Mais da metade da população mundial hoje vive em cidades. De 1950 para 2014, a população urbana passou de 746 milhões para 3,9 bilhões. O olhar sobre as grandes metrópoles tem sido habitual nas produções audiovisuais, evidenciando os desafios de infraestrutura inerentes a essa concentração populacional. Megalópoles entupidas de gente e de carros, poluição, transporte público insuficiente. Mas, o que restou no campo, depois desse êxodo?
O documentário Paulistas, do cineasta Daniel Nolasco, lança o olhar sobre este local de origem, de onde as pessoas – especialmente os jovens – saíram, deixando para trás uma natureza aviltada pela economia da monocultura e hábitos culturais que, em pouco tempo, praticamente se extinguiram. O título se refere a uma região rural de Goiás marcada, no passado, por pequenas propriedades. A cultura de soja e milho, alternados, praticamente extinguiu a vegetação local, mantida no entorno das lavouras como uma espécie de cerca viva, hipocritamente cumprindo a exigência legal de preservação.
Paulistas mostra três jovens que já mudaram para a cidade, de volta à fazenda paterna, no período das férias de julho. Como um observador à distância, a câmera registra as atividades da família, seus hábitos e, sobretudo, o contraste entre velhos e moços, nos hábitos e na relação com o local. Filmado em julho de 2016, Paulistas foi realizado com orçamento de apenas R$ 50 mil e teve todo o material audiovisual captado na região. Menos o som dos grilos. “Porque não existem mais grilos na região, graças aos agrotóxicos usados nas fazendas”, comentou Daniel nesta entrevista exclusiva para o Cinema em Cena.
Cinema em Cena – Você tem dito que, com o filme, pretendeu registrar um tipo de cultura rural que está deixando de existir. Tem um traço de melancolia nesse registro?
Daniel Nolasco - Tem. Não é uma questão de o campo ser melhor que a cidade, mas eu acho que são estilos de vida com muitas particularidades que se diferenciam. Em 2013, quando a gente começou a pesquisa para poder fazer o filme, eu voltei para os “paulistas”, e tinha um tempo que eu não ia lá, mais menos uns 10 anos. Eu morava em Catalão e, quando voltei pra lá, fiquei muito impactado com a quantidade de casas abandonadas.
Cinema em Cena – ... que é um elemento forte desse filme...
Daniel Nolasco – É. E que, na minha lembrança, era algo que antes não existia, porque todas as casas eram ocupadas. Em 2013, chegamos à situação de não haver mais jovens no local, e então veio essa constelação melancólica, de que aquela região, aquela comunidade estava acabando por uma questão humana. As pessoas não moram mais lá, o que dá um tom de melancolia mesmo.
Cinema em Cena – Paulistas é um filme de contradições, com situações que mostram os contrastes (o pai ligando de um telefone fixo, o filho teclando em um celular etc.). Você teve a intenção também de dizer que os mais velhos e os mais novos vivem em mundos diferente e de alguma forma isolados?
Daniel Nolasco – Sim. Uma coisa que a gente reparou muito foi que os dois grupos lidam com a questão da tecnologia de formas completamente diferentes. Os adultos, as pessoas mais velhas têm uma relação muito prática do uso da tecnologia. Ela está, por exemplo, no tambor utilizado para armazenar o leite, que agora é refrigerado e permite que eles consigam armazenar o leite por mais dias antes do caminhão passar recolhendo, e eles podem vender o leite mais caro por isso. Está no local onde vão moer o alimento do gado. O jovem já tem o sentido mais contemporâneo mesmo, para fazer coisas mais banais, como mandar mensagem para namorada. Percebemos de maneira muito forte essas contradições: velhos e ocupavam o mesmo lugar, mas cada um lidando de uma forma com a tecnologia. Outro contraste está no transporte, com o fato de que os jovens sempre andam de moto e os adultos, nunca.
Cinema em Cena – Em determinada sequência, há um som de tiro seguido de uma imagem de um homem usando um boné que está escrita a palavra “guerra”. Foi uma representação da violência que se vive ali, contra as matas, os animais e as pessoas daquele lugar?
Daniel Nolasco – A vida no campo é marcada por certas violências, principalmente contra a natureza. E é uma violência muito naturalizada, faz parte da rotina deles. Então, a gente queria trazer isso para o filme. Por exemplo, a violência inerente à hidroelétrica da região, que talvez seja ali o ato de violência maior, porque atinge a natureza, o espaço, acaba sendo uma violência contra as pessoas que vivem ali também.
Cinema em Cena – O filme é muito permeado por sons – da natureza, o motor das motos, dos bichos. Tudo que se ouve no filme foi captado lá?
