DIAS 01 e 02
A 71a. primeira edição do Festival de Cannes está repleta de novidades – algumas boas, outras que não fazem diferença e algumas bem ruins. Entre as primeiras, encontram-se a criação de um canal exclusivo para denúncias de assédio/abuso sexual e a insistência em criar júris com predominância feminina (o da Mostra Competitiva também é presidido por uma mulher): Cate Blanchett. Já o banimento de selfies no tapete vermelho é algo que não me incomoda ou agrada; só passo por ele a caminho das sessões para a crítica – quando misteriosamente não há nenhum paparazzi ao redor – e não assisto aos eventos que o envolvem.
Mas a mudança nas sessões para a crítica... ah, estas me incomodam muito.
Até a edição passada, a crítica assistia aos filmes antes das sessões públicas, o que permitia que fôssemos escrevendo ao longo do dia, entre as sessões, sem qualquer pressão. Agora, contudo, como as sessões ocorrem simultaneamente às premières, a tarefa se torna mais desgastante, já que as reações da sessão de gala são imediatas através de tweets e afins. Isso para não esquecer que, dentro do novo cronograma, é praticamente garantido que todos que cobrem o festival serão obrigados a escrever até 2, 3 da madrugada e acordar às 6h30 (ou 7h30, dependendo da credencial) para conseguirem entrar na primeira sessão do dia às 8h30 da manhã.
A nova regra começou hoje: se normalmente veríamos ao novo filme de Asghar Farhadi às 8h30, fomos assisti-lo apenas às 20h30, saindo da sessão às 22h50 e... bom, vocês já entenderam.
E por falar nisso...
1) Asghar Farhadi é um de meus cineastas contemporâneos favoritos. Hábil ao extrair drama a partir de pessoas comuns que, subitamente envolvidas em situações complicadas (um possível afogamento, um estupro ou um sequestro), descobrem novas facetas das próprias personalidades enquanto buscam uma saída para o que enfrentam. O cineasta fez isto magistralmente em À Procura de Elly, por exemplo, e também de forma competente em O Apartamento; desta vez, porém, algo falta à narrativa de seu novo trabalho, Todos Já Sabem: o peso dramático e o sentimento crescente de urgência que a história deveria despertar.
Filmando na Espanha pela primeira vez, o diretor foca suas atenções em um vilarejo no interior do país, com seus idosos ocupando praças e janelas, adolescentes inquietos que não encontram alternativas para extravasar a ebulição dos hormônios a não ser pilotando suas pequenas motos pela cidade e, claro, uma população que se mostra sempre curiosa acerca da vida dos vizinhos como forma de compensar a ausência de cinemas, teatros ou espetáculos musicais. É para este local que Laura (Cruz) retorna com seus filhos Irene (Carla Campra) e Bob para comparecer ao casamento da irmã mais nova, Ana (Inma Cuesta). Sem contar com a presença do marido, Alejandro (Darín), que teve que permanecer na Argentina por motivos profissionais, ela se diverte ao lado da família e se entrega aos festejos, reencontrando também o antigo amor da juventude, Paco (Bardem), agora também casado e feliz como dono de um pequeno vinhedo. É então que algo terrível acontece e altera a dinâmica entre todos, ressuscitando mágoas, raivas e amores. (O incidente acontece no fim do primeiro ato, mas prefiro não revelá-lo.)
Com um olhar aguçado para os detalhes, Farhadi investe um tempo considerável em estabelecer as relações entre aquelas pessoas e em criar um universo verossímil que ancore os incidentes posteriores – e, assim, faz questão de ressaltar a felicidade de Laura e suas duas irmãs pelo reencontro (há um plano belíssimo no qual as três dançam juntas, abraçando-se carinhosamente), a cumplicidade entre Paco e sua esposa Bea (Bárbara Lennie) e a alegria de toda a família durante a festa de casamento, quando celebram até quando a eletricidade falha e quando retorna. Do mesmo modo, as imagens de crianças pequenas gritando na igreja durante a cerimônia e de um garotinho adormecido no meio da festa chegam a lembrar o tipo de detalhe que Coppola utilizou em momentos similares na Trilogia Sagrada.
