Dizer que o Festival de Gramado é o mais charmoso do calendário cinematográfico brasileiro é algo que virou clichê muito antes que eu pensasse em me tornar crítico – e há uma razão para isso: ele é. O clima frio, a beleza da cidade que o hospeda e o fato de críticos, organizadores e realizadores praticamente dividirem os mesmos espaços o tempo inteiro, criando uma atmosfera amigável de confraternização e amor conjunto pelo Cinema, são fatores que contribuem para que o evento seja tão atraente. E para quem aprecia o conceito de “glamour”, o longo tapete vermelho que conduz até o Palácio do Festival e é ladeado por pequenas barreiras que permitem que os fãs testemunhem a passagem de cineastas, atores e atrizes é algo que certamente funciona como uma atração à parte.
Já para quem considera “glamour” uma tremenda cafonice (culpado!), este é um pecadilho diante da oportunidade de assistir a algumas das produções brasileiras que iniciam aqui suas jornadas esperançosas rumo ao público – e, em alguns casos, quase a única oportunidade, já que obras fantásticas como Sinfonia da Necrópole, A Luneta do Tempo e A Despedida (para citar alguns títulos que vi na edição de 2014) muitas vezes acabam recebendo lançamentos minúsculos apenas anos depois ou – pior – jamais chegam às salas de exibição.
Aliás, se há um elemento que eu destacaria como uma das grandes forças de Gramado nos últimos anos, este seria a excelente curadoria feita por Rubens Ewald Filho, Eva Piwowarski e Marcos Santuário, que criam uma programação diversificada tanto em linguagem quanto em temas, criando um pequeno painel do que se produz em vários cantos do Brasil e da América Latina.
Este ano, por exemplo, há filmes contrastantes como a cinebiografia João, o Maestro e o western O Matador; dramas como Los Niños, sobre adultos com Síndrome de Down que lutam por vidas independentes, e recriações históricas sobre a ditadura argentina, como Sinfonia para Ana. Num momento, você assiste a um recorte em três narrativas sobre personagens miseráveis, como X500 e, no outro, a uma reflexão existencial sobre o significado da vida, como A Febre na Selva. Nem todos funcionam, é claro, mas não por preguiça ou comodismo, o que já é um consolo.
Tomemos, como exemplo, O Matador, novo trabalho de Marcelo Galvão. Em 2014, quando assisti ao seu lindíssimo A Despedida, fiquei tão emocionado que, ao fim da sessão, fiz algo que nunca havia pensado em fazer: arranquei uma folha de meu caderno de anotações, escrevi um rápido bilhete para o diretor agradecendo pelo filme, entreguei a ele e me afastei sem dizer nada. Se dissesse, começaria a chorar. Infelizmente, depois de ver este seu longa mais recente, minha vontade foi de atirar o caderno na tela. Produzido pela Netflix, o título é concebido como um exercício de estilo que traz os signos do western para o nordeste brasileiro. No entanto, ao contrário do que fez Lima Barreto já em 1953 com seu O Cangaceiro, Galvão não se interessa em usar a linguagem do western para contar uma história brasileira, mas sim em transformar esta linguagem no próprio centro do projeto. Até aí, tudo bem: o puro exercício de estilo é perfeitamente capaz de render narrativas envolventes e divertidas – e até mesmo de desenvolver elementos novos do gênero que habita. O problema é que o diretor já parece feliz apenas ao recriar ícones como os cowboys com suas esporas e roupas brancas ou pretas (dependendo de seu caráter), os revólveres que são girados com precisão por seus donos, os saloons que servem como palco de duelos e assim por diante, esquecendo-se de que um roteiro amarraria as imagens melhor. No lugar do roteiro, contudo, há uma série de situações nas quais Galvão expõe um niilismo surpreendente para alguém que soou tão humanista em A Despedida – e mesmo a ótima atuação de Diogo Morgado, como o protagonista Cabeleira, não consegue salvar um projeto que também é prejudicado pela fotografia sem vida de Fabricio Tadeu e que jamais valoriza o ótimo design de produção.