Daniel Nolasco – Tudo, inclusive os sons mais metálicos, presentes quando aparecem a barragem, as casas antigas, esses sons todos foram captados lá. Aqueles sons, especificamente os mais metálicos, foram feitos em uma das taperas abandonadas que tinha uma caixa d’água de metal que o tempo corroeu. A paisagem sonora do serrado tem muitas especificidades a que nós não estamos acostumados, principalmente pela questão de animais. Essas intervenções na natureza provocaram mudanças também no som. Por exemplo, não tem som de grilo mais, porque não existe mais grilo. Os agrotóxicos das plantações costumam matar os insetos, então não tem mais grilo. Quando fomos fazer a mixagem do som, eu tive a preocupação de não trazer sons que não fossem da região, para tentar manter isso no filme.
Cinema em Cena – E a iluminação? Você usou algum tipo de luz artificial?
Daniel Nolasco – Não. Fizemos tudo com a luz presente no local, inclusive os faróis das motos e as luzes das telas dos celulares. Nós não pretendíamos filmar à noite mas, no meio da filmagem, nasceu uma lua cheia inacreditável, que transformava a noite em dia. Então, a gente conseguiu filmar, mesmo sendo noite sem precisar fazer iluminação artificial.
Cinema em Cena – Em termos de fotografia, apesar do naturalismo do filme, as imagens sugerem um apuro nos enquadramentos e nos movimentos. Você estudou muito esse “cenário” antes de filmar?
Daniel Nolasco – Tanto eu quanto o diretor de fotografia somos de regiões rurais de Goiás. Antes de filmar, a gente pesquisou muito a rotina dos personagens, os espaços que eles transitavam. Refletimos muito sobre como filmar o cerrado, porque é uma paisagem relativamente pouco filmada. Existe uma produção muito grande de curtas metragens em Goiás, mas ainda pequena de longas e menor ainda de filmes locais que se passam no campo. Outra coisa que a gente decidiu, desde o início, é que nunca faríamos um plano que fosse só da paisagem, mas sempre tendo um personagem, mesmo que isso fosse um mega plano geral.
Cinema em Cena – No filme, fica evidente que as mulheres assumem uma função coadjuvante, além de ficar nítido que tem muito mais mulher que homem (na sequência da festa, aparecem várias mulheres dançando com outras mulheres. Como você enxerga o papel da mulher ali? O êxodo afeta mais o homem do que a mulher do cerrado?
Daniel Nolasco – Lá, as questões dos espaços, são muito definidos, o homem é o trabalho do campo, do gado, dessa vida, e a mulher é do trabalho doméstico. Ainda tem essa divisão muito separada: raramente a mulher está fora de casa, enquanto o homem raramente não está fora de casa. Em Goiás, no geral, a população feminina é maior, e na festa isso é refletido, também porque os homens jovens tendem a sair do campo, para estudar e trabalhar nas cidades.
Cinema em Cena – Nas cenas internas, o filme recorre muito a um tipo de enquadramento que mostra os ambientes a partir da porta para dentro. A intenção era de ser um observador à distância?
Daniel Nolasco – Isso e também a questão geográfica das casas, que em geral têm vários cômodos e sempre pequenos. Então, esse enquadramento também é o desejo de mostrar que a gente está filmando uma realidade, que não necessariamente seja a nossa, criando uma certa distância, de observador mesmo.
Cinema em Cena – A sequência final do filme amarra sequencias anteriores, com disparos de tiros, e termina com um monitor de TV alvejado. Que simbolismo você pretendeu com isso?
Daniel Nolasco – Na verdade, foi um acaso da filmagem. Lá, eles têm essa tradição da caça, principalmente uma tradição masculina, do pai ensinar o filho a mexer na arma. Tanto que eles fazem as balas, eles fazem os cartuchos. Eu quis filmar algumas cenas com eles atirando e precisávamos atirar alguma coisa. Tinha essa TV, do lado da casa, para ser jogada fora, durante quase todas as filmagens. Esses tiros foram as últimas coisas que a gente filmou. Filmamos de longe, e eu achava que nenhum dos tiros tinha acertado a TV mas, na hora que fui conferir, não só todos tinham pegado como ela ficou completamente destruída. E, então essa imagem para mim, acabou sendo muito simbólica. De uma certa modernidade, que está ali presente e que ao mesmo tempo é exatamente essa modernidade que está deteriorando esse lugar. De como a tecnologia traz alguns benefícios, mas traz também alguns malefícios. A própria tecnologia no campo, que facilita a vida deles, também é o motivo do porque muita gente vai embora, acaba com o emprego.