Assim, quando o tal episódio ocorre, a atmosfera pesada assumida pela narrativa se torna mais eficaz justamente por termos nos aproximado tanto dos personagens. Aliás, Todos Já Sabem é repleto de pequenos instantes que, irrelevantes para a história, são fundamentais para a narrativa ao enriquecerem seus ocupantes – como, por exemplo, o fato de Paco, Laura e seu cunhado Fernando (Eduard Fernandéz) chegarem ao apartamento do ex-policial Jorge (José Ángel Egido) justamente quando a filha deste está partindo. (Não voltamos a vê-la; seu papel foi o de humanizar o sujeito.) Além disso, há, como não poderia deixar de ser, a riqueza das performances: Penélope Cruz, por exemplo, é hábil tanto ao expressar a euforia de Laura quanto sua dor posterior, quando se torna uma mulher tornada quase irracional pelo desespero (e, entre os extremos, há a melancolia que sugere mesmo quando alegre e que indica que algo está a incomodando antes que qualquer problema ocorra). Já Javier Bardem, naquele que talvez seja o papel mais difícil do filme, encarna Paco como um homem vivaz, afetuoso e cuja delicadeza é evidenciada pela maneira carinhosa com que lida com as crianças que o cercam. Ao mesmo tempo, se seu amor pela esposa é óbvio, há passagens nas quais ele detém o olhar sobre Laura um microssegundo a mais do que o esperado, expondo-se para o espectador mais atento. Para completar, o fantástico Ricardo Darín faz o máximo com um personagem relativamente pequeno, compondo Alejandro como alguém que há muito decidiu atribuir a Deus seus fracassos e sucessos – algo que irrita sua esposa e soa divertido para os demais (que certamente deixariam de ver graça caso fossem obrigados a conviver com isso o tempo todo).
Enquanto isso, Asghar Farhadi e o diretor de fotografia José Luis Alcaine exploram as locações e suas estradas poeirentas, seus vastos vinhedos e as amplas planícies que cercam o vilarejo como se delimitassem o mundo que aquelas pessoas irão conhecer em suas vidas. Da mesma maneira, o design de produção de María Clara Notari revela muito sobre os personagens ao trazer a casa de Paco como um lar agradavelmente bagunçado e o sobrado da família de Laura como um conjunto de quartos com personalidades que refletem diretamente seus ocupantes, transformando-a em um conjunto de idiossincrasias que ressaltam os contrastes entre os membros do clã e nos lembram de que, apesar disso, todos seguem vivendo juntos (o que destaca Laura ainda mais).
Descartando qualquer trilha não-diegética (como de costume), o cineasta usa, em vez da música, elementos diversos para aumentar a tensão – da chuva que torna tudo mais angustiante até trocas de olhares que sugerem suspeitas antes inexistentes (como a de Paco diante de seus empregados na fazenda). E é interessante observar como a maior parte dos convidados (quase todos parentes) se despedem de Laura no dia seguinte ao do incidente, deixando-a em sua dor enquanto lamentam terem que fazê-lo, mas... sabe como é, vida que segue, sinta-se abraçada, etc. e tal. Ao mesmo tempo, é compreensível que não deem pausa em suas rotinas em função do problema da prima/tia/sobrinha, já que não poderiam fazer nada de fato para ajudá-la – o que não elimina o desconforto da partida.
Mas são exatamente estas dinâmicas que formam o centro de Todos Já Sabem - começando pelo título que já aponta para aqueles segredos familiares que todos (ou quase todos) conhecem, mas que jamais são discutidos, pois com isso deixariam de ser “segredos” e se transformariam em problemas com os quais todos seriam forçados a lidar. Assim, os planos iniciais do longa, que revelam as iniciais de casais de namorados deixadas nas paredes internas da torre da igreja, são mais do que apropriados, sinalizando as marcas de amantes ocultas por trás de uma fachada insuspeita. E expandindo o tema: as suspeitas que vêm à tona entre os personagens surgem como consequência ou como causa dos ressentimentos nutridos? Afinal, mágoas não verbalizadas não deixam de existir por isso, sendo alimentadas de forma invisível até romperem a barragem e afogarem todos no processo.
Dito isso, ao contrário do que ocorreu com os trabalhos anteriores de Farhadi, minha admiração por este Todos Já Sabem é mais formal, estética, do que psicológica ou emocional. Em sua essência, o filme é um melodrama que o diretor iraniano conta da maneira mais fria e racional possível (imaginem uma mistura de Douglas Sirk e Bergman) – o que, desta vez, anula o peso dramático da experiência, impedindo que sintamos a dor e a angústia daquelas pessoas. Para piorar, a “revelação” que ocorre ao final do segundo ato não poderia ser mais óbvia, o que também contribui para diminuir significativamente qualquer impacto.
