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Construindo pontes: um exercício de democracia Brasil em Cena

Se você tem menos de 40 anos, dificilmente ouviu falar das Sete Quedas, um conjunto de cataratas formadas pelo Rio Paraná, que deixaram de existir para dar lugar ao grande lago da hidrelétrica de Itaipu. Heloísa Passos, cineasta com mais de vinte filmes no currículo como diretora de Fotografia ("Viajo porque preciso, volto porque te amo", "Mulher do Pai", "Lixo Extraordinário"), não só conhecia como recebeu uma coleção de filmes em Super-8 com imagens das Sete Quedas. “O presente veio de um amigo do meu pai e meu primeiro ímpeto foi ir até o local para ver como aquilo tinha ficado”, conta Heloísa.

Guaíra, a cidade que abrigava o antigo Parque Nacional das Sete Quedas, vivendo do turismo, hoje é um ambiente de natureza modificada e habitantes traumatizados. O filme poderia ser sobre isso: uma cidade abandonada, suas pessoas e suas mágoas, mas Heloísa preferiu um caminho diferente. Partindo daquele cenário desolador, erguido na esteira do desenvolvimentismo do governo militar, ela optou por falar das diferenças entre seu próprio pensamento e o ideário de seu pai, um engenheiro civil aposentado cuja carreira consolidou-se justamente nas grandes obras de infraestrutura dos anos 1970.

Na abertura, o filme transporta o espectador para o grande lago onde jazem, submersas, as Sete Quedas. Filmado com um drone, o plano sequência de mais de dois minutos seguidamente flagra esqueletos de árvores fincados naquele “deserto d’água”, como define a diretora. “Antes de ser inundada, a região tinha várias ilhas entre as quedas d’água, onde nasciam árvores. São esses restos de vegetação que surgem no meio das águas”, explica Heloísa.

O pai, um vigoroso senhor aposentado, de cabelos brancos, fala com orgulho do empreendedorismo do governo militar e emenda que “nunca existiu uma crise como a atual, no Brasil”. A filha discorda, e as discussões permeiam o documentário. “Existe uma representação, seria ingênuo o cineasta pensar que retrata apenas a realidade, em um documentário, mas a minha relação com o meu pai é como aquela que aparece no filme.”

As diferenças ideológicas vão ficando cada vez mais claras, ao mesmo tempo em que as semelhanças se mostram evidentes. Não apenas na firmeza com que defendem opiniões opostas, mas nas características e idiossincrasias reveladas pelo relato da mãe ou pelas velhas imagens de Super 8 exibidas em uma projeção familiar, captadas pelo documentário.

“O filme é um exercício de democracia em que duas pessoas que não têm o mesmo ponto de vista se aceitam e se disponibilizam a estarem juntas”, define Heloísa, que em determinado ponto do filme convida o pai a empreender com ela uma viagem de carro, para visitar algumas das obras que ele ajudou a construir. A ideia, na cabeça da diretora, era levar o pai até a beira do lago, em Guaíra. Ele não participou das obras de Itaipu, mas Heloísa tinha a impressão – ou o desejo? – que ele tivesse uma epifania no local, algo que soasse grandioso para o final de seu filme.

“Ele chegou lá, olhou e disse: que bonito, né? Ponto”, diverte-se Heloísa, lembrando que, nesse momento, percebeu que seu filme não tinha chegado ao final. Foi então que o pai se lembrou de uma estrada próxima, que ele havia ajudado a construir, e sugeriu que fossem até lá. Ela sabia que havia essa estrada, com uma ponte ferroviária, mas imaginou que já não havia trens passando por ali. “Chegamos a essa ponte quase por acaso, no final do dia, com a luz caindo”, lembra. Os dois lados quase sempre opostos estavam do mesmo lado da ponte, quando ouviram o barulho de um trem, que passa à frente da dupla, como se a história passasse por eles.

Diante de um novo tempo, em que a sociedade brasileira parece mergulhada em ódio e intolerância, a imagem seria uma esperança de conciliação? É possível superar esse momento de tanto rancor? “A duras penas, eu acho que sim e acho que vai ser nos pequenos gestos do dia a dia. Meu filme fala sobre um tempo em que não se podia falar. Hoje, no Brasil, há pessoas que dizem não ter conhecido a ditadura, sem perceber que viveram aquele tempo, de censura e exceção, e por isso acham que ele não existiu. Temos a responsabilidade de fazer com que não se esqueça, e meu filme é uma contribuição nesse sentido.”

Sobre o autor:

Alessandra Alves é jornalista com múltiplos interesses. Além do amor pelo cinema, pela música e pela literatura, também atua no jornalismo esportivo e na comunicação corporativa. Paulistana, corintiana, feminista e inimiga de fascistas, assina a coluna "Brasil em Cena", de entrevistas e reportagens sobre o cinema brasileiro contemporâneo.
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