Dia 01
Vamos diretamente aos filmes - e foram apenas dois:
1) ILHA DE CACHORROS (ISLE OF DOGS)
Wes Anderson fica mais Wes Anderson a cada novo filme – ou esta é sensação que sempre tenho ao ver seus novos trabalhos: a de que seria impossível ele se tornar mais de si mesmo. Aliás, passando os olhos pelos textos que já escrevi sobre suas obras, constatei que já havia feito esta mesma observação, o que talvez seja um elogio à sua autoralidade absoluta. Ou apenas o reconhecimento de que seu estilo se transformou em muleta narrativa. Honestamente, não sei dizer. Dito isso, Ilha de Cachorros é seu filme mais Wes Anderson. Por que digo isso? Porque um personagem, em certo momento, escreve um haiku para expressar seus sentimentos. Quer algo mais wesandersoniano do que isso?
Segunda animação da carreira do cineasta, o longa se passa num Japão futurista no qual o cruel prefeito Kobayashi (Nomura), maior liderança de Megacity, decide banir todos os cães para uma ilha composta de lixo, começando por Spots (Schreiber), cão de guarda de seu sobrinho Atari (Rankin). Anos depois, quando a ilha já se tornou território de uma infinidade de cães famintos e adoentados, somos apresentados ao grupo formado por Chief (Cranston), Rex (Norton), Boss (Murray), Duke (Goldblum) e King (Balaban). Criado nas ruas, sem dono, Chief se vê num dilema quando Atari cai com seus avião no local enquanto tentava encontrar Spots e passa a depender da ajuda da matilha para concluir sua busca. Enquanto isso, um grupo de ativistas liderado pela aluna de intercâmbio Tracy (Gerwig) inicia uma campanha pela liberação dos cães sem saber que o prefeito Kobayashi pretende exterminar todos os animais em breve.
Assim como ocorria em O Fantástico Sr. Fox, o elenco escalado por Anderson empresta suas vozes para os personagens como se estivessem numa desanimação, empregando vozes baixas em um ritmo lento e melancólico mais do que apropriado à sensibilidade do diretor. As exceções ficam por conta de Bryan Cranston, Greta Gerwig e Kunichi Nomura: o primeiro, por usar sua voz naturalmente grave para conferir um sentimento de raiva contida a Chief; a segunda, para refletir a empolgação de Tracy; o terceiro, para expressar o perigo representado pelo prefeito. Já Edward Norton traz um ar de doçura e ingenuidade a Rex, enquanto Bob Balaban investe na insegurança de King (já Bill Murray e Jeff Goldblum fazem o de sempre: brilham criando variações de suas fascinantes e divertidas personas). Encontrando espaço até mesmo para uma inspirada participação de Yoko Ono, Ilha de Cachorros ainda traz várias presenças recorrentes na filmografia de Anderson, de Frances McDormand a Tilda Swinton, passando por F. Murray Abraham e, numa outra escalação genial, Harvey Keitel.
No entanto, créditos também devem ser dados ao diretor de animação Mark Waring, já que os detalhes nos trejeitos, movimentos e expressões faciais dos personagens trazem um charme importante ao projeto, além, claro, de conferirem verossimilhança a um universo tão fantasioso. Além disso, o excepcional design de produção de Paul Harrod e Adam Stockhausen cria não apenas ambientes belos e evocativos (como o campo de golfe com grama cinza e o abrigo feito de garrafas descartadas), mas também personagens com visuais que lhes garantem individualidade e personalidade (do vilão com tronco imenso e perninhas finas à estudante quase albina com o rosto marcado de espinhas, passando, claro, pelos cães).
Já as marcas estilísticas características de Anderson encontram, na animação, infinitas possibilidades de expressão: a simetria central que domina suas narrativas, por exemplo, mostra-se presente no enquadramento dos personagens (sozinhos, surgem centralizados; em grupo, espalham-se uniformemente na tela) e na própria ação, como no plongé que exibe o avião de Atari envolvido por um círculo perfeito de folhas queimadas por sua queda. Já os travellings laterais, paralelos ao chão, apresentam um problema técnico, borrando a imagem excessivamente em função do contraste entre a velocidade do movimento da câmera e o número de frames que certamente tiveram que ser repetidos para que pudessem chegar aos 24 por segundo (um procedimento habitual no stop motion, já que raramente – por questões práticas óbvias – são realmente criados 24 quadros para cada segundo de projeção). Por outro lado, a fotografia de Tristan Oliver (retornando mesmo depois de reclamar da ausência de Anderson durante a produção de O Fantástico Sr. Fox) se mantém quente e agradável, trazendo um ar de fábula infantil que contrasta bem com os temas sombrios do roteiro.
Aliás, justamente por lidar com questões mais pesadas, Ilha de Cachorros se beneficia do senso de humor normalmente melancólico do diretor – que já se mostra presente desde os primeiros segundos, quando percebemos que o narrador da história é um cão cego de um olho que tem a voz de F. Murray Abraham. Inspirado ao extrair piadas da lógica interna de seu universo (o dom premonitório da cadela Oráculo se deve apenas ao fato dela ser entender as transmissões de tevê), o longa usa até mesmo sua estrutura não-linear para provocar o riso, trazendo flashbacks inesperados que preenchem buracos na história de forma absurda.