Seja como for, um Farhadi falho é melhor do que a média das produções contemporâneas, oferecendo, no mínimo, leituras e subtextos instigantes – desde a constatação de que a paternidade que salva a vida deste pode destruir aquele até a observação de como um segredo que se revela não demora a ser substituído por um outro que, por reconhecer os estragos do anterior, se tornam ainda mais sufocados e, consequentemente, perigosos.
2) Wildlife, estreia na direção do ator Paul Dano, é um filme que acompanha a desintegração de uma família a partir do olhar do adolescente Joe Brinson (Ed Oxenbould), que, aos 14 anos, vive em uma pequena cidade no estado norte-americano de Montana com os pais, Jerry (Jake Gyllenhaal) e Jeanette (Carey Mulligan). Morando de aluguel em uma pequena casa localizada em um bairro humilde, os Brinson não permitem que a limitação financeira seja um obstáculo à felicidade: ainda apaixonados e carinhosos um com o outro, Jerry e Jean (como ele a chama) são pais presentes e afetuosos – algo que Joe reconhece e aprecia, dedicando-se aos estudos com afinco – e até mesmo as iniciais semelhantes ressaltam aquela união. Porém, depois que seu pai é demitido do clube de golfe em que trabalhava, a situação da família se torna mais e mais complicada até que Jerry decide se oferecer para ajudar a combater o incêndio florestal que vem consumindo as árvores da região, viajando sem previsão de volta e levando Jean a buscar um trabalho fora de casa.
Escrito por Dano e pela atriz Zoe Kazan a partir de um livro de Richard Ford, Wildlife busca abordar questões que partem do machismo institucional vigente na década de 50, na qual o filme se passa (e que dura até hoje, claro), e o acompanham até suas consequências inevitáveis na percepção dos papéis que homens e mulheres se sentiam e sentem condicionados a interpretar na sociedade. Assim, enquanto Jean se força a manter o rosto sempre sorridente em apoio às decisões desastrosas do marido, este não consegue evitar se sentir humilhado por não ter a capacidade de sustentar a família, o que o leva a atitudes ainda mais desastrosas.
Adotando cores quentes e agradáveis que conferem uma atmosfera idílica ao cotidiano daquelas pessoas enquanto pai e filho brincam de atirar bolas de baseball no quintal ou Jerry e Jean trocam cochichos cúmplices na cozinha, a ótima fotografia de Diego García (Boi Neon) leva o espectador a apreciar a dinâmica saudável daquela pequena família e de sua rotina na comunidade. À medida que a situação se deteriora, contudo, até mesmo o belo laranja projetado pelo sol enquanto se põe atrás de várias casinhas assume um tom melancólico, ao passo que a luz interior da casa, antes tão aconchegante, se torna símbolo da cisão do casal ao se contrastar com a frieza do exterior no qual Jerry se vê condicionado a se isolar. Enquanto isso, a ótima montagem de Louise Ford e Matthew Hannam salta entre os três personagens com agilidade e fluidez, constantemente estabelecendo ligações ou disjunções entre estes.
Porém, a decisão mais interessante de Paul Dano é forçar o público a assumir o ponto de vista de Joe nos momentos mais importantes da narrativa: quando Jerry é demitido ou Jean conversa de forma intimista com um ricaço (vivido com um paradoxal carisma repulsivo por Bill Camp), vemos não estes personagens, mas o olhar de Joe enquanto os observa com tristeza, choque, confusão ou mesmo felicidade. Encarnado pelo excelente Ed Oxenbould como um adolescente maduro para sua idade, o garoto ainda assim exibe ingenuidade, inocência e insegurança comoventes – o que pode ser constatado no instante em que, ao ver a mãe em uma pequena crise emociona, consegue dizer apenas um assustado e confuso “Mãe?”. Por outro lado, à medida que o tempo passa, Joe assume uma postura cada vez mais forte e independente, mesmo que a fumaça sempre presente no horizonte o faça se lembrar do pai e desejar seu retorno.
