LGBT, em Londres e no México, com uma acolhida maravilhosa em ambos. Mas, ao mesmo tempo, assim como a própria história trabalha esse encontro dos gays com os héteros, o filme quer encontrar essas pessoas e ver como elas sentem e se relacionam com isso. Acho muito bonito que filmes abertamente militantes estejam se inserindo nessa discussão e atraindo a atenção da comunidade LGBT, mas a minha preocupação não é atrair mais ou menos público. Eu sou artista, eu crio imagens poéticas, não sou um militante. Já fui militante, inclusive dentro de partido em área LGBT, mas hoje isso não me seduz mais, não consigo mais estar nesse lugar. Admiro quem está nessa linha de frente, mas a minha linha é outra, mais vertical, menos horizontal, buscando outras camadas. No fundo, são apenas diferenças de um mesmo olhar.

 

Sobre o autor:

Alessandra Alves é jornalista com múltiplos interesses. Além do amor pelo cinema, pela música e pela literatura, também atua no jornalismo esportivo e na comunicação corporativa. Paulistana, corintiana, feminista e inimiga de fascistas, assina a coluna "Brasil em Cena", de entrevistas e reportagens sobre o cinema brasileiro contemporâneo.
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