Mas já que mencionei as ambições temáticas de Ilha de Cachorros, é preciso apontar que estas também representam um importante ponto fraco do longa, já que tentam desenvolver discussões políticas que, convenhamos, nunca foram uma característica da filmografia de Wes Anderson. Assim, mesmo que o diretor tenha boas intenções ao falar sobre racismo, xenofobia e a intolerância de modo geral, suas alegorias oscilam entre o óbvio e o confuso: se nos apresenta a versões caninas de campos de concentração, por exemplo, Anderson se perde ao abordar as motivações do prefeito – e se o mundo contemporâneo, com suas sucessivas crises de refugiados, remete diretamente ao fascismo que levou à Segunda Guerra, o cineasta consegue a proeza de fragilizar seu filme ao estabelecer estes paralelos.
Nada disso impede que Ilha de Cachorros seja adorável – e não poderia ser diferente: como se manter indiferente a um projeto no qual os personagens criados em plasticina constantemente surgem com os olhos cheios d’água? E, neste sentido, até que o filme acaba conseguindo ser politicamente relevante por acidente – afinal, nada mais importante em um mundo cinza como o nosso do que uma fantasia com um coração tão grande.
2) RIVER’S EDGE (RIBÂZU EJJI)
Inspirado no mangá de Kyôko Okazaki, River’s Edge (Beira do Rio, numa tradução literal) acompanha um grupo de estudantes de uma escola situada nas proximidades do rio mencionado pelo título e que, ao longo das duas horas de projeção, passarão por experiências dolorosas, frustrantes, confusas e pontualmente prazerosas enquanto seus caminhos se cruzam em diversos pontos. Trata-se, portanto, de um projeto com múltiplas narrativas – e cabe ao diretor Isao Yukisada amarrá-las em busca de uma unidade temática.
Infelizmente, o cineasta fica preso a um roteiro que, escrito por Misaki Setoyama, parece encontrar esta unidade apenas em incidentes que oscilam entre conflitos naturais da adolescência e o puro niilismo, buscando, no processo, funcionar como estudo de uma geração cheia de recursos, mas vazia de objetivos. O lamentável é que, vistos como indivíduos, os personagens são potencialmente instigantes: a protagonista Haruna, interpretada pela excelente Fumi Nikaidô (Por que Você Não Vai Brincar no Inferno?), é uma jovem cujos modos seguros sugerem uma maturidade que, na realidade, é reflexo de sua insistência em se manter emocionalmente distante de tudo que a cerca, enquanto o torturado Yamada (Ryô Yoshizawa) encontra nas constantes surras que leva do brutamontes Kannonzaki (Shûhei Uesugi) quase um objetivo de vida, como se sobreviver às agressões homofóbicas fosse o suficiente para validar sua posição no mundo. Enquanto isso, a bela modelo Koyama (Shiori Doi) sublima – ou tenta – suas frustrações na comida que vomita logo após devorar, ao passo que Yoshikawa (Sumire) busca no sexo e no dinheiro algum sentido. Fechando o elenco principal, Aoi Morikawa encarna Tajima como uma garota que se entrega completamente ao amor impossível por um namorado desinteressado, protagonizando uma cena especialmente tocante ao ser indagada sobre o que a deixa feliz por estar viva e empacar na resposta apesar do largo sorriso que insiste em exibir.
A procura por esta felicidade intangível, por sinal, é o centro do roteiro de Setoyama, que, como já mencionado, aposta na destruição ou na angústia como causa e consequência do prazer de seus personagens – e, de um ponto de vista de signos psicológicos, ele não é nada sutil ao investir em obsessões orais que o diretor Isao Yukisada ressalta ao enfocar bocas que são preenchidas por comida, cigarros e órgãos genitais. Do mesmo modo, o filme frequentemente emprega o fogo (e seus simbolismos óbvios) como rima visual, seja no ursinho de pelúcia semicarbonizado, nos planos-detalhe de um isqueiro acendendo ou de um corpo em chamas caindo de um prédio.
Empregando uma razão de aspecto reduzida que nos mantém mais próximos dos personagens, River’s Edge ainda encontra um recurso narrativo curioso na forma de entrevistas ocasionais feitas com os jovens e que parecem ser conduzidas pelo próprio diretor (ou por um avatar sonoro deste), que busca questioná-los sobre questões relacionadas às suas ações e sentimentos. Por outro lado, com isso o longa acaba parecendo menos interessado em levar o espectador a refletir sobre aquelas pessoas do que em oferecer respostas mastigadas: se o interesse de Yamada por uma ossada humana que descobre à beira do rio poderia ser instigante, por exemplo, o próprio filme se encarrega de interpretá-lo para o público ao trazer um personagem apontando para o rapaz que este só se interessa por mortos (afinal, é mais seguro; os mortos tendem a não nos machucar).
Assim, é natural que Yamada jamais tente se aproximar de sua paixão platônica, afirmando ser feliz apenas por saber que o rapaz que ama existe – pois na visão do longa, a felicidade é uma mera plataforma elevada que serve somente para aumentar a queda de quem nela sobe.
16 de Fevereiro de 2018