Jerry, por sinal, é vivido por Jake Gyllenhaal como um homem bondoso em sua essência, que insiste em demonstrar seu amor pelo filho (“Posso te dar um beijo? Homens também podem se amar, você sabe disso, certo?”), mas peca pelo orgulho que o impede de aceitar o convite para retornar ao trabalho depois de demitido. O curioso é que, antes disso, o sujeito não via problema em ir além de suas obrigações profissionais como instrutor de golfe, chegando a engraxar os sapatos de seus alunos e a servi-los como garçom improvisado. Desta maneira, sua decisão de partir para combater incêndios parece motivada menos pela possibilidade de trabalho e mais como forma de se afastar da família e da humilhação que experimenta graças ao próprio machismo. Por outro lado, Carey Mulligan tem uma tarefa bem mais complicada ao compor Jeanette, que é a personagem que atravessa as mudanças mais radicais ao longo da projeção: impecável ao demonstrar como a mulher vai do sorriso tolerante ao comportamento destrutivo que adota em função do ressentimento e da insatisfação com a própria vida, a atriz quase consegue nos fazer ignorar como o roteiro introduz estas mudanças de forma brusca, já que, no dia seguinte à partida do marido, Jean já surge com novos vestidos, novo penteado e uma frieza com o filho que parece ter vindo do nada.
Forçando um pouco a mão ao tentar criar um paralelo simbólico entre o incêndio florestal e o impulso violento de Jerry em certo momento, sugerindo que o mesmo fogo que destrói pode “purificar”, Wildlife é, ainda assim, uma estreia mais do que promissora de Paul Dano como diretor e merece nossa atenção.
3) Em seu filme anterior, Uma Mulher Gentil, o cineasta ucraniano Sergey Loznitsa acompanhava a personagem-título por uma jornada kafkaniana enquanto esta tentava descobrir o paradeiro do marido em uma realidade dominada por burocracia, mentiras e desumanidade – e que oscilava de forma instigante entre o naturalismo e fantasias alegóricas. Assim, não é surpresa que, ao retratar a realidade dolorosa da guerra civil na região de Donbass entre separatistas liderados por russos e grupos pró-governo ucraniano, o cineasta repita a abordagem estética e temática daquela obra, criando mais um experimento formal que, sob a frieza aparente da narrativa, exibe uma inconformidade raivosa diante do conflito.
Estruturado em episódios que se ligam através de personagens ou elementos variáveis, Donbass tem como protagonista a guerra em si, focando na feiura presente em ambos os lados (e maior entre os separatistas) e na situação desesperançada daqueles que se encontram entre os dois. Enquanto isso, a fotografia do sempre fantástico Oleg Mutu, parceiro habitual não só de Loznitsa, mas também do romeno Cristian Mungiu, se empenha em levar o espectador para o centro da ação, transformando-o em um elemento que interage com aquele universo diegético: na sequência inicial, por exemplo, a câmera na mão descarta qualquer suavidade que seria possível com uma steadicam para, em vez disso, tremer loucamente como se nós também estivéssemos correndo ao lado dos personagens. Já mais tarde, naquela que é a passagem mais memorável do filme, visitamos o abrigo mofado, úmido e lotado no qual aparentemente dezenas de pessoas se amontoam – quando dois “guias” se dirigem diretamente à câmera para apresentar a terrível situação (e é sempre bom lembrar que, graças à identificação primária cinematográfica, a câmera sempre acaba representando o olhar do espectador).
Brutal na forma súbita com que atos de violência interrompem cenas e conversas, Donbass também expõe a desumanização resultante da guerra em outra sequência fortíssima na qual soldados russos levam um prisioneiro ucraniano para as ruas da cidade, com um cartaz que o aponta como “voluntário do esquadrão da morte”, e o amarram a um poste; o que se segue é um espetáculo de horror que envolve cusparadas, socos, pisadas e agressões cometidas até mesmo por senhorinhas de aparência inocente. Já em outra passagem, o descaso dos poderosos é ilustrado por uma audiência concedida por um político que, adornado por pulseiras e anéis de ouro (até a capa de seu celular é dourada), olha entediado para o relógio enquanto ouve os pedidos de um grupo de cidadãos.
Empregado planos longos que trazem um ar documental à narrativa (não por acidente; Loznitsa é também documentarista), o filme é um libelo pacifista que, contudo, não se mostra inocente a ponto de acreditar que o conflito pode ser resolvido simplesmente por ações diplomáticas, já que, a esta altura, algo assim seria um sonho impossível – uma impossibilidade criada pelos mesmos poderosos que poderiam torná-lo viável.
4) Logo nos primeiros minutos de Rafiki, longa queniano incluído na mostra Um Certain Regard do Festival de Cannes 2018, uma imensa energia parece saltar da tela enquanto acompanhamos os créditos multicoloridos e cheios de grafismos que nos apresentam, embalados por uma música contagiante, ao cotidiano da comunidade na qual a maior parte da história será ambientada. É ali também que temos nosso primeiro contato com a protagonista, a jovem Kena (Samantha Mugatsia), que, magérrima, com um corte de cabelo curtíssimo e andando alegremente em seu skate, não parece se importar em nada com a imagem que passará aos vizinhos fofoqueiros e preconceituosos.