Outro filme problemático, mas ao menos beneficiado por um protagonista cuja história é fascinante, é João, o Maestro. Recontando a trajetória do pianista brasileiro João Carlos Martins, o longa escrito e dirigido por Mauro Lima tem seus pontos fortes nas atuações de Alexandre Nero e Rodrigo Pandolfo, que vivem o personagem em períodos diferentes da vida, e, claro, nas músicas executadas pelo próprio João Carlos, mas para cada bom momento da narrativa há cinco outros como aquele em que vemos o sujeito sendo surpreendido na cama por um marido traído e fugindo pela janela seminu enquanto é perseguido sob os gritos de “Sacripanta!” – uma cena que soaria ridícula em 1970 e que, em 2017, é simplesmente imperdoável. Além disso, as performances secundárias tendem à quase caricatura (como a professora de piano cuja principal característica é dizer “oká”) e o roteiro é excessivamente episódico e expositivo, dois problemas que agravam exponencialmente um ao outro. No final das contas, a perseverança do maestro e seu amor pela música quase salvam o filme. Quase.
O que nos traz a A Fera na Selva, adaptação da novela de Henry James dirigida, roteirizada e estrelada por Paulo Betti e Eliane Giardini (Lauro Escorel é creditado como co-diretor e Rafael Romão Silva como co-roteirista). Obviamente um projeto pessoal da dupla, o filme acompanha a trajetória de um homem que, convencido de estar destinado a viver algum acontecimento grandioso que justificará sua existência, passa as décadas acompanhado por uma amiga que é a única pessoa a conhecer seu segredo. Assim como o excelente original de James, o longa toca de maneira interessante em questões existenciais universais, compreendendo que a expectativa do protagonista reflete a busca por um sentido para nossa passagem pelo planeta, enquanto sua apatia ecoa nossas constantes preocupações com o futuro e com o passado que, no extremo, nos impedem de experimentar o presente. É uma obra adulta, ambiciosa e corajosa em sua abordagem narrativa que descarta o naturalismo em prol de um tom que flerta com o literário (há, inclusive, um narrador não-corpóreo, onisciente, que descreve passagens e pensamentos na terceira pessoa) e se entrega completamente ao teatral, incluindo a maneira como os atores dizem suas falas. Isto, claro, pode afastar muitos espectadores (daí a coragem da estratégia), mas é, ao seu próprio modo, a decisão perfeita para um texto construído de dentro para fora, do vazio emocional de um homem que, ao aguardar um grande momento, perde todos os pequenos e importantes que, no fim das contas, constroem uma vida bem vivida.
Porém, meu favorito entre as produções brasileiras exibidas até agora (e devo esclarecer que perdi a projeção de As Duas Irenes em função de um outro compromisso) é o lindo Pela Janela, escrito e dirigido pela estreante em longas Caroline Leone. Ancorado por duas performances magníficas de Magali Biff e Cacá Amaral, o filme é um estudo de personagem melancólico e doce sobre Rosália, uma mulher que é demitida da fábrica na qual trabalhou por 30 anos e, abatida, acompanha o irmão José em uma viagem de carro de São Paulo a Buenos Aires. Com uma narrativa ancorada no mesmo tipo de realismo seco que marca a cinematografia dos irmãos Dardenne e o Novo Cinema Romeno (duas referências invejáveis, por sinal), a obra substitui a trama pela simples observação da personagem enquanto esta executa tarefas cotidianas, conversa com o irmão sobre a diferença do português para o espanhol e admira a beleza e a imponência das Cataratas do Iguaçu. Concebendo seus personagens com a simplicidade de duas pessoas que se conhecem profundamente e não precisam expressar verbalmente o que sentem o tempo todo, Biff e Amaral criam uma dinâmica que comove tanto pelo dito quanto pelo não dito, bastando um sorriso aqui ou um suspiro ali para que o espectador compreenda o tumulto emocional subjacente. Humano e humanista, Pela Janela é uma revelação.
24 de Agosto de 2017
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