Isto é, até que se aproxima de Ziki (Sheila Munyiva), filha de um político local considerada rica pelos padrões da região (eles moram num prédio velho e feio, mas têm elevador), com a qual forma uma amizade que logo se converte em interesse romântico. Apaixonadas e movidas pelos bravos ímpetos da juventude, elas parecem fazer um esforço mínimo para esconder o namoro mesmo sabendo que a homofobia e a ignorância de seus “pares” garantirão uma reação violenta ao romance. Como se não bastasse, a situação se torna mais complicada graças à decisão do pai da protagonista de disputar o cargo ocupado pelo pai de Ziki.
Aproveitando a riqueza de cores que é parte natural e importante da cultura local, o diretor de fotografia Christopher Wessels impregna a narrativa de tons quentes – especialmente amarelos, vermelhos e laranjas – que levam o espectador a se sentir acolhido por um mundo alegre e contagiante em sua superfície, mas que contrasta radicalmente com esta percepção em função da miséria e da intolerância. Ao mesmo tempo, a diretora/roteirista Wanuri Kahiu captura com delicadeza os olhares trocados furtivamente entre as duas garotas e o encantamento crescente que surge ao longo do tempo.
Em contrapartida, Rafiki (ou “amiga”, em português) frequentemente se entrega à cafonice absoluta ao retratar os instantes de paixão entre Kena e Ziki, abusando de câmeras lentas, flares e até mesmo do som de passarinhos cantando quando despertam juntas. Para piorar, o longa, que procura justamente denunciar a intolerância no Quênia com relação à homossexualidade (onde esta é encarada como crime e pode levar a até 14 anos de prisão), acaba se rendendo a um final feliz forçado e asséptico que em nada combina com o restante do longa – algo que talvez tenha sido feito para diminuir as chances de problemas do governo do país com relação ao filme.
Se este foi o caso, acabou representando um sacrifício em vão: Rafiki acabou sendo banido no Quênia.
5) Beshay é um homem de cerca de 40 anos de idade que passou as últimas três décadas de sua vida em uma colônia de leprosos no Egito depois de ser abandonado pela família. Desfigurado, com as mãos deformadas e um caminhar difícil, ele acaba de perder a esposa – e por mais que seus amigos e o pequeno órfão Obama (“Igual o cara da TV”) tentem animá-lo, seu estado de espírito se torna cada vez pior. É então que ele toma uma decisão que vinha adiando por toda sua existência: viajar para sua cidade de origem, localizada a centenas de quilômetros de distância, para tentar encontrar os pais e o irmão.
Dirigido e roteirizado pelo estreante A.B. Shawky a partir de experiências reais de seu ator principal, Yomeddine se torna imediatamente mais rica graças ao carisma de seus dois intérpretes principais, os não-atores Rady Gamal e o garotinho Ahmed Abdelhafiz. Forjando uma dinâmica essencial ao sucesso do longa, os dois retratam o carinho e o crescente amor entre seus personagens não só com delicadeza, mas com um surpreendente bom humor – e a ligação forte entre os dois é acentuada pelo figurino (um usa verde; o outro, amarelo), que já sugere uma complementação perfeita.
Adotando uma estrutura de road movie à medida que a dupla emprega carroças, um burro, caronas e um trem para cruzar o país, Yomeddine é um filme que consegue soar intimista ao mesmo tempo em que mantém a ação em constante movimento, sendo também comovente perceber como, ao longo do caminho, Beshay e Obama frequentemente encontram apoio não daqueles que teriam mais condições de auxiliá-los, mas daqueles que, como eles, são considerados párias em função de deficiências físicas congênitas ou provocadas por acidente – e, vale apontar, há uma passagem específica da obra que faz referência direta a O Homem-Elefante, quando, mais uma vez maltratado por uma multidão, o protagonista grita em desespero: “Eu sou um ser humano! Eu sou um ser humano!”.
E é esta a principal virtude do filme: se no início temos a tendência de enxergar apenas a desfiguração de Beshay (e de seu intérprete), ao final olhamos para a tela e vemos não uma vítima deformada pela hanseníase, mas um homem como outro qualquer.
11 de Maio de 2018
Assista também à cobertura em vídeo diária com os bastidores do festival: